O direito não tem servido como anteparo para a política. Para a maior parte da população geralmente costuma não ser. E, nos últimos tempos, tem provado que tampouco o é diante das tramas alcoviteiras da política nacional e das pressões do capital. Foram inúmeras as vezes em que lemos e escrevemos, textos, cartas, manifestações, ações que tratavam das ilegalidades e os abusos cometidos por atores do sistema de justiça nesta grande trama “lava jato” contada em forma de um folhetim grotesco. E a força dessas palavras escritas e gritadas não representou nenhum obstáculo diante do rolo compressor que mói desde o ano de 2014 o pouco que havíamos conquistado de institucionalidade democrática. O que vivemos é um regime de força, diante do qual a palavra e o direito encenam um grande vazio.

Sem a ilusão de que disputamos o direito num tempo democrático, sem a expectativa de que o direito barre o processo de destruição política que estamos vivendo, resolvemos enumerar as violações e abusos que se deram na grande narrativa desse simulacro de processo que culminou na prisão de Lula. Enumerar essas violações é também simbolizar o caminho por meio do qual o exercício da força foi encarnado por uma dúzia de atores do sistema de justiça, e de ministros dos superiores tribunais, investidos como personagens tão grotescos quanto a própria trama. Uma trama que tem como efeito imediato a alteração da cena das eleições de 2018, e como efeito mediato a permanência no poder de grupos que seguem destruindo a institucionalidade democrática e os direitos conquistados até aqui.

 1 -  A competência para julgar o processo

Afrânio Silva Jardim indagou o que, desde o início desse processo incomodava a muitos: como o ex-presidente Lula pode ter sido julgado por um juiz federal de Curitiba quando a ele se imputaram crimes de competência da justiça estadual e supostamente praticados na cidade de São Paulo?[1] Moro, como de costume, fundamentou sua decisão sobre o juízo competente afirmando, em termos genéricos, “há todo um contexto e que já foi reconhecido pelo Tribunal de Apelação e pelos Tribunais Superiores de que esses casos são conexos e demandam análise conjunta”. Sob o argumento das autoridades dos tribunais e a contação da trama da lava-jato, produzida junto com MPF, Moro desqualificou a arguição de defesa sobre a incompetência do juízo, dizendo “não ter relevância, para competência, os questionamentos dos advogados das defesas”. Em um de seus giros argumentativos, ele desqualificou a defesa que sustentava, motivada nas leis processuais penais, que a Justiça Federal não era competente para julgar crimes cometidos contra a sociedade de economia mista, no caso, a Petrobrás. E, com o peso de uma narrativa que esbarra na estética do roteiro de série ou novela televisiva, Moro sustentou, fora do direito, sua competência para julgar o processo contra Lula.

 2 - O mandado de condução coercitiva

O artigo 260 do Código de Processo Penal afirma: “Se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença”... No entanto, o juiz Sérgio Moro determinou a condução coercitiva de Lula  em 04 de março de 2016 sem sequer haver expedido uma intimação judicial ao ex-presidente. Não houve qualquer descumprimento de intimação para interrogatório, não houve evidência de que o Presidente estivesse arquitetando fugir ou deixar de comparecer a qualquer ato processual, não houve ameaça a realização de qualquer outro ato do processo.

Moro entendeu por determinar a condução coercitiva por razões não previstas do CPP: “evitar tumulto”. O que se seguiu? Uma operação envolvendo dezenas de policiais que chegaram à residência de Lula e de sua família para cumprirem um mandado ilegal precedido de uma equipe de TV que, misteriosamente, houvera sido informada do conteúdo, do dia e do horário do cumprimento do mandado judicial. Um capítulo da novela transmitido ao vivo em rede nacional.  

3 - O vazamento de áudios

No dia 16 de março de 2016, Moro “vazou” áudios de conversas obtidas em interceptações telefônicas entre o ex- presidente e a então presidenta Dilma Rousseff, violando o artigo 8º da Lei 9.296/96, que impõe sigilo sobre o conteúdo das gravações. Afrontou ainda o Supremo Tribunal Federal, pois eventual divulgação desse conteúdo só poderia ser admitida por aquele Tribunal, já que a conversa envolvia a então presidenta da República e a intimidade e a privacidade das comunicações dela não poderiam ser suspensas a não ser por opção do STF, nos estritos e conhecidos termos da Constituição Federal. Moro, entretanto, violou todas essas regras de direito; ao final, pediu “desculpas” e asseverou que pode ter “se equivocado em seu entendimento jurídico”.

Não era equívoco, porém; era estratégia. Lula fora nomeado ministro da Casa Civil às 13h45 e os áudios estavam nos veículos de comunicação às 18h30. O escândalo que ali se produziu jogou um papel importante para impedir a posse do ex-presidente, por meio de controversas e também ilegais decisões do Poder Judiciário.

Em 2004 Moro publicou um artigo no qual, mergulhado nos maneirismos do campo jurídico e numa retórica falaciosa, descreveu a operação mãos limpas na Itália. Ali se pode antecipar o Moro de 2017, tão retórico e maneirista como antes, mas com mais poder. Compreendendo precariamente os conceitos de democracia, Moro elogiou neste artigo a operação italiana e descreveu alguns mecanismos àquilo que ele atribuiu a um “sucesso inegável da operação”. Dois deles chamam atenção: a deslegitimação da classe política e a adesão da opinião pública às práticas do judiciário. Se é possível falar em democracia quando temos um judiciário não eleito condicionado à opinião pública, e a classe política eleita popularmente desqualificada, é conversa pra outra história. Embora a história seja a mesma.

Ocorre que neste texto, para compreender a dinâmica de apoio popular à operação italiana, Moro descreveu o vazamento de informações sigilosas como modo de fortalecer o processo levado à cabo pela operação italiana. Ele afirmou:  “A publicidade conferida às investigações teve o efeito salutar de alertar os investigados em potencial sobre o aumento da massa de informações nas mãos dos magistrados, favorecendo novas confissões e colaborações. Mais importante: garantiu o apoio da opinião pública às ações judiciais, impedindo que as figuras públicas investigadas obstruíssem o trabalho dos magistrados”.

Em texto citado por Moro no mesmo artigo, diz-se que “Apesar de não existir nenhuma sugestão de que algum dos procuradores mais envolvidos com a investigação teria deliberadamente alimentado a imprensa com informações, os vazamentos serviram a um propósito útil”.

Neste caso, parece que Moro não seguiu à risca o modelo da operação mãos limpas, já tão problemática em si. Ele mesmo tratou de vazar os áudios, cometendo com isto um crime em nome do que ele chama ser o “combate à corrupção”. 

4 - A execução antecipada da pena

Depois desses e outros fatos, o processo criminal ao qual respondia se tornou o principal obstáculo para Lula se candidatar à presidência da República. Caso a condenação de primeiro grau, proferida por Moro, viesse a ser confirmada em segundo grau, as possibilidade jurídicas para que Lula tivesse sua candidatura aceita pelo TSE se reduziriam radicalmente. O processo em que Lula figurava como réu levou 42 dias para iniciar o trâmite em segundo grau, tempo que corresponde à metade da média dos demais casos da Lava Jato. Não bastasse, o julgamento foi marcado para janeiro de 2018, o ano da corrida eleitoral.

Na decisão do TRF-4 mais uma singularidade se anunciou. De modo bastante atípico, os desembargadores do Tribunal não apenas confirmaram a condenação de primeiro grau, como também aumentaram uniformemente em seus votos a pena de 9 para 12 anos, indicando com isto o script da trama feita às escondidas. O aumento desta pena, nesta condição de extrema singularidade, significou também uma alteração no tempo de cálculo de prescrição da pretensão punitiva e executória. O que significa que se produziu uma manobra para que, diferentemente do que vem ocorrendo com outros réus, não ocorresse a prescrição dos crimes e da execução da pena no processo em que Lula figurava como réu.

Após a condenação, mais uma indagação se pôs: é possível prender Lula antes de a sua condenação transitar em julgado? O tema já estava em debate no Supremo e desde a decisão proferida no HC 126.292 se entendia que sim, que executar pena antes de uma decisão definitiva era possível. Porém, o caso era controverso. Ainda não haviam sido julgadas as ações diretas de constitucionalidade 43 e 44 que pedem que o STF declare a constitucionalidade do teor do art 283 do CPP, o qual prevê expressamente a possibilidade de execução da pena apenas após trânsito em julgado da decisão. Caso essas ações viessem a ser julgadas antes do HC proposto pela defesa de Lula, é possível supor, pelas manifestações mais recentes dos Ministros, que o resultado seria considerar aquele artigo constitucional, não mais se admitindo, portanto, a execução de pena antes de a condenação ser definitiva. O que, no caso de Lula, significaria, que ele não poderia ser preso antes de o STJ e o STF apreciarem recursos interpostos pela sua defesa.

Diante desse cenário, a Presidenta do Supremo, Carmem Lúcia, após uma manobra regimental, não pautou a decisão sobre as ações de constitucionalidade 43 e 44 e interpôs à frente o julgamento do HC preventivo de Lula, proposto por seus advogados para impedir a execução de pena antecipada do ex-presidente. O resultado deste julgamento, conhecemos, resultou na decisão sobre a possibilidade de execução de pena para o caso Lula. Ao menos até que as ADC 43 e 44 venham a ser julgadas. O que, diante das últimas manifestações da política do STF, é possível imaginar que levará algum tempo. Tempo suficiente para se consolidar a alteração da disputa eleitoral de 2018.

5- O mandado de prisão

Em menos de 24 horas após a decisão do Supremo, no dia 5 de abril de 2018, o Ministério Público Federal, por meio do procurador da república Maurício Gotardo Gerum, pediu a imediata prisão de Lula, utilizando como argumento até mesmo o carisma do ex-presidente e os avanços de seu governo. Ele ponderou: “Importante salientar que o caso presente é absolutamente singular. Em razão de sua exitosa trajetória de vida, de seu carisma pessoal incomparável e do exercício de dois mandatos na Presidência da República, com diversos avanços na sociedade brasileira, o processo e o julgamento do réu Luiz Inácio canalizou a atenção de um número muito expressivo de pessoas, acirrando paixões e ódios”.

Fundado em especulações políticas e não de direito, como a acima, e fiéis ao objetivo de obstruir o canal democrático das eleições, a sequência de atos que culminou no mandado de prisão expedido por Moro também é reveladora. No dia 04 de abril o STF negou o pedido de HC de Lula. No dia 05 de abril, o TRF, contrariando decisão proferida em 24 de janeiro, sem aguardar o esgotamento de todos os recursos em segundo grau, autorizou o juiz da condenação a determinar a prisão do ex-presidente. Minutos depois, o mandado de prisão foi expedido, determinando (fora de qualquer previsão legal) que Lula se apresentasse até às 17h do dia seguinte à Polícia Federal, em Curitiba. Provavelmente, fizesse parte do script a chegada televisionada de Lula cabisbaixo diante de um Moro potente, num sistema de justiça arrasado pela política.

Lula não se apresentou até às 17h. Ao contrário, participou ainda de um comício e de uma missa no dia seguinte. Com isto, Lula não estava descumprindo nenhuma ordem judicial. A começar porque o mandado de Moro solicitava que o ex-presidente se apresentasse à PF em Curitiba  para ser preso. Um pedido absolutamente fora das regras processuais, regras essas tantas vezes repetidas pelo juiz e constantemente esvaziadas de sentido. A expedição regular de um mandado de cumprimento de pena deve ensejar o cumprimento pela polícia, que deve buscar o réu em seu domicílio, obedecendo a regras processuais penais e não a invocação de uma apresentação voluntária e colaborativa do condenado.

6-  A execução da pena

Depois de gentilmente Lula se apresentar à Polícia Federal, o processo continuou a tecer sua trama novelística.

Todas as “singularidades” do caso Lula evocadas nos atos anteriores duraram, segundo o próprio Moro, até a sua condenação e recolhimento à sede da Polícia Federal. Depois disso, Moro entendeu por bem falar em ausência de privilégios ou de tratamento diferenciado ao ex-presidente, que, até ali, tivera uma persecução amplamente singularizada.

A despeito das declarações de Moro, que insiste em ser um juiz para as mídias e em angariar apoio popular, agindo dentro do script de seu texto de 2004, e fora das condutas prescritas pela Lei Orgânica da Magistratura, o tratamento de Lula segue sendo pautado pela violação de direitos. Segue sendo força. Já preso na carceragem da Polícia Federal, os advogados requereram a realização de visita da parte de governadores, em consonância ao previsto no art. 41 da Lei de Execução Penal, e no entanto, os governadores foram impedidos de entrar.

A sequência de fatos (e não de direito) enumeradas aqui demonstra que as decisões de Moro, acolhidas e validadas pelos tribunais superiores, são obra da força. A legitimidade delas não é acolhida na lei e suas condutas estão para lá de republicanas, como o juiz tenta demonstrar.

Ele é um desses personagens risíveis se não fossem úteis a um projeto do uso da força em nome da garantia dos privilégios. Se acompanharmos suas decisões e as cenas que protagonizou logo veremos grandes asas crescerem em sua imagem. Asas que encobriram o direito com a imago de um personagem masculino, ventríloquo de artigos de lei que se esvaziam de sentido diante das decisões no campo burocrático baseadas na força, na trama alcoviteira, e na imagem antidemocrática de um homem criado sabendo que tudo pode, e que a nada responde. Assim o sistema de justiça tem criado tantos outros personagens. Tantas asas. Que servem para serem cortadas depois de terminado o serviço.

Diante de um sistema de justiça que encena direito quando na verdade realiza força, a saída é apenas pela política. Na pressão popular, nas ruas e na resistência democrática diante de decisões ilegais e da destruição de direitos.

Notas e Referências:

[1] JARDIM, Afrânio Silva, O ex-presidente Lula é condenado por um órgão jurisdicional incompetente. Equívocos em relação à competência do juiz Sérgio Moro na chamada Operação Lava Jato, in: PRONER, Carol et al (Orgs.), Comentários a uma sentença anunciada: o processo Lula, 1a. São Paulo: Canal 6, 2017, p. 29–31.

 

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