As Artes Visuais e o Direito

27/10/2015

Por Ezilda Melo - 27/10/2015

Gombrinch[1] ao escrever sobre arte e artistas diz que “nada existe realmente a que se possa dar o nome Arte. Existem somente artistas”. É a partir dessa colocação que se trabalha, neste ensaio sobre a não cegueira e o direito, o conceito de arte. Assim, a arte em si não existe, o que existe são as produções humanas que valoramos. Nesta mesma linha, pode-se questionar sobre outro conceito: o que são artes visuais? O conceito encontra-se na própria expressão: trata-se das visualidades construídas pelo homem, em momentos histórico-geográficos diversos, tendo como exemplo de artes visuais, os trabalhos desenvolvidos na área de escultura, pintura, gravura, desenho, fotografia, xilogravura, grafite, web design, arquitetura, cinema, televisão, moda e tantas outras intervenções construídas visualmente pelo homem[2].

Num segundo momento pode-se questionar se estes exemplos de fontes podem ser usadas pelos cientistas sociais, em especial pelos juristas? E a resposta é sim e a justificativa é bem simples: até o final do século XX o que perdurou como fonte do Direito em seu sentido formal foram as leis, vistas como lugar de construção do pensamento jurídico vigente. Preferência, portanto, por um direito legislado e escrito. No entanto, muito material foi construído sobre o Direito em vários lugares da arte: por exemplo, a beleza da arquitetura na construção do Supremo Tribunal Federal, pensada  artisticamente por Niemeyer; os bustos esculpidos de vários juristas brasileiros que emolduram paredes e salas do nosso Judiciário; as matérias do cinema dos documentários, televisão e revistas sobre o Direito; fotografias[3] e instalações sobre temas jurídicos; grafites feitos em muitos muros de nosso país, com apelo social e jurídico; pinturas, desenhos, caricaturas e xilogravuras sobre temas e pessoas do Direito; a moda dos personagens jurídicos, desde o comprimento de uma saia, o uso adequado de uma gravata, as cores da moda, as blogueiras jurídicas e o código de ética do advogado que disciplina o que vestir. Estes são exemplos de tantos outros temas que se inserem dentro dessa percepção visual, artística e esteticamente construída.

Estudar as imagens possibilita a inclusão da materialidade das representações visuais[4] no horizonte das preocupações e permite que se entendam essas visualidades como participantes das relações sociais dentro do aspecto cultural, portanto possibilita um reconhecimento de uma dimensão associada ao estético. Toma-se a ciência da natureza discursiva da imagem em decorrência do seu potencial informativo. As relações entre o Direito e as artes visuais ampliam novos horizontes investigativos, pois iluminam as imagens com informações jurídico-interpretativas externas a elas.

O procedimento metodológico, um modelo teórico para tentar explicar a arte, proposto por Eco em sua Obra Aberta[5] pode ser utilizado para a Ciência do Direito, se esta ciência for concebida dentro de uma estética da arte da vida[6]. Utilizando-se, portanto, as fontes visuais no Direito não se quer estudar propriamente a fonte visual como modismo. O efeito é ampliar o entendimento maior da sociedade, observar suas transformações e conceber que o objeto da pesquisa continua sendo a sociedade, em seu viés jurídico, dentro de uma abordagem cultural[7] e mental.

Ao se perceber as artes visuais, as imagens como coisas, pode-se verificar que assumem vários papeis e produzem diversos efeitos, inclusive o de ser fonte documental. O Direito não pode ser estudado apenas com base na fundamentação escrita; há necessidade de descentralizar[8] esse saber e ampliar sua utilização em outros níveis de construção humana.

É um desafio fazer o Direito com imagens e a partir do visual? É e está lançado para todos que produzem saber sobre esta ciência, porque há necessidade desse reconhecimento o quanto antes para que a cegueira da Justiça[9] não continue como um mau presságio de Édipo[10]. Em “A Janela da Alma[11]” há uma entrevista com Evgen Bavcar[12], fotógrafo cego, que afirma ser necessário o equilíbrio entre verbo e imagem. Por este motivo, acredita-se que as imagens podem ser trabalhadas contextualmente dentro do texto jurídico escrito. Nem o olhar do artista, nem o olhar do jurista são neutros, por isso as artes visuais são uma construção narrativa de sentidos. Reflete-se, por exemplo, sobre a pintura “Justiça”, de Rafael Sanzio[13]:

Imagem

Esse afresco de 1520 retrata a deusa da Justiça sem o uso das vendas. O que essa imagem provoca no discurso imagético-discursivo[14] do Direito? O olhar[15] se viciou, enclausurou-se dentro de uma interpretação martelada ou há possibilidade de novos olhares? Quem pode responder isso é uma nova geração pensante do Direito, que traz para esse debate a importância de trabalhar o jurídico a partir de fontes que ficaram silenciadas e esquecidas por muito tempo.  O poeta Manoel de Barros[16] ensina: “a arte não tem pensa: o olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê”. Reafirma-se que as artes visuais são fontes documentais para o Direito. Sendo assim, é preciso transver as ciências, é preciso transver o mundo; é preciso transver o Direito. A estética do Direito está na beleza de fazer sentido e sentir.


Notas e Referências:

[1] GOMBRICH, E.H. A História da Arte. Tradução: Álvaro Cabral. Reimpr. Rio de Janeiro: LTC, 2012. p.15

[2] FOUCAULT, Michel.  Estética: literatura e pintura, música e cinema. Coleção Ditos e Escritos III. Tradução de Inês A. D. Barbosa. Rio de Janeiro/São Paulo: Forense Editora, 2001.

[3] DUBOIS, Philippe. O Ato fotográfico e outros ensaios.  Tradução: Marina Appenzeller. – Campinas, SP: Papirus, 1993.

[4] MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. “Fontes Visuais, cultura visual, História Visual. Balanço Provisório, propostas cautelares”. In: Revista Brasileira de História. São Paulo. v. 3 – n. 45. p. 11 – 36. 2003

[5] ECO, Umberto. Obra Aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. Tradução: Giovanni Cutolo. São Paulo: Perspectiva, 2012.

[6] BAUMAN, Zygmunt. A Arte da Vida. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

[7] CHARTIER, Roger. A História cultural entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.

[8] DERRIDA, Jacques. Pensar a Desconstrução. Rio de Janeiro: Estação Liberdade, 2005.

[9] FRANCA FILHO, Marcilio Toscano. A Cegueira da Justiça – diálogo iconográfico entre arte e direito. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2003.

[10] Na história de Édipo o único a advertir sobre os acontecimentos foi o personagem cego, situação que reflete diretamente no dilema entre a visão e o olhar, o ato de enxergar e a capacidade de ver.

[11] JANELA DA ALMA. Direção de João Jardim e Walter Carvalho. Produção de Flávio R. Tambellini. Rio de Janeiro: Copacabana Filmes, 2002. 1 DVD (73min), son., color.

[12] BAVCAR, Evgen. A luz e o cego. In: NOVAES, Adauto (org.). Artepensamento. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

[13] Justice (Raffaello Sanzio). Afresco (ca. 1520). Sala di Constantino, Palazzi Pontifici, Vatican. Disponível em: <http://www.wga.hu/html_m/r/raphael/4stanze/4constan>

[14] CERTEAU, Michel.  A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Tradução: Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1994.

[15] CHAUÍ, Marilena. Janelas da Alma, Espelhos do Mundo. In: NOVAES, Adauto (Org.). O olhar. São Paulo: Cia das Letras, 1998.

[16] BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. 12. ed. Rio de Janeiro: Record, 2006.


Sem título-1

Ezilda Melo é Professora Universitária, Mestra em Direito Público pela UFBA. Especialista em Direito Público pelo Curso JusPodivm. Graduada em Direito pela UEPB e em História pela UFCG.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/7223307007394926www.ezildamelo.blogspot.com


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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