Coluna Defensoria e Sistema de Justiça / Coordenador Jorge Bheron, Gina Muniz e Eduardo Januário
Foi recentemente instituída na Câmara de Deputados a Comissão de Juristas para o enfrentamento ao Racismo. Uma das sessões dessa Comissão foi destinada à discussão dos desafios para a efetivação dos diversos direitos das comunidades quilombolas. Nessa ocasião, o jurista Paulo Fernando Soares Pereira[1], Procurador Federal e Doutor em Direito pela Universidade de Brasília, constatou o que havia em comum entre todos os desafios até então identificados: a crônica e histórica insuficiência de recursos orçamentários necessários para tirar do papel os direitos constitucionais assegurados à população negra.
Na referida sessão, todas as manifestações identificavam graus elevados de dificuldades financeiras para implementação das políticas públicas que beneficiariam as comunidades quilombolas. Essa foi a justificativa encontrada, por exemplo, para explicar o porquê de o INCRA, mais de trinta anos depois da promulgação do art. 68 do ADCT, só ter concluído o processo de titulação em menos de 6% das terras quilombolas.
Do mesmo modo, observou-se, como uma demonstração do processo de invisibilização das comunidades quilombolas, a ausência de recursos orçamentários para o IBGE realizar o censo de 2021, que, pela primeira vez, incluiria o recorte étnico e a identificação da população quilombola do país.
Foi Paulo Soares Pereira quem, também nessa ocasião, sugeriu uma possível forma de enfrentamento ao racismo institucional na elaboração do orçamento público: medidas do que ele chamou de ações afirmativas orçamentárias. A expressão, ainda pouco conhecida, encontrou ressonância na manifestação de Sílvio Almeida, um dos Relatores da Comissão de Juristas.
O objetivo deste artigo é justamente estabelecer um diálogo com esses dois juristas sobre a ideia das ações afirmativas orçamentárias, que tem potencial para modificar concretamente a forma como o país define o seu compromisso com a superação do racismo[2].
Para negritar o debate, considerando os limites deste espaço e os seus fins, serão utilizados dados secundários que patenteiam o racismo e a desigualdade que dele decorre. Em seguida, apresentar-se-á a involução do orçamento destinado a políticas públicas que poderiam beneficiar a população negra. Estabelecida a análise contextual, serão apresentados os fundamentos jurídicos que autorizariam a adoção das chamadas ações afirmativas orçamentárias. Por fim, comentar-se-á o papel que o Supremo Tribunal Federal pode desempenhar na garantia dessas ações afirmativas.
A relação cruel entre o racismo e a histórica exclusão do acesso da população negra aos direitos sociais e econômicos, especialmente no contexto da pandemia do COVID-19, foi bem percebida no trabalho apresentado por Roberta Gondim Oliveira et al., na revista acadêmica Cadernos de Saúde Pública. Com base em dados oficiais, as pesquisadoras ressaltaram a assombrosa desigualdade social e racial vivenciada no país. Para elas, “nos últimos anos, vê-se um aumento dos indicadores de desigualdade, atingindo sobretudo a população negra” [3].
De fato, com base nos dados do IBGE sobre o acesso à cobertura de saneamento básico, as referidas pesquisadoras destacam que “12,5% de negros residem em locais sem coleta de lixo e apenas 6% da população branca; sem abastecimento de água por rede geral, os negros representam 17,9%, e brancos 11,5%; sem esgotamento sanitário por rede coletora ou pluvial, negros representam 42,8% da população contra 26,5% de brancos”[4]. A sobrevivência em condições de infraestrutura inadequada eleva, como se sabe, a exposição dessas comunidades a vetores de doença.
A desigualdade racial e social também se evidencia quando examinados os dados sobre renda. Roberta Gondim Oliveira et al., na pesquisa já mencionada, ressaltam, ainda, que “32,9% dos negros compõem a parcela de brasileiros que vivem com até USD 5,50 por dia, além daqueles que vivem na linha da extrema pobreza, com rendimento de até USD 1,90 por dia (8,8%). Apesar de corresponderem, em 2018, a 55,8% da população nacional, são 64% dos desocupados e 66,1% dos subutilizados”[5].
Todos esses números revelam que o fim da escravidão não importou o fim dos efeitos do colonialismo na segregação social fundada estruturalmente sobre os critérios raciais[6]. Como assevera Silvio Almeida, “as instituições são apenas a materialização de uma estrutura social ou de um modo de socialização que tem o racismo como um de seus componentes orgânicos”[7]. O racismo é, pois, estrutural e, por isso mesmo, continua abissal, no Brasil, a distância entre brancos e negros no gozo dos direitos civis e políticos e, especialmente, no gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais.
Boa parte das causas para a manutenção dessa clivagem racial e social encontra-se na desigual distribuição dos recursos orçamentários entre as diversas políticas públicas. Convocamos, mais uma vez, Silvio Almeida para o diálogo: “falar de raça e economia é essencialmente falar sobre desigualdade”[8]. De fato, nitidamente, são particularmente subfinanciadas aquelas políticas que poderiam servir para a redistribuição de riquezas ou, ao menos, para a garantia do usufruto mínimo dos direitos fundamentais por parte das comunidades negras.
Aliás, a desestruturação das políticas públicas voltadas à promoção da igualdade racial foi, de fato, acelerada nos últimos anos. Esse fenômeno notabilizou-se entre os anos de 2015 a 2019[9]. Para Carmela Zigoni, o racismo institucional se expressa de modo “flagrante” já em 2016, quando “as verbas destinadas à promoção da igualdade racial representavam somente 0,08% do Orçamento Geral da União (OGU), considerando ações de saúde, educação, regularização fundiária de territórios quilombolas e as da SEPPIR”[10].
A manifestação do racismo institucional no orçamento público prosseguiu no período subsequente. Segundo o Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), “não existem mais políticas públicas específicas para comunidades quilombolas ou de igualdade racial no Plano Plurianual (PPA) 2020–2023” [11]. O INESC ressalta, ainda, que, a partir de 2020, uma vez que esse programa foi extinto do PPA, passou-se a executar somente “restos a pagar de anos anteriores, no valor de R$ 2,4 milhões [...], sem novos recursos autorizados”[12].
Diante da constatação de omissões históricas e inconstitucionais da União na implementação dos direitos econômicos, sociais e culturais das comunidades quilombolas, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e alguns partidos políticos ajuizaram uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), tombada sob o nº 742. No âmbito da Comissão instituída por determinação do STF, nessa ADPF, a União utilizou, como alegação para a manutenção do descumprimento dos preceitos fundamentais, justamente as supostas dificuldades orçamentárias e a necessidade de observância do “teto de gastos”.
A austeridade fiscal não pode, todavia, servir de fundamento para aniquilação de direitos fundamentais. Sobre o tema, o Conselho de Direitos Humanos da ONU (A/HRC/40/57) acolheu os Princípios Orientadores sobre os efeitos da dívida externa e outras obrigações financeiras internacionais dos Estados no pleno gozo dos direitos humanos. Merecem destaque os seguintes princípios:
Princípio 2. Os governos têm a obrigação de respeitar, proteger e cumprir todos os direitos humanos em todos os momentos nas suas políticas fiscais e de reforma económica.
Princípio 9. Os Estados devem elaborar as suas políticas de reforma económica de forma a reservar o máximo de recursos disponíveis para o exercício progressivo dos direitos humanos e que não resultem num inadmissível retrocesso na execução dos mesmos[13].
Esses princípios devem servir para a orientação dos Estados diante das escolhas que precisam ser realizadas na definição das reformas econômicas e na aprovação dos orçamentos públicos. É imperioso que, mesmo em um contexto de austeridade fiscal, continuem prevalecendo os programas que realizam os direitos humanos, especialmente aqueles programas destinados a grupos sociais mais vulnerabilizados. No Brasil, como visto, em relação às comunidades quilombolas, fez-se exatamente o inverso: extinguiu-se o programa destinado à promoção da igualdade racial.
Já se demonstrou aqui que, sem a definição de um orçamento mínimo, imposto pelo próprio núcleo essencial dos direitos fundamentais previstos na Constituição, a desigualdade racial (e social) permanecerá como uma cicatriz (aparentemente) indelével do passado (presente) escravocrata de nossa sociedade.
Para a superação dessas marcas do racismo, a sociedade contemporânea já desenvolveu mecanismos jurídicos reconhecidos como legítimos internacionalmente. Entre tais instrumentos, destacam-se justamente as chamadas ações afirmativas, que se constituem em medidas de discriminação positiva, por meio das quais se confere temporariamente tratamento diferenciado para grupos sociais que os demandam, visando atingir uma situação final de isonomia[14].
Essas políticas de ações afirmativas encontram respaldo no art. I.4 da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, adotada pela Resolução nº 2.106 (XX) da Assembleia Geral das Nações Unidas, em dezembro de 1965.
Elas estão também em consonância com os objetivos fundamentais da República previstos no art. 3º da Constituição de 1988. Além disso, o constitucionalismo brasileiro reconhece que o art. 5º, caput e inciso I, da Constituição insculpiu o princípio da igualdade no seu sentido material, que possibilita medidas de discriminação positiva para permitir uma equalização de oportunidades e de condições materiais entre pessoas que se encontram, por razões históricas ou circunstanciais, em situação de desigualdade.
Ora, como satisfazer concreta e efetivamente esses preceitos constitucionais, se não se destinam recursos orçamentários suficientes? A doutrina branca das normas constitucionais programáticas já não convence. É preciso levar à sério o que está escrito na Constituição e proteger as minorias sociais da tirania do discurso majoritário.
Não é demais lembrar que, em 2012, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a constitucionalidade da adoção de cotas para negros em universidades, no julgamento da ADPF nº 186. Do mesmo modo, em 2017, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADC nº 41, considerou plenamente constitucional a Lei nº12.990/2014, que previa a reserva de 20% das vagas oferecidas em concursos públicos para negros.
Para enfrentar adequadamente o racismo estrutural e a sua manifestação institucional no orçamento público, diante da relutância racista que até aqui se observou, parece mesmo imprescindível a adoção das denominadas ações afirmativas orçamentárias.
Embora ainda se constituam em um conceito em construção, as chamadas ações afirmativas orçamentárias poderiam se dividir em, ao menos, dois aspectos. Primeiramente, elas se dirigiriam ao próprio Legislador, com a exigência de previsão, nas leis orçamentárias, de valores suficientes para garantir a efetivação do núcleo essencial das políticas que decorrem dos direitos constitucionais das comunidades negras, rurais ou urbanas, proibindo-se o retrocesso e, com maior razão, a extinção de programas que tenham essa destinação. Além disso, em segundo lugar, destinar-se-iam também ao Poder Executivo, proibindo-o de realizar o contingenciamento no orçamento aprovado pelo Congresso Nacional sobre as verbas destinadas às políticas públicas de enfrentamento à desigualdade racial.
Enquanto não alterado o quadro de sub-representação política e enquanto não superado esse bloqueio institucional, vislumbra-se mesmo a possibilidade (necessidade) de provocar o Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição e dos seus valores fundamentais, para que exerça o adequado controle jurisdicional das omissões inconstitucionais e concretize judicialmente as medidas associadas às ações afirmativas orçamentárias.
Medidas semelhantes às que aqui são sustentadas já foram, aliás, recentemente determinadas no bojo da ADPF 709, por decisão do Min. Luís Roberto Barroso, que julgou insuficiente o argumento da FUNAI de indisponibilidade de recursos e de servidores para atender às demandas das comunidades indígenas durante a pandemia e decidiu que “devem-se providenciar a abertura de crédito extraordinário e a contratação dos servidores necessários”.
Assim, de modo semelhante, para garantir a eficácia da decisão estruturante proferida pela mesma Suprema Corte, agora na ADPF nº 742, é fundamental que se imponham também aí medidas de ações afirmativas orçamentárias, conforme as acima sugeridas, assegurando recursos mínimos suficientes para efetivar o direito à saúde, à segurança alimentar e à proteção territorial das comunidades quilombolas, especialmente no contexto da pandemia, mas também enquanto persistir a execrável desigualdade racial que vivemos no país.
Notas e Referências
[1] Paulo Soares Pereira é também autor de uma obra eloquente sobre as políticas públicas de preservação do patrimônio quilombola. Cf.: PEREIRA, Paulo Fernando Soares. Os quilombos e a nação: inclusão constitucional, políticas públicas e antirracismo patrimonial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.
[2] Como ensina Nilma Lino Gomes, o racismo pode ser visto tanto como um comportamento de aversão ou de ódio praticado contra pessoas que “possuem um pertencimento racial como um conjunto de ideias e imagens referentes aos grupos humanos que acreditam na existência de raças superiores e inferiores”. GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão. In: HENRIQUES, Ricardo (org.). Educação anti-racista: caminhos abertos pela lei federal nº 10.639/03. Brasília: SECAD/MEC, 2005, p. 52-53.
[3] OLIVEIRA, Roberta Gondim de et al. Desigualdades raciais e a morte como horizonte: considerações sobre a COVID-19 e o racismo estrutural. Cadernos de Saúde Pública [online]. v. 36, n. 9 [Acessado 17 Abril 2021]
[4] Idem.
[5] Idem.
[6] Silvio Almeida, citando Charles Hamilton e Kwame Ture, também afirma que o racismo institucional é uma versão do colonialismo e que ele é menos evidente, menos identificável, porém não menos destrutivo da vida humana. Cf.: ALMEIDA, Silvio. O que é o racismo estrutural?. Belo Horizonte: Letramento, 2018, p. 33-35
[7] ALMEIDA, Silvio. O que é o racismo estrutural?. Belo Horizonte: Letramento, 2018, p. 36.
[8] Idem, p. 121.
[9] ZIGONI, Carmela. A questão do racismo no orçamento público. In: XAVIER, Elaine de Melo. Gênero e raça no orçamento público brasileiro. Brasília: Assecor, 2020, p. 53. Disponível em: https://www.assecor.org.br/files/1815/9802/7678/Genero_e_Raca_no_Orcamento_Publico_Brasileiro_-_Org._Elaine_de_Melo__Xavier.pdf
[10] Idem, p. 55. 5
[11] 6 INESC. Um país sufocado: balanço do Orçamento Geral da União 2020. Brasília: Inesc, 2021. Disponível em: https://www.inesc.org.br/wp-content/uploads/2021/04/BGU_Completo-V06.pdf Acesso em 21/04/21.
[12] INESC. Um país sufocado: balanço do Orçamento Geral da União 2020. Brasília: Inesc, 2021, p. 78.
[13] ONU. Princípios Orientadores sobre Estudos de Impacto em Direitos Humanos e Reformas Económicas. Disponível em: https://www.ohchr.org/Documents/Issues/IEDebt/GuidePrinciples_PT.pdf. Acesso em: 18/04/21.
[14] 7 RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 620.
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