Artigo 47. Hitman é o Direito

09/12/2018

            Stealth é uma expressão utilizada no mundo gamer para determinar um estilo de jogo próprio. Esse estilo de jogo pode ser traduzido em sua palavra de definição como “furtividade” e “discrição”[1], em que o protagonista deve ocupar espaços disfarçados sem chamar a atenção para poder concluir as fases do jogo que, na maioria das vezes, culmina com a morte do antagonista. É, portanto, um jogo de paciência, sendo que muitos gamers não gostam do estilo justamente por este aspecto. Trata-se de uma forma diferente em tudo dos grandes jogos de ação.

            “Hitman: Agent 47” é um jogo lançado em 2000 que preza pelo gênero Stealth, onde o jogador utiliza-se do Agente 47 para cumprir missões e, assim, passar as fases do jogo. O sucesso foi tamanho que o jogo foi adaptado para as telas de cinema, com o filme homônimo lançado em 2007[2].

            Tanto no vídeo game quanto na filmagem, a história do Agente 47 – vivido por Timothy Olyphant – é a de um ser-humano criado para matar, uma espécie de matador de aluguel preparado durante muito tempo para ser um assassino profissional.

            Os agentes da ICA – Agência Internacional de Contrato –, são desenvolvidos para se tornarem assassinos invencíveis e, o Agente 47 é a fórmula que deu certo, sendo o chamado assassino perfeito. No filme ele se vê envolto em uma teia de conspirações políticas que o faz perseguido pela Interpol e pelos Militares Russos. Daí, então, seu destino é salvar-se e salvar Nikka, uma amante do Presidente Russo que teria sido usada como forma de atrair o Agente 47 para sua própria morte através de uma cadeia de informações dissonantes da ICA.

            O Agente 47 é vazio de sentimentos. Cheio de sentidos, todos aguçados pelo treinamento recebido. Mas não tem moral, ética ou qualquer coisa que valore a pessoa. Seu perfil ético único é de entregar o trabalho contratado, ou seja, matar a pessoa certa. Deste prisma, pode-se dizer que é um profissional dedicado e perfeccionista.

            Feito para não ter relações pessoais, tem extrema dificuldade em estar com Nikka, o que fica evidente em inúmeras passagens da filmagem. Agente 47 é a personificação do objetivismo, não tolera debates subjetivos, especialmente sobre aquilo que tem de fazer. Não há espaço para conflitos éticos, pois não há qualquer outra postura axiológica em seu ‘eu’ que não a de cumprir com a missão que lhe é imposta. Diz-se que é o agente perfeito justamente por comportar apenas o objetivismo puro na condução de seus atos.

            Por isso aqui observamos Hitman como sendo o Direito – compreendido pela pretensão do positivismo exegético. Examinando a Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen, constatamos que a ideia central do pensamento é cingir o Direito de qualquer alegoria de valor e posicioná-lo estritamente à condição de fato – sendo o Direito uma ordem de conduta humana e sendo ordem um “sistema de normas cuja unidade pelo fato de todas elas terem o mesmo fundamento de validade”[3].

            A partir deste ponto de vista, o Direito não aceita subjetividades e luta incansavelmente pelo seu fim objetivo – como o Agente 47. O Assassino não elabora como as coisas devem ser, mas como é. É a ciência jurídica e não a política do Direito.

Quando a si própria se designa como “pura” teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental.[4]

            O Agente 47 quer libertar o assassinato contratado de todos os elementos que são estranhos ao fato. Está desvestido de qualquer acepção moral porque sua condição axiológica não pode, não deve e não interfere naquilo que vai ser feito. O Direito não pode sucumbir a ditames morais. A moral não combina com o Direito, devendo ser expurgada desse constructo puramente objetivo.

            A observação proposta é que Hitman é o Direito como Teoria Pura, porque exclui de qualquer análise prolegômenos morais que possam interferir na interpretação jurisdicional ou na atividade homicida – Agente 47 é um homem vazio de valores e o Direito é uma ciência vazia de valores. Ambos, também, não possuem desejos, somente finalidades. Servem para aquilo que foram projetados. A cena em que o Agente 47 é flertado por uma linda mulher no bar do Hotel sintetiza a frieza dos seus instintos que calaria a discussão entre os contratualistas Rousseau e Hobbes[5], como prejudicaria a pesquisa de Malinowski[6].

 

O sentido objetivo daquilo que seria um ato de vontade é a definição da norma jurídica para Kelsen. Em sua “Teoria Pura do Direito”, há todo um raciocínio científico que enseja na situação do Direito enquanto algo que pode (e deve) ser analisado pela perspectiva da ciência jurídica, isto é, o Direito enquanto algo autônomo – fundador e gerador de sua própria condição, de sua existência, de sua validade – esta que remete à norma fundamental que fundaciona e ampara o Direito enquanto tal. Diferentemente da causalidade que regula o mundo natural (ação e reação; consequências naturais), o contexto jurídico se estabelece por relações de inferências, ou seja, é o fenômeno da imputação que faz com que o Direito assim o seja. É pela relação “ser” e “dever-ser” que o Direito se estabelece, uma vez que a implicação de uma sanção ante ao não atendimento da expectativa de uma norma (jurídica) é condição de possibilidade para esse plano da ciência jurídica. Essa condição de imputação que erige o funcionamento do Direito por essa perspectiva está presente no Agente 47 ao considerar que o seu “sistema de funcionamento” é regulado por essa mesma lógica: a inferência do cumprimento de sua missão decorre da imputação que é a ordem estabelecida nesse sentido. Não há espaço para se questionar axiologicamente a medida, a justeza ou a real necessidade da ordem dada, uma vez que o Agente 47 carece de qualquer base que lhe possibilite a ingerência. É, portanto, um vazio de valores. A pensada e arquitetada objetividade pura que se vê como um resultado exitoso.

Kelsen estabelece o enfoque de sua teoria, a qual visa eliminar os fatores que não se situam no âmbito do Direito enquanto tal – daí a necessidade de se estabelecer uma ciência do direito a fim de que essa análise seja possível. Até mesmo a análise da contrariedade (antinomias) pelo viés do verdadeiro ou falso é afastada da Teoria Pura, pois assim estar-se-ia fugindo do campo de análise da ciência jurídica – a permissão se dá apenas pela ponderação entre validade e invalidade. Essa proposta de pureza, que é construída de maneira muito bem aprofundada, gera encanto. Galanteia. Convence. É o objetivismo que se objetiva. Oportuna aqui, como uma espécie de contraponto (ou qualquer coisa do tipo) à pretensão do purismo, a menção à Warat:

[...] os juristas têm uma compreensão heterônoma das significações do Direito, como fundamento da instituição imaginária das significações do Direito na sociedade. [...] os encarregados de aplicar as leis, os produtores das teorias jurídicas, os professores das escolas de Direito (os construtores das significações jurídicas), forjam uma realidade imaginária (colocada na perspectiva do senso comum) que fazem prevalecer com naturalismo um verdadeiro mundo de faz-de-conta instituído como realidade natural do Direito. Uma realidade imaginária que poderá ser considerada mítica, mágica (no sentido freudiano), capturadora, extravagante, mas que resulta imprescindível para própria configuração do Direito na sociedade. A interpretação da lei seria impossível se os juristas decidissem sair da realidade mágica por eles mesmos instaurada. Como poderia interpretar-se a lei deixando de acreditar no efeito mágico de juízes imbuídos do atributo da neutralidade?[7]

            A dúvida perdurará sempre perseguindo a pesquisa do Direito. Se estamos, realmente, frente à possibilidade de vazio valorativo da ciência ou se apenas estamos contemplando Fake Plastic Trees[8] como se verdadeiras fossem. Em tempo onde a verdade é questionada, ou, mais ainda, em tempos em que a própria realidade é questionada (“a vida humana é a interpretação espontânea da realidade de si mesma e de todas as coisas”)[9], tencionar que o vazio de valores é uma certeza parece exprimir uma certeza científica que nem a própria ciência autoriza. Afinal de contas, a ciência se faz da dúvida e não da certeza, mesmo que isso debande a sanidade e a ingenuidade dos pensadores – a dúvida é o preço da pureza (Sartre). Aqui, nos parece razoável entender que ignorar a dúvida é um pagamento à pureza do Direito.

A dialética imposta entre uma ciência pura e um Direito que se aproxima da moral nas suas suas entrelinhas interpretativas é um dilema necessário às discussões modernas do Direito. No Direito não há espaço para tabus, nem os seus próprios.

 

 

Notas e Referências

[1] Mais sobre o gênero em http://www.nerdmaldito.com/2012/06/voce-sabe-o-que-sao-jogos-do-estilo.html.

[2] Mais informações em http://www.adorocinema.com/filmes/filme-61318/.

[3] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6ª ed. São Paulo : Martins Fontes, 1998. p. 5-30.

[4] Idem, p. 1.

[5] Qual seria a condição dos homens no estado de natureza? Rousseau e Hobbes, em tríade a Locke, formam parte da doutrina que reconhece o Direito Natural (ius naturale). Contudo, enquanto Rousseau acreditava que o estado anterior ao de organização estatal era de plena paz, onde há a figura do bom selvagem (“o homem nasce bom, a sociedade é que o corrompe”), sendo o processo de civilização do homem uma forma de afastamento do homem de seu estado de natureza (benigno), Hobbes acreditava que o “homem é o lobo do homem” e que, em estado natural, vive em verdadeiro e constante estado de guerra. Alguns autores, inclusive, situam a posição geográfica de ambos para determinar seu pensamento, enquanto Rouseau vive numa Suíça apaziguada, Hobbes está em meio à uma Inglaterra em chamas.  Fontes: HOBBES, Thomas. Leviatã: ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Tradução de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2002. Livros I e II; e ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2007. E, ainda, Síntese dos pensamentos opostos muito bem reflexionada por Victor Oliveira em “O Estado de Natureza em Hobbes e Rousseau | o homem, a liberdade e o Estado”, disponível em https://medium.com/@victoroliver/o-estado-de-natureza-em-hobbes-e-rousseau-o-homem-a-liberdade-e-o-estado-28e67487027a, acessado em 29 de novembro de 2018.

[6] Muitos se referem à Malinowski como o grande precursor da etnografia – como Lorena Campo in Campo, Lorena (2008). Diccionario básico de antropología. Editorial Abya-Yala. p. 77. Disponible en (https://dspace.ups.edu.ec/bitstream/123456789/11506/1/Diccionario%20basico%20de%20antropologia.pdf)., que dispõe que o trabalho de Malonowski realizado de dentro para fora, ou seja, num trabalho interior nos organismos sociais aponta para a importância da observação dos ritos e dos valores atribuídos a esses ritos pelo “selvagem”. Para mais Malinowski ver sua obra prima: Malinowski, Bronislaw. Crimen y costumbre en la sociedad salvaje. 1985. Barcelona.  

[7] WARAT, Luis Alberto. O Direito e sua Linguagem. 2ª Ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Frabris Editor, 1995. p. 119-120

[8] Fake Plastic Trees é uma canção da banda britânica Radiohead. Vinculada ao rock alternativo a banda de Thom Yorke é conhecida por suas letras profundas apoiadas num vocal inovador e em uma melodia expansiva que rebate, de todos os lados (letra e melodia), a alienação moderna. Mais em https://www.cifraclub.com.br/radiohead/fake-plastic-trees/letra/. Também vale constar as palavras de Moisés Pinto Neto: “... em ‘Fake Plastik Trees’, o mundo é falso e plastificado, cantado melancolicamente como a ausência da árvore real. (PINTO NETO, Moisés. Itinerários errantes do rock: dos Beatles ao Radiohead. Criminologia Cultural e Rock. Lumen Juris: Rio de Janeiro 2011. p. 137.

[9] LOPARIC, Zeljko. Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p. 17 in GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. O pós-modernismo jurídico: introdução a uma teoria antifundacionalista do Direito. Disponível em https://www.academia.edu/35700810/O_POS_MODERNISMO_JURIDICO?auto=download. Estrutura dialética de Loparic em virtude do pensamento de Martin Heidegger e Nietzsche muito bem explorada pelo texto de Godoy.

 

 

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