ARQUEOLOGIA, PATRIMÔNIO CULTURAL E DIREITO CONSTITUCIONAL NO BRASIL: DESAFIOS HISTÓRICOS, LIMITES E PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEAS        

06/01/2021

 “Fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: A Terra e a humanidade. Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza.”

Ailton Krenak (2019, p. 17)[1]

O presente artigo de cunho introdutório foi escrito com a finalidade de apontar alguns instrumentos teórico-conceituais acerca da Arqueologia, Patrimônio Cultural Material/Imaterial e Direito Constitucional no Brasil. Em virtude disto, foi necessário analisar e interpretar todas as constituições brasileiras elaboradas ao longo da história a começar pela primeira em 1824 e a última em 1988, trouxe também de maneira sucinta elementos históricos e contemporâneos para discutir e refletir sobre a epistemologia arqueológica desenvolvida, produzida e expandida no país. Em vista disso, o objetivo geral foi lançar luz sobre tais abordagens na intenção de abrir novos horizontes, fendas e perspectivas para os estudiosos das áreas sem jamais esgotar a discussão. Nesse sentido, a Desembargadora Federal no Tribunal Regional Federal da 3º. Região, Inês Virgínia Prado Soares corrobora que[2] “ O arcabouço principiológico ambiental é extremamente importante e influente na tutela dos bens arqueológicos, mas a aplicação desses princípios não abarca todas as situações de dano ou ameaça de dano ao patrimônio arqueológico, nem garante uma ampla possibilidade de se atingir sua efetiva proteção, em decorrência das especificidades que a disciplina e os bens arqueológicos possuem”.

Dito isso, apesar de seu balizamento diacrônico, a Arqueologia é uma teoria de conhecimento amplamente consolidada e relevante no Brasil a realizar pesquisa fundamental com dados da Pré-História — populações caçadores, coletores, pescadores, povoamentos, artes rupestres em cavernas, indústrias líticas, cerâmicas, etc., Arqueologia Histórica — arquitetura colonial e pré-colonial, colonialismo interno, guerras, diásporas e Etnoarqueologia — Arqueologia do Presente, Arqueologia Indígena, Arqueologia Colaborativa, à vista disso, a dialogar com díspares epistemologias tais como: História, Antropologia, Geografia, Ciências Sociais, Demografia, Ecologia, Biologia, Engenharia, Geologia, Linguística, todavia, ainda há uma lacuna no que concerne ao campo jurídico (Direito) especialmente na esfera jurisprudencial. Isso posto, pretendermos perpassar pelas Constituições Brasileiras que foram elaborados ao longo da história: 1824[3], 1891[4], 1934[5], 1937[6], 1946[7], 1967[8] e 1988[9]. É adiante refletir sobre o patrimônio cultural material e imaterial no transcorrer do tempo, em que por sua vez, constatam-se avanços tímidos em contexto de graves violações de populações tradicionais em diferentes horizontes, como podemos constatar diariamente nos principais veículos de comunicação do país.

Realizada essa descrição, é solene ressaltar que desde a Pré-História o ser humano (persona) busca materializar o universo ao seu redor e adjacência, mas não somente, também a instrumentalizar a sua cosmologia e imaginação sobre o imenso tempo-espaço geográfico — isto genericamente intitularmos de cultura material como é conhecido na ciência arqueológica. Neste preâmbulo paradigmático, as artes rupestres (pinturas e gravuras) elaboradas por populações pretéritas ou pré-coloniais caçadores-coletores-pescadores que se encontram em cavernas, paredes rochosas e pedras em beiras de oceanos, rios, lagos, lagoas, corixos ou mares são exemplos por excelências destas práticas milenares, seculares e atuais. Por todos estes aspectos, é extremamente necessário realizar uma discussão que possa abarcar tal debate ainda embrionária (em construção) no Brasil, para não dizer que praticamente não há pesquisas neste viés. Partindo desta perspectiva, nosso objetivo neste texto introdutório é procurar contemplar o tema da melhor maneira possível, mas para isto precisamos perpassar por caminhos historiográficos, jurídicos e constitucionais, haja vista, que a problemática é bastante recente, dessa maneira, não existem materiais suficientes disponibilizados para alicerçar-se de modo mais profundo. Por isto tudo, cabe contextualizar que a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO)[10] postula que “o momento é de reconhecimento dos direitos culturais como necessidade básica e direito dos cidadãos, o que conduz à busca de uma agenda integrada com as políticas sociais e de desenvolvimento”.

Dado o fatos históricos e vigentes acerca do patrimônio histórico-cultural, adequa-se postular que no âmbito jurídico — no florescer do século III, o Imperador Romano Marco Aurélio Severo Alexandre (Arca Cesareia, 1 de outubro de 208 {nascimento} — 19 de março de 235{morte}) punia severa e exemplarmente os indivíduos que demoliam e depredavam as construções históricas consideradas relevantes para a paisagem cultural da região. Já no Império Bizantino, no alvorecer do século IV, diretrizes coibiam transformações de fachadas e ornamentos culturais. Na Alemanha e na Itália, durante o período Barroco ocorreram reconstrução e conservação de castelos e catedrais. Na França, durante a Revolução de Napoleão Bonaparte houve um Decreto que passava todas as antiguidades ao Estado[11]. À vista disto, havia um código de conduta ética, que procurava conservar a arquitetura da cidade, dessarte, os moradores já tinham aulas de patrimônio cultural, onde se aprendiam “preservar” suas identidades socioculturais paras as gerações futuras. Em Roma no ano 1.162 depois de Cristo, o Senado postulou uma Lei que tinha como finalidade principal proteger a Coluna de Trajano erguida em 114 depois de Cristo, no qual o cidadão que se atrever atentar contra seria punido com a vida e seus bens retirados pela força imperial[12]. Por consequência[13], “Atribui­se ao romano Caio Clínio Mecenas, ministro do Império Romano entre 74 a.C. e 8 d.C, como criador do mecenato, ou seja, o ato de financiar um artista para produzir criações artísticas. Caio Mecenas realizou ações pioneiras de acolhimento e incentivo à cultura durante o império de Otávio Augusto (63 a.C.­14 d.C.)”.

Tendo em vista os aspectos evidenciados, ainda na França, isto já no século XX, entre 12-14 de novembro de 1970 na capital Paris, foi aprovado a Convenção Relativa às Medidas a Serem Adotadas para Proibir e Impedir a Importação, Exportação e Transferência de Propriedades Ilícitas dos Bens Culturais[14], que entrou em vigor no Brasil mediante o Decreto nº. 72.312, de 31 de maio de 1973[15].  Em vista disso, para compreendermos melhor esta problemática, os pesquisadores Rossano Lopes Bastos e Cristiane Derani destacam que[16] “O patrimônio histórico, ao longo do tempo tornou-se uma categoria de pensamento ligado à memória coletiva e a uma forma de preservação daqueles elementos que nos sãos próprios e representam as referências do saber, fazer e existir do nosso povo”. Mediante o exposto, deixamos claro que todas as sociedades, seja elas tradicionais ou não-tradicionais são dinâmicas, ou seja, passam por significativas mudanças, transformações e ressignificações cosmológicas ao decorrer do tempo —  e todas elas materializam seus trações socioculturais que são justamente o que intitularmos de identidade, alteridade, hábitos, costumes, culturas, ontologias, civilizações etc.

Trazendo essa discussão para o contexto brasileiro, a reflexão também não é nova, data de 1742, quando o Vice-Rei centralizado em André de Melo e Castro (4.º Conde das Galeias {dezembro de 1668 {nascimento} — 29 de janeiro de 1753 {morte}) [17], escreveu uma carta ao então Governador de Pernambuco, onde ordenava em paralisar imediatamente as reformas que estavam em cursos acerca do Palácio das Duas-Torres, monumento arquitetônico desenvolvido por Maurício de Nassau (nobre alemão-holandês, Dillenburg, 17 de junho de 1604 {nascimento} — Cleves, 20 de dezembro de 1679 {morte})[18]. Isto demonstra que a Coroa Portuguesa estava a pretender conservar sua história original na então Colônia Americana ou “Terra Selvagem”. Nessa logicidade, a levar em consideração o contexto histórico imperial, no ano de 1855 cabe discorrer sobre o Aviso, realizado pelo Conselheiro Luiz Pedreira de Couto Ferraz, que por sua vez informavam aos Presidentes das Províncias sobre a importância de conservar as características na restauração de monumentos históricos, sobretudo, a preservar as grafias nelas inscritas ou empregadas. Salientamos que ainda nessa época havia muitos arqueólogos amadores a realizar coleções etnográficos de diversos materiais que atualmente se encontram em vários museus no Brasil, Europa e Estados Unidos.

Nesse seguimento, evidenciarmos a participação efetiva da Sociedade Brasileira de Belas Artes em 1920, sobretudo, na pessoa do arqueólogo russo, Alberto Childe, a época na condição de curador do Museu Nacional. O pesquisador tinha por objetivo transformar todos os objetos, artefatos e sítios arqueológicos em patrimônio da nação, mas infelizmente seu projeto nem mesmo chegou ao Senado Federal. Na mesma década, em 1923, o Deputado Federal do Estado de Pernambuco, Luís Cedro trouxe à tona um Projeto de Lei que objetivava a criação de uma Inspetoria dos Monumentos Históricos. Mais adiante[19], “A nova repartição faria o tombamento dos imóveis históricos e dos de interesse artístico, fossem eles públicos ou particulares. Na fachada, ostentariam uma plaquinha com os dizeres “monumento nacional”. Não haveria expropriação, mas eles só seriam reformados mediante autorização e não poderiam ser demolidos. Outros projetos de lei semelhantes viriam em seguida”.

Dada a problemática teórica, e já entrando-se especificamente no século XX, mais precisamente no alvorecer de 1933, ano em que surgiu o primeiro Diploma Federal Brasileiro que viria a assegurar o patrimônio cultural — Decreto nº 22.928, de 12 de julho do referido ano[20]. Tal postulado ergueu a cidade Ouro Preto em Minas Gerais a condição de Monumento Nacional, onde “é dever do Poder Público defender o patrimônio artístico da Nação e que fazem parte das tradições de um povo os lugares em que se realizaram os grandes feitos da sua história”. Por conseguinte, a jurisdição constitucional brasileira ainda não reconhecia amplamente a preservação, manutenção e restauração do seu patrimônio cultural, a possibilitar o avanço significativo de empresa privada, onde diversos monumentos e sítios arqueológicos foram destruídos sem menor importância, vestígios  esses que até o presente momento se sentem falta, pois, valores incomensuráveis históricos, antropológicos, etno-históricos e arqueológicos foram perdidos — muitos de povos tradicionais como indígenas, quilombolas e camponeses tinham suas raízes nesses locais (sagrados e ritualísticos).

Diante dos dados apresentados, acontecimentos históricos nos que concernem à manutenção ou conservação de riquezas materiais culturais influenciaram fortemente o Brasil, principalmente, nos que se referem aos direitos sociais. Nessa perspectiva, se destacam a Constituição Mexicana de 1917[21], a Constituição de Weimar de 1919[22], evidentemente que com suas limitações, pois sabemos que posteriormente essa Constituição caiu por terra ao ceder espaço ao Regime Totalitário Nazista de Adolf Hitler que banhou à Europa de sangue inocente a causar por exemplo o Holocausto [23] (extermínio de judeus, homossexuais, ciganos, negros, pobres, mulheres etc.); a Primeira Guerra Mundial (1914-1918); a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 etc. Nesse contexto, a Constituição Brasileira de 1934 (Estado Novo impulsionado pelo sulista e militar Getúlio Vargas) determinou os arcabouços constitucionais em defesa nacional do patrimônio cultural — ao instaurar a incumbência ou missão social do domínio histórico-arqueológica (art. 133, inciso XVII). No Capítulo II, da Educação e da Cultura, art. 148, que: “Cabe à União, aos Estados e Municípios favorecer e animar o desenvolvimento das ciências, das artes, das letras e da cultura em geral, proteger os objetos de interesse histórico e o patrimônio artístico do país, bem como prestar assistência ao trabalhador intelectual”.

Neste sentido, ao estabelecer em art. 134 da Constituição de 1937, aprovado em 10 de novembro (Segunda República), onde o termo preservação foi mencionada pela primeira vez) que, “Os monumentos históricos, artísticos e naturais, assim como as paisagens ou os locais particularmente dotados pela natureza, gozam da proteção e dos cuidados especiais da Nação, dos Estados e dos Municípios. Os atentados contra eles cometidos serão equiparados aos cometidos contra o patrimônio nacional”. Tais leis trouxeram avanços significativos e fundamentais para a conjuntura, já que as primeiras constituições brasileiras de 1824 {a primeira, Brasil Império, outorgada em 25 de março de 1824}[24] e a de 1891 (Brasil República, 24 de fevereiro de 1891), apenas abordaram as culturas de maneira contextuais, dessa forma, sem referir-se diretamente a cultura material. Mas cabe sublinhar, que já nessa época havia várias pessoas de díspares classes sociais que defendiam princípios mais rígidos para a conservação do patrimônio material brasileiro, principalmente, por compreender que as identidades eram expressas na materialidade na esteira da construção de uma identidade sociocultural especificamente nacional.

A Constituição Brasileira de 1946, promulgada em 18 de setembro — aprofundou ainda mais a importância da cultura material, onde clarifica no seu art. 175 que, “As obras, monumentos e documentos de valor histórico e artístico, bem como os monumentos naturais, as paisagens e os locais dotados de particular beleza ficam sob a proteção do Poder Público”. A posteriori, já na Ditatura-Civil-Militar-Ocidental, a Constituição de 1967, que entrou em vigor no dia 15 de março em seu art. 172, já direcionava seu olhar mais para uma problemática científica-arqueológica, pois, “O amparo à cultura é dever do Estado. Parágrafo único. Ficam sob a proteção especial do Poder Público os documentos, as obras e os locais de valor histórico ou artístico, os monumentos e as paisagens naturais notáveis, bem como as jazidas arqueológicas”. Outrossim, a Emenda Constitucional de nº 1, de 17 de outubro de 1969 repetiu na íntegra o referido artigo. Mas cabe frisar que lei, apesar de reconhecer muitas coisas nos âmbitos da cultura material, não contemplava em sua totalidade, sobretudo, as características cosmológicas de diferentes povos ou etnias — o foco centralizava-se apenas na cultura macro ou cultura branca (patrimônio geral).

Levando-se em consideração tais pressupostos, somente através da Constituição Brasileira de 1988, promulgada em 05 de outubro, popularmente conhecida como sendo a Carta Magna, Constituição Cidadã) passou a reconhecer amplamente a patrimônio cultural, principalmente, sem desvincular da cultura imaterial (simbolismo). Este reconhecimento histórico está alicerçado no art. 216, onde “Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações de demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico arqueológico, paleontológico, ecológico e científico”.

A referida Constituição, de fato trouxe instrumentos inovadores como jamais visto  na história do país, mas a de ressaltar que apesar das leis existir no papel, seus cumprimentos não transcorrem como deveriam, pois, muitas empresas insistem violar os vestígios arqueológicos encontrados, até mesmo afrontar o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)[25] — autarquia fundado em 1937 e vinculado ao Governo Federal (Ministério do Turismo). É necessário fundamentar que na atual conjuntura, a referida instituição tem buscado distorcer as ações da Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB)[26] que é um órgão civil de caráter científico fundado em 1980, mundialmente conhecido por promover pesquisa de grande relevância para a pesquisa arqueológica praticada em território brasileiro — em diálogo permanente com a conjuntura latino-americana, europeia, estadunidense e outros.

Uma outra questão que precisa urgentemente ser mencionado nessa lógica compreensiva, trata-se de roubos de objetos ou artefatos indígenas e de demais povos tradicionais do Brasil, consequentemente, diversos colecionadores carregados de expertises coloniais e imperialistas têm se apropriado desses instrumentos cosmológicos a fim de comercializá-los nacional e internacionalmente. Por conseguinte, as autoridades constituídas (municipais, estaduais e federais) precisam ficar atento para coibir tal prática de apropriação indevida. Entendermos que muitos museus ou exposições foram construídos e projetados de maneira inapropriada ou errônea, onde, os verdadeiros detentores de tais objetos sagrados ou não nem se quer foram consultados, por isso mesmo, compreendemos que o Estado possui uma dívida histórica com tais culturas esquecidas, principalmente, as nativas (originárias) que apesar da ofensiva exterminadora de mais de cinco séculos permanecem resistentes e antes de mais nada, seus artefatos de memórias poéticas e narrativas históricas precisam retornar as suas origens ou pelos menos o Estado e demais instituições garantir que seus “donos” tenham acessos.

Em virtude dos elementos elencados, precisamos barrar as exposições de objetos roubados — as inúmeras etnias existentes neste país com suas diversidades cosmológicas não podem em hipótese algum servir de cobaias, amostragens ou laboratórios gratuitos com testes de qualidade para os Karay Kuera (homens brancos na língua Guarani e Kaiowá de Mato Grosso do Sul). Com base nisso tudo, os brancos ou não-indígenas, sobretudo, aqueles que procuram aniquilar ou extinguir as culturas indígenas embasados em práticas genocidas precisam entender de uma vez por toda que os indígenas através de suas cosmovisões infinitas relacionadas à sustentabilidade da natureza física, o ambiente ecológico natural, o animismo sobre a importância de todos os seres vivos dos campos e das florestas, as plantas milenares/seculares que ocasionam as medicinas tradicionais, a valorização dos artefatos como elo fundamental da existência humana, o tempo-espaço, as mitologias acerca do surgimento e desenvolvimento do universo e tantos outros, que ao nosso entender são capazes de transformar o mundo — suas essências são fundamentais para todo/as nós na Era Antropocênica[27].

Nesse viés, corrobora-se pela literatura constitucional (art. 216, § 1º. c/c 23, III e IV) que há um iminente compromisso, dever e engajamento de todos/as os brasileiros/as e organizações públicas e de setores privados na salvaguarda e reconhecimento dos valores culturais. Em vista dos argumentos apresentados, incumbe sintetizar que a manutenção do patrimônio cultural vai muito além da simples preservação, mas, garantir à liberdade de expressão tangível e intangível (artefatos indígenas, religiões de matriz africana, cosmovisões caipiras, ribeirinhas etc.), haja vista, que numerosos conceitos foram e estão sendo repensados, ressignificados e re-transformados. Neste entrelaçar, o patrimônio cultural promoveu os direitos culturais (inicialmente) e posteriormente os direitos fundamentais. Tendo em vista os aspectos observados, é de primordial importância que o governo em diálogo colaborativo permanente e assistencial com a sociedade possa garantir esse direito que ainda se encontra à margem em relação ao direito tradicional positivista. Ainda nessa prisma, a UNESCO determina que o patrimônio imaterial são[28 “as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos os indivíduos, reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural.”

Portanto, destacarmos a importância e relevância da Lei 11.645/2008[29], que altera a Lei 9.394/1996, ampliação da Lei 10.639/2003, a instituir as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e cultura afro-brasileira e indígena”, que sem sombra de dúvida foi um marco, pois, possibilita que o patrimônio cultural seja abrangentemente discutido, apesar da disciplina História ainda não delimitar bem os conteúdos arqueológicos. Mas tudo isto está a correr um sério risco, pois o atual governo não demonstra interesse pela Educação Patrimonial, muito pelo contrário, inclusive objetiva legalizar a mineração em terras indígenas. Diversas instituições, como a Fundação Cultural Palmares (FCP) vêm realizando investida contra a história das culturas que foram marginalizadas ao longo da história. Sem falar do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), que recentemente nomeou um pastor evangélico para ser o Diretor do Patrimônio Imaterial. A atuação “estranhas” do IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), onde vêm sendo acusado por indígenas de dar suporte aos invasores em seus territórios de ocupações tradicionais. Sucateamento radical da FUNAI (Fundação Nacional do Índio), que tem desenvolvido ações truculentas contra os indígenas, sobretudo, dando suportes e guaridas aos ruralistas nos que tangem as demarcações de terras, por exemplo a respeito do Marco Temporal (onde indígenas só podem requerer seus territórios caso tivessem no local no dia 05 de outubro de 1988 {ano da elaboração da última Constituição do Brasil})[30]. Essas e outras atividades ideologizadas colocam sob ameaças os direitos fundamentais indígenas e demais povos tradicionais do Brasil. A proteção, conservação e manutenção do patrimônio cultural material e imaterial brasileiro é dever de todos/as e precisamos exercitar isso diariamente. É finalmente, chega de preconceito, racismo, etnocídio, política histórico-genocida, Necropolítica[31] e Estado de Exceção[32] e Epistemicídio[33] contra as culturas não ocidental-judaica-cristã-capitalista, mas para isto temos que buscar uma saída diante da colonalidade do poder[34] que desde 1500 assola o Brasil.

 

Notas e Referências

[1]. KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. 57p.

[2]. SOARES, Inês Virgínia Prado. Proteção jurídica do patrimônio arqueológico no Brasil: fundamentos para efetividade da tutela em face de obras e atividades impactantes. Erechim: Habilis, 2007.

[3]. BRASIL. Constituição (1824). Constituição Política do Império do Brazil: Promulgada em 25 de março de 1824.  Rio de Janeiro, 1824. Disponível em:

<https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/137569/Constituicoes_Brasileiras_v1_1824.pdf>. Acesso em: 10/02/2019.

[4]. BRASIL. Constituição (1891). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil: Promulgada em 24 de fevereiro de 1891. Rio de Janeiro, 1891. Disponível em:

<https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/137570/Constituicoes_Brasileiras_v2_1891.pdf?sequence=5>. Acesso em: 10/02/2019.

[5]. BRASIL. Constituição (1934). Constituição dos Estados Unidos do Brasil: Promulgada em 16 de julho de 1934. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituicao34.htm>. Acesso em: 10/02/2019.

[6]. BRASIL. Constituição (1937). Constituição dos Estados Unidos do Brasil: Promulgada em 10 de novembro de 1937. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ Constituição/Constituicao37.htm>. Acesso em: 10/02/2019.

[7]. BRASIL. Constituição (1946). Constituição dos Estados Unidos do Brasil: Promulgada em 18 de setembro de 1946. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ Constituição/Constituicao46.htm>. Acesso em: 10/02/2019.

[8]. BRASIL. Constituição (1967). Constituição da República Federativa do Brasil: Promulgada em 15 de março de 1967. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ Constituição/Constituicao67.htm>. Acesso em: 10/02/2019.

[9]. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: Promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em:

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[12]. SOUZA MIRANDA, M. P. (2018). Constituição federal assegura ampla proteção ao patrimônio cultural do país. Consultor Jurídico (Online).

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[17]. GENI – 2017. André de Melo e Castro, vice-rei do Brasil. Acesso: 29/05/2020.

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[19]. JORNAL O EGO – Há cem anos, reviravolta cultural começava a se desenhar no Brasil. Disponível em:

<https://jornaloeco.com.br/cultura/ha-cem-anos-reviravolta-cultural-comecava-a-se-desenhar-no-brasil/>.  Acesso: 13/12/2020.

[20]. BRASIL. Decreto. nº 22.928, de 12 de julho de 1933. Disponível em:

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[21]. ROBL FILHO, I. N. (2017). Constituição mexicana de 1917 e os avanços dos direitos sociais no Brasil. Cuestiones Constitucionales: Revista Mexicana de Derecho Constitucional Núm. 36, enero-junio, 361-363.

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