A Câmara Municipal de Araraquara aprovou, em 09 de março de 2021, o Projeto de Lei (PL) nº 56/2021, de autoria do Executivo, que faculta a aquisição direta de vacinas contra a COVID-19 por pessoas jurídicas de direito privado. O Projeto foi transformado em Lei Ordinária nº 10.150, de 10 de março de 2021[1].
Curiosamente, no mesmo dia 10 de março de 2021, o Presidente da República sancionou a Lei Ordinária nº 14.125/2021, a qual dispõe sobre a responsabilidade civil relativa a eventos adversos pós-vacinação contra a COVID-19 e sobre a aquisição e distribuição de vacinas por pessoas jurídicas de direito privado[2].
A legislação federal, dentre outros assuntos, permite que o setor privado compre vacinas contra o Coronavírus, que tenham autorização temporária para uso emergencial, autorização excepcional e temporária para importação e distribuição ou registro sanitário concedidos pela Anvisa, observados outros critérios.
A edição de leis com assuntos semelhantes pelo Município de Araraquara e o Governo Federal não é coincidência. Segundo consta da justificativa do PL enviado à Câmara Municipal, “a propositura encampa integralmente disposição do Projeto de Lei Federal nº 534/2021”[3], transformado na Lei nº 14.125/2021 posteriormente.
Tanto é que o PL nº 56/2021 dispõe exatamente o mesmo texto do Artigo 2º da Lei Federal, com pequenas mudanças.
Sem adentrar no mérito da constitucionalidade ou competência da legislação municipal, até mesmo pelo decidido pelo Supremo Tribunal Federal (STF), na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 672[4], a Lei nº 10.150/2021 possui três pontos interessantes.
O primeiro se deve ao fato da legislação municipal ser aprovada um dia antes da sanção presidencial. O Presidente da República vetou três dispositivos da lei que haviam sido aprovados pelo Parlamento, entre eles o parágrafo 4º do Artigo 2º.
Como a aprovação na casa de leis municipal se deu antes da sanção do Presidente da República, existiam alguns riscos sobre a sua eficácia. Por exemplo, se houvesse veto presidencial sobre a autorização do setor privado comprar vacinas, tal “faculdade para aquisição de vacinas” inexistiria.
Nota-se que a lei federal “autoriza” e a lei municipal “faculta” a aquisição de vacinas contra a COVID-19.
O segundo ponto de destaque reside no critério a ser observado para compra dos imunizantes. A lei federal determina que durante a vacinação dos grupos prioritários definidos pelo Ministério da Saúde, as doses adquiridas pelas empresas sejam integralmente doadas ao Sistema Único de Saúde (SUS), a fim de serem utilizadas no âmbito do Programa Nacional de Imunizações (PNI).
De forma autônoma, Araraquara acrescentou a figura do gestor municipal nesse trâmite. Pela lei municipal, durante a imunização dos grupos prioritários, doses adquiridas pelas empresas deverão ser integralmente doadas ao gestor municipal do SUS, a fim de serem utilizadas no âmbito do PNI. A disposição se repete no parágrafo 1º, que trata do fracionamento das doses após a vacinação dos grupos prioritários.
Em tese, o município criou um interlocutor nesse processo de doação, ao menos estranho ao PNI, que atua pelo SUS sob coordenação do Ministério da Saúde, todos sob responsabilidade federal.
Aparentemente, a municipalidade irá coordenar, ou ao menos intermediar, a vacinação antes mesmo do Ministério da Saúde, contrário ao que dispõe a lei federal. Ademais, o Plano Nacional de Operacionalização da Vacina contra a COVID-19 indica que a distribuição dos imunobiológicos aos seus respectivos municípios e regiões administrativas é competência dos estados e do Distrito Federal[5].
O terceiro e último ponto a ser evidenciado diz respeito à prestação de contas sobre a aquisição das vacinas. A Lei nº 14.125/2021 determina que as empresas deverão fornecer ao Ministério da Saúde, na forma de regulamento, de modo tempestivo e detalhado, todas as informações relativas à aquisição, incluindo os contratos de compra e doação e à aplicação das vacinas contra o Coronavírus.
A municipalidade dispõe que essa prestação de contas deve ocorrer diretamente à Secretaria Municipal da Saúde.
Embora conflitantes as disposições, elas ainda não foram colocadas à prova, tendo em vista o processo relacionado à autorização e registro de vacinas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), não havendo ainda notícias concretas sobre compra de vacinas pelo setor privado.
Existe a necessidade de regulamentação das normas, principalmente pelo governo federal e especialmente sobre qual o tipo de empresa está autorizado a comprar as doses (ou se basta o simples CNPJ), o processo de doação e prestação de contas, inclusive sobre a necessidade de eventual complementação pelos municípios, a fim de evitar uma desordem na distribuição das vacinas adquiridas pelas pessoas jurídicas de direito privado e, consequentemente, no Plano Nacional de Vacinação.
Diante disso, para conferir maior segurança jurídica, somente com a edição de decreto regulamentando a Lei nº 14.125/2021 que tais divergências serão resolvidas ou minimamente esclarecidas para instrumentalizar os municípios na vacinação contra a COVID-19, valendo-se do apoio do setor privado nessa oportunidade. Após isso, também será válida a regulamentação da Lei nº 10.150/2021 pelo município de Araraquara.
Notas e Referências
[1] ARARAQUARA. Lei nº 10.150, de 10 de março de 2021. Faculta a aquisição de direta de vacinas contra a COVID-19 por pessoas jurídicas de direito privado, e dá outras providências. Araraquara, SP, 2021. Disponível em: https://educararaquara-my.sharepoint.com/personal/secom_educararaquara_com/_layouts/15/onedrive.aspx?originalPath=aHR0cHM6Ly9lZHVjYXJhcmFxdWFyYS1teS5zaGFyZXBvaW50LmNvbS86ZjovcC9zZWNvbS9FazFRT3pGRUxjQkxzMTRkTzJ5aXZuOEJyV2hpSkxqY3BtZEhOeUJRNFFuU2hBP3J0aW1lPUFzdm9na25wMkVn&id=%2Fpersonal%2Fsecom%5Feducararaquara%5Fcom%2FDocuments%2Fararaquara%2Esp%2Egov%2Ebr%2FSecretarias%20Municipais%2FGoverno%2C%20Planejamento%20e%20Finan%C3%A7as%2FTranspar%C3%AAncia%2FAtos%20Oficiais%2F2021%2F03%20%28Mar%C3%A7o%29%2FAtos%2DOficiais%2D11%2D03%2D2021%2Epdf&parent=%2Fpersonal%2Fsecom%5Feducararaquara%5Fcom%2FDocuments%2Fararaquara%2Esp%2Egov%2Ebr%2FSecretarias%20Municipais%2FGoverno%2C%20Planejamento%20e%20Finan%C3%A7as%2FTranspar%C3%AAncia%2FAtos%20Oficiais%2F2021%2F03%20%28Mar%C3%A7o%29. Acesso em 15 mar. 2021
[2] BRASIL. Lei nº 14.125, de 10 de março de 2021. Dispõe sobre a responsabilidade civil relativa a eventos adversos pós-vacinação contra a Covid-19 e sobre a aquisição e distribuição de vacinas por pessoas jurídicas de direito privado. Brasília, DF, 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14125.htm. Acesso em: 11 mar. 2021.
[3] Câmara Municipal de Araraquara. Projeto de Lei nº 56/2021. Disponível em: http://consulta.camara-arq.sp.gov.br/Documentos/Documento/239170. Acesso em: 10 mar. 2021.
[4] Notícias STF. Ministro assegura que estados, DF e municípios podem adotar medidas contra pandemia. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=441075. Acesso em: 17 mar. 2021.
[5] Ministério da Saúde. Plano Nacional de Operacionalização da Vacina contra a Covid-19. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/Coronavirus/vacinas/plano-nacional-de-operacionalizacao-da-vacina-contra-a-covid-19. Acesso em: 17 mar. 2021.
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