Apontamentos sobre cidadania, opressões e as perspectivas da interseccionalidade

05/10/2015

Por Mark Pickersgill Walker - 05/10/2015

A construção da cidadania não é um processo enfrentado de maneira homogênea, tendo sido traçado eminentemente em termos dominantes liberais, de cunho universalista e excludente. Trata-se de uma empreitada muito mais laboriosa no que tange às minorias alvos de opressões. Imprescindível, porém, dar a atenção devida a esse aspecto, dado o contexto plural das sociedades contemporâneas.

Em verdade, a noção de cidadania de-homogeneizada (enquanto uma desconstrução da homogeneidade, por isso não se optando simplesmente pelo vocábulo heterogêneo) tem sido a escolha de muitas das organizações sociais de cunho feminista e antirracista – defendendo que se deve desconstruir a visão abstrata da cidadania do sujeito “cidadão” em prol de pessoas concretas, que estão situadas de maneiras diferentes em termos de gênero, classe, etnia, sexualidade, capacidade física, etc. (YUVAL-DAVIS, 2007, p. 7-8).

No que toca ao cultural, destaca-se que poucos são os países que compartilham uma mesma língua, ou mesmo cuja população pertença a um mesmo grupo etno-nacional (KYMLICKA, 1995, p. 1).

Imprescindível não olvidar que a ideia de cultura que aqui se trabalha também diz respeito à diversidade de uma sociedade complexa no tocante à geração, sexo, gênero e classe, dentre outros marcadores analíticos como os tão-reiterados, e que mesmo que a globalização possa ter contribuído para diminuir as diferenças entre os povos (em que pesem críticas a tal pensamento), ela não conseguiu pôr fim à discriminação decorrente de tal diversidade cultural (GEERTZ, 1999).

Desde o fim da Guerra Fria, os conflitos etno-culturais se tornaram a fonte mais comum de violência política no mundo. Nesse contexto, voltou-se aos Direitos Humanos enquanto parte integrante da linguagem da política progressista e buscando que se tornasse um guião emancipatório (SANTOS, 1997, p. 11).

Outrora, imaginou-se que tal ênfase seria o suficiente para resolver os conflitos das diversas minorias, já que o deslocamento da pontualidade e especificidade em favor da universalidade dos Direitos Humanos teria sido o suficiente para sanar os conflitos das minorias religiosas: ao garantir a cada indivíduo a liberdade de religião, o todo seria indiretamente protegido. Resta claro, porém, que os direitos das minorias não podem ser subsumidos sob a categoria dos Direitos Humanos; a ineficiência de seu caráter universalizante não traz respostas às situações concretas (KYMLICKA, 1995, p. 2-5).

Boaventura de Sousa Santos (1997), sociólogo português defensor da existência de globalizações de caráter contra-hegemônico, já se preocupava com os limites e as condições que os Direitos Humanos poderiam servir uma política progressista e emancipatória. Situou esse estudo no contexto de três tensões dialéticas: a entre a regulação e a emancipação social (e cuja política dos Direitos Humanos pertencia simultaneamente a ambas, portanto armadilhada nesta dupla crise), a entre o Estado e a sociedade civil (trabalhando com os conceitos geracionais dos Direitos Humanos) e, por fim, a entre o Estado-nação e o que se denomina por globalização (o reconhecimento mundial da teoria dos Direitos Humanos se contrapondo à realidade que as violações e as lutas em defesa desses operam numa decisiva dimensão nacional, e, além disso, assentam-se em pressupostos culturais específicos).

Ressalta-se que o emprego de “o que se denomina por globalização” vem derivado da ideia que o que assim se chama nada mais é que a globalização hegemônica, enquanto aquela imposta verticalmente de cima pra baixo. Para o sociólogo, porém, o estreitamento das distâncias da contemporaneidade possibilita e gera a condição de existência não só desta como de demais globalizações possíveis, muitas das quais pretendem desconstruir esse paradigma e atuar a partir da base da pirâmide, como aquela surgida pelo contato entre os movimentos sociais e demais entes militantes e politizados de países periféricos e semiperiféricos. Um estudo mais pormenorizado sobre a questão pode ser encontrado na obra “Democratizar a Democracia” (SANTOS, 2005).

Em igual sentido, Milton Santos (2000) critica o caráter hegemônico das ciências e da globalização enquanto pretenso único paradigma. Denuncia nesse contexto o serviço prestado pela ciência – tida como infalível – ao mercado, apontando como tudo que é feito pela mão dos vetores fundamentais da globalização parte destas ideias científicas. Identifica, por fim, o caráter totalitarista disso que chama de globalitarismo, citando ilustrativamente o exemplo dos trabalhadores agrícolas do mundo modernizado que, subalternizados, convivem, como num exército, submetidos a uma disciplina militar (SANTOS, 2000, p. 53-54).

Assevera, ainda, que quando muito hoje se fala em violência, as atenções voltam-se apenas àquelas violências funcionais derivadas, enquanto elementos pontuais de um sistema, ao invés da que prefere chamar de violência estrutural, que se encontra na base de produção das demais. Essa violência estrutural, na era de globalização, resulta da presença e das manifestações simultâneas do dinheiro em estado puro, da competitividade em estado puro e da concorrência em estado puro, justificando o porquê prefere intitular tal contexto de globalitarismo. A perversidade deixa de se manifestar isoladamente através dessa “evolução” para uma situação tal que existe um verdadeiro sistema de perversidade (SANTOS, 2000, p. 55).

A própria perspectiva do multiculturalismo enquanto defendida por Kymlicka (1995) ou pelos escritos mais antigos de Boaventura de Sousa Santos (1997) é desafiada por uma nova perspectiva: a do interculturalismo. Enquanto o multiculturalismo a um primeiro momento serve à constatação empírica da coexistência de variadas culturas, o interculturalismo tem caráter mais prescritivo, vinculando-se à exigência de um tratamento igualitário dessas. Difere-se da mera diversidade cultural: esta não se trata de mero fato, mas sim de um princípio moral do pluralismo (um valor); já o interculturalismo seria dotado de face ética (o valor igual de cada cultura) e uma sociológica (o pressuposto da igualdade quando do estabelecimento de um diálogo que almeje encontrar pontos comuns) (SORIANO, 2004, p. 91-92).

Nesse contexto, o próprio feminismo, que já passou por um longo processo evolutivo no cenário nacional contemporâneo em direção aos estudos de gênero em seu diálogo constante com demais movimentos sociais, passa também por processos transformatórios. Inclusive, em interessante ressalva, no contexto brasileiro, o diálogo bastante singular entre feministas e homossexuais em meados dos anos 70-80 teria sido crucial para a boa receptividade, anos mais tarde, dos estudos de gênero nas universidades brasileiras (CORRÊA, 2001). O próprio uso do vocábulo “gênero” na pesquisa histórica, hoje sedimentado, é uma categoria de análise constituída pelo diálogo com movimentos sociais de mulheres, feministas, gays e lésbicas (PEDRO, 2005, p.77).

Essa superação é demasiado relevante, uma vez que através do reconhecimento que na maioria das línguas as palavras tem gênero mas não sexo, busca-se reforçar a ideia de que as diferenças que se constatam nos comportamentos de homens e mulheres não são dependentes do “sexo” biológico, mas sim definidos pelo “gênero”, e por isso, tratam de uma questão cultural (PEDRO, 2005, p. 78).

Especifica-se que o feminismo que se trata aqui é compreendido ao mesmo tempo como uma arena, um campo teórico, uma prática interpretativa e como um lugar político (SCHMIDT, 1999, p. 17).

Mariza Corrêa (2001, p. 25-26) reconta como intuitivamente, no desenvolvimento da pesquisa e militância feminista no Brasil contemporâneo, já se utilizavam de formas embrionárias de percepção das relações e dos entrelaçamentos das diversas formas de opressão, mas denunciando uma imensa lacuna bibliográfica a esse respeito. Essa cegueira estrutural só teria sido superada justamente com o contato posterior com as obras de autoras estadunidenses que enfrentavam a questão, de início especificamente ao questionamento pelo feminismo das mulheres negras.

Como ela própria destaca (CORRÊA, 2001, p. 27-28):

“Se os questionamentos feministas, somados aos questionamentos dos queer’s studies, redundam, finalmente, na desnaturalização e dessencialização das definições e classificações humanas, e se as duas definições e classificações mais enraizadas na natureza, e vistas como parte da essência humana, em nossa trajetória nesta terra são as de sexo e raça, teríamos de chegar à discussão de sua relação. Talvez por isso os estudos sobre o corpo estejam se tornando tão evidentes na agenda dos estudos de gênero nesses últimos anos: é no corpo que essas marcas classificatórias são impressas.

(...) raça e sexo circulam como marcadores sociais, como cor e gênero, independentemente da definição de sexo ou de raça do corpo que os sustenta.” (grifos no original)

E em que pesem as sempre presentes ressalvas quanto à utilização de exemplos e de teorias surgidas em países de caráter tradicionalmente hegemônico, foi justamente nos Estados Unidos que em época similar à que se falava anteriormente denunciou-se como mulheres brancas de classe-média não servem como uma representação fiel do movimento feminista como um todo (DAVIS, 1983). É nesse arcabouço conceitual que se traz à baila a interseccionalidade.

Em apertada síntese introdutória, interseccionalidade é a ideia que as variadas formas de opressão e de privilégio interagem entre si numa multiplicidade de formas complexas. A opressão e o privilégio derivados da raça, etnia, gênero, orientação sexual, classe, nacionalidade, dentre outros, não agem de maneira independente umas das outras nas nossas vidas individuais e estruturas sociais; ao invés, cada tipo de opressão e de privilégio é moldado por e trabalha através dos demais. Esses compostos e intermesclados sistemas de opressão e de privilégio em nossas estruturas sociais é o que produz: (a) nossas relações sociais; (b) nossas experiências com nossas próprias identidades; e (c) os limites dos interesses compartilhados mesmo entre membros “do mesmo” grupo oprimido ou privilegiado (GARRY, 2012, p. 493-496).

Importante destacar que já havia estudos e análises acerca das diferentes formas com que as opressões agiam sobre as minorias desde o fim da década de 70 e o início da década de 80 (YUVAL-DAVIS, 2007, p. 12-13).

Foi Kimberle Crenshaw[1], porém, em 1989, que cunhou o termo de “interseccionalidade” para se referir a este conceito, em seu icônico artigo, intitulado “Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory, and Antiracist Politics[2].

A obra serviu para apontar a problemática tendência de se tratar a raça e o gênero como categorias mutuamente exclusivas de experiência e de análise, uma tendência que foi perpetuada por um arquétipo com um só eixo predominante na política e legislação antirracista e também refletido na teoria feminista. A utilização da mulher negra serviu para tornar aparente como conceitos dominantes de discriminação condicionam-nos a pensar que a subordinação ocorreria através de um único eixo categórico. Isso acabaria por apagar a mulher negra da conceituação, identificação e mediação da discriminação por raça e gênero, ao limitar os questionamentos aos de alguma outra forma privilegiados membros do grupo (em casos de discriminação racial, a discriminação tende a ser vista em termos de negros privilegiados por gênero ou classe; em casos de discriminação por gênero, o foco é em mulheres privilegiadas por raça ou classe). Isso findaria por criar uma análise distorcida do racismo e do sexismo porque os conceitos operativos de raça e de sexo estariam fundamentados em experiências que representam apenas um subconjunto de um fenômeno muito mais complexo (CRENSHAW, 1989, p. 57-58).

Cita alguns casos emblemáticos de jurisprudência dos EUA que ajudariam a evidenciar tal invisibilidade das mulheres negras. Dois valem a menção: o primeiro, DeGraffenreid v. General Motors, de 1964, trata de uma ação proposta por mulheres negras alegando discriminação no plano de carreira e nas promoções de funcionários da empresa ré. O tribunal rejeitou a ação pela tentativa dos autores de propô-la não em favor dos negros ou das mulheres, mas sim em favor das mulheres negras, asseverando que a ação deveria ser examinada a fim de se concluir que o que se pleiteava era um pedido por discriminação racial ou de discriminação sexual, mas não uma combinação de ambos. A recusa da corte em admitir que mulheres negras enfrentam discriminação combinada deixa implícito que os limites da doutrina de discriminação por sexo e por raça são definidos respectivamente pelas experiências de mulheres brancas e de homens negros. As mulheres negras são então protegidas apenas até o limite que suas experiências coincidem com algum desses dois outros grupos (CRENSHAW, 1989, p. 58-59).

O segundo caso, Moon v. Hughes Helicopters Inc., diz respeito à outra forma que as cortes falharam em compreender ou em reconhecer o direito das mulheres negras. Aqui as cortes se recusaram a aceitar mulheres negras enquanto representantes de classe em ação de discriminação sexual, alegando que a autora anteriormente nunca havia afirmado ser discriminada exclusivamente por seu gênero, mas apenas por ser uma mulher negra, o que levantava sérias dúvidas sobre a possibilidade dela figurar adequadamente como representante de funcionárias brancas. A recusa em permitir alguém alvo de múltiplas opressões em representar outrem que seja alvo de opressão única acaba com os esforços para reestruturar a distribuição de oportunidades e limita as remediações possíveis a pequenos ajustes dentro de uma hierarquia estabelecida (CRENSHAW, 1989, p. 60-61).

A aparente contradição na crítica a esses dois casos – que parecem dizer ora que as mulheres negras são parte do todo e sofrem por serem tratadas de maneira diferente, ou que são diferentes e sofrem por serem tratadas como parte do todo – revela as limitações da análise pautada em um ponto único que a interseccionalidade desafia. Mulheres negras podem sofrer discriminação de uma série de maneiras diferentes e a contradição advém da presunção que a reivindicação de exclusão deve ser unidirecional (CRENSHAW, 1989, p. 63).

Com uma metáfora visual que posteriormente é utilizada por variados autores, Crenshaw (1989, p. 63-64) propõe uma analogia com o tráfego em um cruzamento, em duas vias de mão-dupla. A discriminação, como o tráfego de carros nesta intersecção, pode seguir em uma ou em outra direção. Se um acidente acontece, ele pode ter sido causado por carros vindos de diferentes possibilidades de direção e, por vezes, de todas elas. De maneira similar, uma mulher sofre por estar na intersecção, seu dano podendo advir de diferentes formas de discriminação – por vezes similar com o que sofrem as mulheres brancas, por vezes similar com o que sofrem os homens negros, mas muitas vezes também uma discriminação dupla.

Positiva-se a ideia que uma vez que a experiência interseccional é maior que a simples soma do racismo e do sexismo, qualquer análise que não dê a devida atenção à interseccionalidade não consegue suficientemente abordar a maneira particular com que mulheres negras são subordinadas (CRENSHAW, 1989, p. 58). Denuncia, portanto, como as feministas ignoram como sua raça serve para mitigar alguns aspectos do sexismo e, ademais, como frequentemente as privilegia sobre e contribui para a dominação de outras mulheres. Em conclusão a essa análise, sua frase mais impactante, talvez, seja “a teoria feminista permanece branca” (CRENSHAW, 1989, p. 67).

Embora concebida como uma exploração da opressão das mulheres na sociedade, a teoria trespassa esse propósito e a sociologia contemporânea se esforça em aplicá-la a contextos mais amplos, e a diferentes possíveis intersecções.

Yuval-Davis (2007), por sua vez, em contexto mais recente, amarra os últimos tópicos em comento propondo, extensivamente como a análise interseccional pode contribuir para o desenvolvimento da cidadania da mulher. Identifica como a própria noção da cidadania foi contestada e debatida dentro da teoria política e sociológica, bem como acabou por ocupar papel protagonista em debates feministas nos últimos quinze ou vinte anos.

Num intuito de desconstruir os preceitos tradicionais da noção de cidadania, com fulcro nas próprias experiências do feminismo que historicamente trabalharam enfatizando as noções de-homogeneizadas, o autor defende a ideia da cidadania das “múltiplas camadas”, onde as pessoas são cidadãs simultaneamente em mais de uma comunidade política, sendo sempre importante lembrar que tais cidadanias são também afetadas pelas localizações individuais em cada política, e são construídas (em geral de formas instáveis e contestadas) pela intersecção das divisões sociais (gênero, raça, classe, etc.); esta noção sendo associada àqueles que veem a própria cidadania como encorpada (YUVAL-DAVIS, 2007, p. 7-9).

Cita inclusive alguns exemplos de incorporação do próprio conceito da interseccionalidade às políticas públicas internacionais, como no caso da Declaração e Plataforma de Ação de Pequim, que expressamente pedia aos governos que intensificassem os esforços para garantir o desfrute igualitário de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais para todas as mulheres e garotas, que enfrentam barreiras múltiplas ao seu empoderamento e avanço por conta de fatores de raça, idade, língua, etnia, cultura, religião ou deficiência ou por serem indígenas (YUVAL-DAVIS, 2007, p. 13).

Dialoga com o categórico exemplo da encruzilhada de Crenshaw argumentando como tal visualização é inerentemente viciada, pois constrói cada vetor de discriminação como autônomo. Embora cada um desses vetores possuam bases ontológicas separadas, em qualquer realidade concreta, tais opressões interseccionais são mutuamente constituídas (YUVAL-DAVIS, 2007, p. 14).

Prega, por fim, que apenas uma análise interseccional da cidadania que não a homogeinize e que não a construa contra outras cidadanias, mas em correspondência com elas, e que possa diferenciar entre locais, identidades e valores políticos poderia ter qualquer chance de se tornar genuinamente não racista e – não incidentalmente – não sexista (YUVAL-DAVIS, 2007, p. 15).

A interseccionalidade pode ser então uma ferramenta sofisticada para compreender como categorias significativas, no exemplo de gênero, etnia e religião se articulam em debates políticos e legais, e também influenciam noções subjacentes de nacionalidade (SIIM, 2009, p. 22)

A lacuna bibliográfica brasileira identificada por Corrêa parece persistir, porém. Algumas exceções rompem com o silêncio: Rosamaria Giatti Carneir (2008), por exemplo, faz detida análise do caso de Sirlei Dias de Carvalho Pinto, empregada doméstica negra agredida e roubada por cinco jovens de classe média alta em junho de 2007 com base em metodologia analítica da interseccionalidade proposta por Crenshaw (2002). Manifestamente, seu intuito também foi no sentido de problematizar a categoria mulher em sua complexidade, impedindo a exclusão e a discriminação contra as próprias mulheres ao resguardar a particularidade situacional de cada uma além de evidenciar não só a hibridização sofrida pela “identidade feminina”, mas a importância dos marcadores analíticos no intuito de fazer análise mais fidedigna aos casos de violência contra a mulher (CARNEIR, 2008, p. 144).

Em sua conclusão, prega ainda pela importância da “interseccionalidade como olhar analítico, tanto por parte das feministas como por parte dos operadores de Direito” (CARNEIR, 2008, p. 145). Entende que é a única forma de se situar a mulher em suas relações de poder e garantir que se dê a devida atenção à dimensão relacional dos casos e dos sujeitos neles envolvidos[3].

Diante de uma relação multifacetada dentre diferentes tipos de opressão e de privilégio, e visando a valorizar o papel que as identidades sociais complexas representam, prega-se pela aplicação da interseccionalidade. Resta a lição ao feminismo (e também aos demais movimentos sociais de inclusão) que se propõe verdadeiramente pluralista busque descentralizar a mulher branca e de classe média de sua teoria e prática (GARRY, 2011, p. 493). Isso não pressupõe, porém, uma superação absoluta de conceitos tradicionais da teoria feminista; os “antigos” diagnósticos centrados nas analogias devem ser antes completados e corrigidos onde for preciso (KERNER, 2012, p. 58).

Resta claro como o redimensionamento de conceitos em prol de categorias pretensamente universalizantes acaba quase sempre por invariavelmente apagar as demandas minoritárias e oprimidas, que se veem invisíveis diante do todo. Nesse sentido, em conjunto às concepções estatais de cidadania, enquanto pacote de direitos garantidos pelo Estado, nega-se eficácia à doutrina tradicional dos Direitos Humanos que não serve a responder a tais questões pontuais.

As opressões encontram-se estruturadas em diferentes eixos que inicialmente aparentam ser desconexos entre si. Na prática, ignorar essas desconexões é invisibilizar e negar lugar de fala a sujeitos que se encontrem em pontos de cruzamento dessas vias. O diálogo entre as opressões é enfrentado com a teoria da interseccionalidade, a qual revela que padrões de opressão cultural não são apenas inter-relacionados, mas são indissociáveis e se influenciam por sistemas interseccionais da sociedade, contribuindo para a desigualdade social sistemática.


Notas e Referências:

[1] Crenshaw é uma mulher negra, teórica e militante feminista e de gênero, formada em Direito em 1984 pela Universidade de Harvard, elementos trazidos para destacar seu lugar de fala.

[2] “Desmarginalizar a intersecção de raça e sexo: Uma crítica de uma feminista negra da doutrina de antidiscriminação, da teoria feminista, e da política antirracista” (tradução nossa). Curioso destacar como a própria autora faz questão, também, no título de sua obra – e no decorrer dela – de destacar e reiterar seu lugar de fala.

[3] Outro bom exemplo de exceção no que diz respeito a falta de bibliografia sobre a aplicação da interseccionalidade no contexto brasileiro pode ser encontrado em na dissertação de Vanilda Maria de Olveira (2006), que, com escopo bem mais amplo que o artigo de Carneir, trabalha em análise interseccional sobre a realidade da cidade de Goiás.

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Mark Pickersgill Walker

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Mark Pickersgill Walker é mestrando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Foi bolsista CNPq (Modalidade GM). E-mail: markwalk777@gmail.com. Telefone: (48) 9177-1017.

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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