Apolo e Dionísio: um breve(íssimo) diálogo sobre a banalidade da Ciência Jurídica - Por Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino e Diogo Dal Magro

19/10/2017

E se Apolo e Dionísio debatessem sobre a contemporaneidade da Ciência Jurídica? Quais seriam as suas conclusões sobre o atual estágio de desenvolvimento desta forma de se produzir conhecimento? Vejamos o que essa rápida conversa sugeriria... 

Apolo: Meu caro Dionísio, Eureka! O Direito atingiu sua maturidade intelectual a partir da Ciência Jurídica. O conhecimento no campo jurídico está em seu ápice. A vida agora se torna mais segura. 

Dionísio: O que há de espanto nisso, meu caro Apolo? Não sabes que a vida é insegura. Nada está protegido. E ademais, como pensas que a Ciência Jurídica atingiu a sua maturidade intelectual? Parece-me que devaneias, não achas? 

Apolo: Nada há de devaneios nisso, meu estimado Dionísio. A Ciência Jurídica alcançou seu estágio mais avançado com as construções modernas a partir do desenvolvimento da própria Ciência. Além disso, é evidente a vida regulada pelo Direito torna-se mais agradável, ao passo que inúmeras são as liberdades e as garantias que são dadas a todos. 

Dionísio: E desde quando esses argumentos traçam o destino da Ciência Jurídica? Vida? Não me fale da vida. A maior das angústias é viver. Que fardo enorme e pesado. Lidar com as pessoas? Lidar comigo? Essa é uma tarefa que até Hércules recusaria. E nisso que estamos tão somente falando de Vida e das Vidas. Veja a abrangência empírica, metafísica, desconstrutivista, narcísica, dionisíaca. E queres que a Ciência Jurídica enxergue a sua totalidade? Com que autoridade falas? E depois me chamam de bêbado! 

Apolo: A vida nada mais é que um conjunto de circunstâncias que se repetem cotidianamente. Quando a Ciência Jurídica observa e compreende o cotidiano, então compreende a vida. Ademais, as circunstâncias - até então não previstas pelo e no Direito - são facilmente incluídas por meio de uma elaboração normativa. Não há com o que se preocupar, caro Dionísio. Se não temos todas as respostas, será possível tê-las em tempo recorde pelas luzes da Razão! Aliás, se o Direito não possui as respostas que procuras, quem então deverá tê-las? 

Dionísio: De fato, devo estar muito bêbado... ou me tornando neurótico, no mínimo. Que serenidade estampa seu semblante? Por acaso alguma entidade metafísica incorporou em você? Parece os devaneios juvenis de uma época em que se tornou senhora de si, bastando-lhe demonstrar, com precisão matemática, com a elegância e eloquência das equações, que mundo apenas dever ser o que se acha dele a partir de nossa limitada(íssima) percepção. Não vês o perigo que corres? Você compreende os seres humanos? Se sim, sabes que o Direito é uma criação limitada. Sofres, por caso, de alguma síndrome, igualmente juvenil, de um Victor Frankenstein? O que pretendes com essa abominação ontológica e deontológica, fundada estritamente naquilo que a Vida (e as Vidas) devem ser e não o que ela é? 

Apolo: Parece que estás a acusar o Direito de ser incapaz de solucionar os problemas da vida de todos os dias. Te esqueces, contudo, de que, se não fosse por meio dessa Ciência que tu a acusas de ser totalitária e autoritária, não terias se quer a possibilidade de estar expressando teus devaneios contra ela, com segurança. Te esqueces que, caro Dionísio, enquanto Ciência Jurídica, todo o conhecimento que dela vem é revestido de verdade. Não creio que estejas acusando uma Ciência, enquanto tece tuas reflexões sobre problemas de metafísica e questões transcendentais. Não me parecem argumentos bons, caríssimo Dionísio! 

Dionísio: Me acusas de ser totalitário? De que o conhecimento da Ciência Jurídica é revestido de verdade? Me parece, meu amigo Apolo, que realmente não consegues enxergar além dos limites de seu próprio horizonte. (Em seu pensamento mais profundo, Dionísio se convence: eu sabia que tudo ia dar errado...esse cara é a visão de um apocalipse às avessas... meteoro, cadê você?). De volta à realidade: Novamente, insisto: não há vida nessa monstruosidade de que falas... de que servirá ao ser humano? De que trará paz perpétua? Se essa entidade for incapaz de admitir suas próprias falhas, de compreender o Mundo e as Vidas que ali habitam como são ao invés de modelá-las exclusivamente sob a luz da Razão Lógica há, nesse caso, uma esperança sensata. Não falo que nela há uma alma, mas lhe falta humanidade, o seu elemento mais óbvio e, ao mesmo tempo, ignorado. Falta-lhe o medo, a angústia, a aflição, a dor, a alegria, a agradabilidade, o prazer, a astúcia, enfim, ele pode ser tudo, menos humano. O que vês é apenas o reflexo de seu próprio ego o qual despreza tudo o que não for explicado e demonstrado sob os alicerces da Lógica. Como é possível admitir maturidade intelectual da Ciência Jurídica, meu caro? Nem a luz, nem o som viajam tão rápido nos terrenos pantanosos... Cuidado... 

Apolo: Ora Dionísio, não podes crer que a falta de pequenas dimensões como essas que citas podem afetar toda uma Ciência, onde seus pressupostos remontam ao início dos tempos da escrita. Estás sendo um anarquista! Uma Ciência construída a partir de pressupostos estudados, compreendidos e debatidos ao longo dos últimos séculos, pelos melhores intelectuais de suas épocas, não pode ser questionada por um ébrio, a quem essa Ciência – que tu a chamas de insensível – visa propiciar uma dolce vita. Vejas o avanço produzido nas esferas pública e privada, os avanços da organização social, o progresso na resolução dos conflitos humanos, em suma, o progresso da própria humanidade, pautado sempre sob os limites que a Ciência Jurídica estipula. Responda-me, companheiro, a quem tu procuras quando as tuas forças não são capazes de conquistar aquilo que necessitas? Por acaso procuras nas divagações transcendentais a motivação que levou homem a cometer o mal? E, por mais que de algum dos possíveis mundos desse universo tivesses a resposta, de que ela te serviria senão para consolar-te? 

Dionísio: De que avanços falas? De uma Ciência fundada numa dimensão extremamente técnica? De uma linguagem burocrática e metafísica? Afinal, de que Ciência tu falas? São exatamente essas pequenas dimensões e sua importância microscópica que, quando se rompem, fazem desabar todo o alicerce de sua Ciência que ignora o seu status de humanidade. Se é impossível perceber, desde as galerias subterrâneas, o eco da voz de nossa vida cotidiana, de que servirá essa Ciência? De que progresso se estaria falando e desejando? De algo mentiroso para aplacar a vontade dos ricos e abastados – desses homens íntegros e virtuosos, todos cidadãos de bem, e apenas servi-los? Se a Ciência Jurídica é produzida para humanos, essa deve aprender a sua própria decadência, meu estimado Apolo, e se deixar levar pelas imperfeições da sua existência. Nesse momento, pode-se compreender melhor como viver, como desenvolver, como produzir, bem como uma Ciência pode ser criativa, desde que se saiba a dimensão da Vida, do Viver e Conviver a partir de suas próprias características, de sua própria complexidade as quais estão sempre em metamorfose. Lembremos de Bachelard, que dizia: Somente existe Ciência daquilo que é oculto. Pois bem, como se pode “ver o invisível” quando as luzes da Razão o deixaram cego? Eis um excelente ponto de partida para a sua busca, não achas? Sejamos mais neuróticos e menos indiferentes, não concordas? 

Apolo: Meu caro Dionísio, do mesmo modo que duas pessoas que não falam a mesma língua não se compreendem, parece que estamos a falar de assuntos diferentes. Creio que bebestes por demais daquilo que te é suportável... Por isso, antes que a discórdia traga consequências para ambos, com sua devida vênia, devo partir, e tu, então, podes continuar teus devaneios irracionais... 

Moral do Diálogo (se é que existe uma): “As próprias pessoas de bem – [...]—, por mais que sejam os primeiros em sua graça, por mais que nelas brilhem a virtude e a integridade que impõem algum respeito até aos mais malvados quando vistas de perto, as pessoas de bem, digo, aí, não poderiam durar; é preciso que compartilhem do mal comum e que sintam a tirania em seus propósitos”[1].


[1] LA BOÉTIE, Etienne. Discurso da servidão voluntária. Tradução de Laymert Garcia dos Santos. São Paulo: Brasiliense, 1999, p. 34. 

Imagem Ilustrativa do Post: Apollo // Foto de: Simon Bleasdale // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/simonbleasdale/2510751157/ 

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