Aplicação da lei processual penal no tempo: um tema, em tese, simples, mas que sempre se mostra complexo na prática

22/12/2016

Por Jorge Coutinho Paschoal – 22/12/2016

Em relação à aplicabilidade da lei no tempo, dispõe o art.2.°, do Código de Processo Penal, que “a lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior”.

Institui-se, em matéria processual, a regra do tempus regit actum, isto é, de que a lei aplica-se imediatamente, não podendo, contudo, interferir em atos jurídicos perfeitos, já realizados.

Com efeito, pudesse a lei retroagir, para incidir em atos já praticados, haveria o risco à segurança jurídica, estando a validade dos atos processuais anteriores sujeita à interferência de leis posteriores, ao imponderável. Procurando-se, justamente, evitar isso, as regras processuais serão ditadas pelas normas vigentes ao tempo da prática do ato jurídico.

A legislação levou em conta, para a resolução de problemas de sucessão de leis processuais, o sistema do isolamento do ato processual[1], não adotando outras opções, como da unidade processual (em que uma única lei deveria reger todo o procedimento) ou da incidência da norma por determinadas fases da persecução penal (investigatória, postulatória, instrutória, decisória e recursal), as quais poderiam ser regidas por leis diferentes.

Em algumas hipóteses, admite-se que a lei processual possa retroagir ou venha a ter ultratividade. Na verdade, não se trata de exceção à regra processual do tempus regit actum, mas de aplicação da lei penal quando a norma tiver natureza mista, em homenagem ao princípio constitucional da legalidade e da retroatividade benéfica.

Uma norma processual terá cunho penal (material) se dispuser sobre o direito de liberdade do sujeito (por exemplo, conferindo ou restringindo o instituto da fiança) ou mesmo se estiver ligada a situações que digam respeito à persecução do fato, tendo em vista a punibilidade (extinção da punibilidade).

Aplica-se a lógica vigente para a lei penal, (a) da vedação da lei posterior mais gravosa e, quando for o caso, (b) da retroatividade da lei penal mais benéfica[2].

Assim, se a nova alteração legal, de algum modo, facilitar (ou, por outro lado, dificultar) a concretização da punição estatal, quer pela ampliação, quer pela restrição das causas que acarretam a extinção da punibilidade, haverá conteúdo penal.

Isso ocorreu com as alterações no processamento das ações penais nos crimes sexuais, cuja ação, antes, era, em regra, de iniciativa privada[3].

A princípio, poderia parecer uma simples alteração no modo como deveria ser deduzida a acusação, não tendo implicações penais. Contudo, em uma análise mais detida, com a previsão de uma nova forma do processamento da ação penal - hoje, em geral, condicionada à representação, não sendo mais de iniciativa privada – restringiram-se algumas hipóteses que - antes vigentes - levariam à extinção da punibilidade; na ação penal pública, ainda que condicionada – diferentemente do que ocorre na ação penal privada - não é cabível o perdão do ofendido ou a ocorrência de perempção, durante o curso do processo, tendo-se agravado, de tal modo, a situação jurídica do imputado com a novel legislação[4].

Com a mudança legal, passando a ação penal a ser de iniciativa do Ministério Público nos crimes sexuais, não haveria mais a possibilidade de a vítima, durante o processo, perdoar o infrator, perdão que, se aceito, acarretaria a extinção da sua punibilidade. Assim, inquestionavelmente, houve piora na situação do imputado, de maneira que a aplicação de lei no tempo, nesse caso, deve se orientar pela regra de direito penal material.

Por outro lado, na hipótese contrária, a lei processual pode acarretar melhora na situação do investigado, como ocorreu com a edição da Lei 9.099/95, que transformou os crimes de lesão corporal leve e culposa - antes processados mediante iniciativa apenas do Ministério Público (ação penal pública incondicionada) - em ação penal condicionada à representação.

Nesse caso, sendo a representação mais benéfica ao imputado, por implicar uma barreira adicional à persecução penal e à concretização do próprio ius puniendi (ora, se não houver autorização do interessado, o Ministério não pode deduzir a ação penal), a lei processual retroagiu, pelo seu caráter material, inclusive para se aplicar a demandas já propostas.

Há casos também em que, na mesma alteração, há disposições favoráveis e prejudiciais, como ocorreu com a previsão, na própria Lei 9.099/95, da suspensão do curso do processo com a suspensão da prescrição, evitando-se que a pessoa, citada por edital, fosse julgada à revelia, dado o direito à ampla defesa, ao contraditório e ao devido processo legal. O entendimento que prevaleceu foi no sentido de que esta disposição não poderia retroagir para suspender processos anteriores, por conter disposições prejudiciais ao imputado (suspensão da prescrição).

Na verdade, nada impedia que se suspendessem os processos anteriores (para o bem da garantia da ampla defesa), mas se impedisse a incidência da suspensão da prescrição nesses casos. Sob a escusa da impossibilidade da combinação de leis, vigorou outra posição, impedindo-se a suspensão dos processos anteriores.

Nem sempre é fácil, entretanto, averiguar quando uma norma processual tem conteúdo exclusivamente processual ou quando tem também conteúdo material. Gustavo Badaró defende uma visão mais ampla, para apurar se uma norma seria mista, discorrendo que assim será sempre que exprimir garantia constitucional.

Segundo o Autor, “são normas processuais de conteúdo material as regras que estabelecem as hipóteses de cabimento de prisões cautelares, os casos em que podem ser revogadas, o tempo de duração de tais prisões, a possibilidade de concessão de liberdade provisória com ou sem fiança, entre outras. Assim, quanto ao direito processual intertemporal, o intérprete deve, antes de mais nada, verificar se a norma, ainda que de natureza processual, exprime garantia ou direito constitucionalmente assegurado ao suposto infrator da lei penal. Para tais institutos, a regra de direito intertemporal deverá ser a mesma aplicada a todas as normas penais de conteúdo material, qual seja a da anterioridade da lei, vedada a retroatividade da lexgravior”[5]

Como já mencionado, as alterações legislativas de 2008 acarretaram muitas mudanças em relação aos procedimentos previstos, e grandes dificuldade quanto à sua aplicabilidade, tendo em vista a alteração do momento da realização do interrogatório, previsto como o último ato do processo[6], a supressão do recurso do protesto por novo júri[7], a previsão de citação por hora certa, a previsão da identidade física do juiz, entre outras. Houve diversas decisões acerca dessas alterações, ora interpretando-as como de natureza processual, ora mista, acarretando soluções conflitantes para hipóteses iguais. Quantas ações penais não foram anuladas (e quantas não o foram) porque não se deu nova oportunidade para o interrogatório ao fim do processo, com a entrada em vigor da Lei 11719/2008?

O tema da aplicação da lei processual penal no tempo, muito embora pareça um assunto simples, suscita, em realidade, várias discussões não só acadêmicas, mas também práticas, sempre a cada alteração da lei processual.

Até uma simples alteração do prazo recursal pode ensejar grande polêmica, por prever mais (ou, principalmente, menos) dias para a interposição do recurso (hipótese bem factível, em tempos recentes, como ocorreu no processo civil, com a contagem do prazo em dias úteis).

Naquelas situações em que o prazo já está em curso, há (ou deveria haver), por óbvio, aplicação da lei antiga, pois que, a rigo, é a vigente ao tempo da sua prática, embora haja quem advogue a aplicação do prazo novo, se for maior. O mais prudente, contudo, em qualquer situação de dúvida, para evitar alegação da perda de prazo, é seguir sempre o prazo menor, pois não é impossível que algum tribunal interprete que se teria que recorrer no novo prazo (ainda que menor), mesmo que a lei entrasse em vigor no curso do prazo já aberto... Trata-se de um absurdo, obviamente, mas não é algo impossível de ocorrer e, convenha-se, até se discutir essa questão, para reverter a suposta preclusão, isso pode levar anos... Melhor evitar os riscos.

O ponto é que não existe um regramento expresso, de transição, que diga qual a lei aplicável em situações duvidosas; por exemplo, naquelas situações em que a decisão recorrível já é pública, embora a parte ainda não tenha sido intimada, fica sempre o questionamento para a parte: aplica-se o prazo da lei “antiga”, que estava vigente ao tempo da decisão (quando esta foi tornada pública) ou se aplica o prazo novo, possivelmente em vigor quando da intimação?

Embora seja um tema abordado na doutrina (a maior parte entende que, ao se tornar pública a decisão, já há a possibilidade de interpor o recurso, aplicando-se a lei vigente a esse tempo), não há uma previsão que diminua as dúvidas que se põem, a fim de se proporcionar maior segurança.

Quando as mudanças são muito profundas, é aconselhável que na nova lei se disponha sobre algum tipo de “regra de transição”, ou calibração, para tratar de pontos que acabarão gerando polêmica, até para se evitarem injustiças.

Assim estava previsto quando da edição do Código de Processo Penal, estabelecendo a Lei de Introdução, quanto ao prazo recursal, que se ele já tivesse se iniciado, “será regulado pela lei anterior, se estão não prescrever prazo menor do que o fixado no Código de Processo Penal”. Trata-se de uma opção justa, pois garante a aplicação do maior prazo.

Com relação às medidas processuais que acarretem restrição da liberdade, ou até de direitos (medidas protetivas ou medidas cautelares alternativas à prisão), ainda é necessária maior meditação e discussão por parte da doutrina, especialmente quanto às últimas. Se se entender que as medidas alternativas à prisão são mais benéficas para o imputado, por, precisamente, substituírem a prisão, quando antes não havia essa possibilidade (afinal, melhor ter que comparecer a juízo a ser preso), não há óbices à sua incidência. Entretanto, caso se entenda que elas são aplicadas independentemente de haver juízo quanto ao cabimento ou à necessidade da prisão, aí a questão muda de figura, já que a nova lei piorou a situação do imputado.

Muito embora se discorra sobre a natureza mista da norma quando estiver em jogo o direito à liberdade, evitando-se a aplicação de lei posterior mais gravosa ao ius libertatis (por exemplo, a previsão quanto à inafiançabilidade de um crime não pode se aplicar a um fato considerado afiançável por lei anterior), o mesmo deveria valer para as novas hipóteses de prisão preventiva, de prisão temporária ou para a aplicação de protetivas que antes inexistentes.

Enfim, são tantas as variáveis nesse tema, o que evidencia que o assunto referente à aplicação da lei processual penal mereceria maior estudo e detalhamento da legislação, não sendo possível que um único artigo pretenda abordá-lo, como ocorre tanto em sede de direito processual civil quanto penal.


Notas e Referências:

[1] BADARÓ, Gustavo. Direito intertemporal. In: Maria Thereza Rocha de Assis Moura (coord.). As reformas no processo penal: as novas leis de 2008 e os projetos de reforma. São Paulo: RT, 2008, p. 24.

[2] BADARÓ, Gustavo. Direito intertemporal. In: Maria Thereza Rocha de Assis Moura (coord.). As reformas no processo penal: as novas leis de 2008 e os projetos de reforma. São Paulo: RT, 2008, p. 21.

[3] Como se sabe, em alguns crimes, para que seja possível a dedução do processo criminal, a lei estabelece que a iniciativa será do ofendido (por isso, nesses casos, denomina-se a ação de privada), sendo que em outros a lei prevê a atuação pública, do Ministério Público (ação penal pública). Neste último caso, pode ser que seja necessária uma autorização da vítima, para que a ação seja proposta, chamada pelo nome de representação

[4] É mais benéfico ao acusado ser processado por crime em que a própria vítima é a parte legitima para promover o processo (ação penal privada) se comparado com a situação em que a acusação fica a cargo do Ministério Público (ação penal pública). Isso porque há uma série de situações que pode levar à sua extinção (impede a concretização da punição, pela extinção da punibilidade), como é a hipótese de perdão do ofendido, ou perempção, que não se aplica aos casos de ação penal pública. Tratando do antigo crime de atentado violento ao pudor, e da alteração de 2009, é a orientação do STJ sobre o assunto: “RECURSO EM HABEAS CORPUS.  TRANCAMENTO DE INQUÉRITO POLICIAL. EXCEPCIONALIDADE. CONTRAVENÇÃO DE IMPORTUNAÇÃO OFENSIVA AO PUDOR OU CRIME DE ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. AÇÃO PENAL PRIVADA AO TEMPO DO CRIME. IRRETROATIVIDADE DA LEI PENAL MAIS GRAVOSA. AUSÊNCIA DE QUEIXA-CRIME. DECADÊNCIA. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE (...) Com efeito, o aventado crime de atentado violento ao pudor se amoldava, ao tempo do crime, no artigo 214 do CPB e regia-se, no tocante à ação penal, pelo que dispunha o artigo 225 do mesmo diploma, o qual determinava, em casos tais, ser de iniciativa privada a actio penalis, haja vista a ausência de qualquer alusão a violência real na conduta investigada. 3. Apesar da legitimação ativa para a causa ter sofrido substancial alteração com o advento da Lei 12.015/09, tal diploma, no particular, somente pode ser aplicado aos fatos ocorridos sob sua vigência, em atenção ao dogma da irretroatividade da lei posterior mais gravosa aos interesses do réu...”  (STJ, RHC 36.364/RJ, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 22/05/2014, DJe 06/06/2014)

[5] BADARÓ, Gustavo. Direito intertemporal. In: Maria Thereza Rocha de Assis Moura (coord.). As reformas no processo penal: as novas leis de 2008 e os projetos de reforma. São Paulo: RT, 2008, p. 22. Fazemos apenas a observação de que, por óbvio, toda mudança legislativa, em sede processual, terá sempre ressonância com a ordem constitucional ou mesmo com algum tipo de direito ou garantia constitucional, sendo que se deve tomar cuidado em uma interpretação muito ampliativa, sob pena de se transformar, sempre, normas processuais em mistas.

[6] Parte da doutrina considera que a mudança do interrogatório para o final do procedimento (como último ato) corporifica uma norma processual penal, ou norma de natureza mista, na esteira de: BADARÓ, Gustavo. Direito intertemporal. In: Maria Thereza Rocha de Assis Moura (coord.). As reformas no processo penal: as novas leis de 2008 e os projetos de reforma. São Paulo: RT, 2008, p. 28.

[7] Entendendo que a supressão do protesto por novo júri corporifica simples norma processual, não tendo natureza mista: BADARÓ, Gustavo. Direito intertemporal. In: Maria Thereza Rocha de Assis Moura (coord.). As reformas no processo penal: as novas leis de 2008 e os projetos de reforma. São Paulo: RT, 2008, p. 31.


jorge-coutinho-paschoal. . Jorge Coutinho Paschoal é Advogado e Mestre em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo (USP). . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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