APLICABILIDADE DAS ASTREINTES EM CASOS DE DIREITO DE VISITA  

25/09/2020

Projeto Elas no Processo na Coluna O Novo Processo Civil Brasileiro / Coordenador Gilberto Bruschi

O instituto das astreintes no direito processual civil brasileiro significa multa cominatória imposta ao devedor que descumpre decisão judicial de obrigação de fazer e não fazer. As astreintes têm seu caráter eminentemente pautado no sistema francês, isto é, a finalidade é coercitiva, não punitiva ou repressiva.

Assim, a multa pode ser definida, nas palavras de Marcus Vinicius Rios Gonçalves, como um “mecanismo de coerção para pressionar a vontade do devedor renitente que, temeroso dos prejuízos que possam advir ao seu patrimônio, acabará por cumprir aquilo a que vinha resistindo”[i].

A aplicação das astreintes aos institutos de direito de família, especialmente no tocante ao direito de visita, é tema polêmico e que levanta algumas controvérsias. O Superior Tribunal de Justiça, em fevereiro de 2017, decidiu no Resp 1481531/SP causa que versava sobre a possibilidade ou não da execução de astreintes decorrentes de acordo de visitas entabulado entre os genitores[ii].

Em que pese o julgamento do Recurso Especial tenha ocorrido em 2017, o processo havia sido iniciado em 2014, portanto, antes da entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015, aplicando-se ao caso o Código de Processo Civil de 1973. Mas, as reflexões trazidas no voto acerca da aplicação das astreintes são atuais e capazes de gerar algumas conclusões.

Na decisão de primeiro grau, o juízo não aplicou as astreintes, pois entendeu que a obrigação passou a ser cumprida pelo genitor guardião e extinguiu a ação. O genitor, que tinha direito a visitas, apelou, requerendo a fixação de astreintes para eventual descumprimento futuro da obrigação. O Tribunal de Justiça de São Paulo reformou a sentença, concluindo que as astreintes deveriam ser fixadas para fazer cumprir obrigação de fazer consistente no direito de convivência do genitor com sua filha. Uma das discussões surgidas nos autos foi a de se as astreintes podem ser fixadas de forma preventiva, ou seja, se poderia ser fixada para um eventual descumprimento futuro.

A parte guardiã ingressou com Recurso Especial alegando que não eram cabíveis as astreintes porque não havia sido descumprido o regime de visitação, e que a multa não poderia ter caráter acautelatório.

O STJ, pela sua Terceira Turma, entendeu ser o direito de visitas um direito fundamental de convivência familiar, daí porque deveria ser entendido enquanto uma obrigação de fazer. Desse modo, a aplicação das astreintes em hipótese de descumprimento do regime de visitas por parte do genitor detentor da guarda da criança, “se mostra um instrumento eficiente, e, também, menos drástico para o bom desenvolvimento da personalidade da criança, que merece proteção integral e sem limitações”[iii].

No contexto do julgado, algumas questões podem ser levantadas: as astreintes podem ser fixadas de forma preventiva? A situação inversa, ou seja, o descumprimento por parte do genitor não guardião, deixando de visitar seu filho, poderia ensejar a aplicação das astreintes?

Para responder ao primeiro questionamento é necessário refletir sobre o direito de visita ou direito de convivência familiar.

A Constituição Federal, no seu art. 227, assegura os direitos das crianças e adolescentes com absoluta prioridade, prevendo o princípio do melhor interesse da criança. E é com base nesse princípio que o direito de visitas ou direito à convivência familiar deve ser interpretado.

Rolf Madaleno entende que o direito à convivência familiar tem a finalidade de favorecer as relações humanas e estimular vínculos afetivos entre pais e filhos[iv]. No mesmo sentido, Maria Berenice Dias entende que a visitação é, além de um direito dos genitores, um direito do próprio filho de convivência, com o objetivo de reforçar os vínculos paterno e materno-filial[v].

Reconhecendo o direito de visitas como um direito do filho de manter o vínculo com ambos os genitores, é possível concluir que se trata de uma obrigação de fazer e, nesse caso, aplica-se à decisão a previsão do art. 497 do CPC: “Na ação que tenha por objeto a prestação de fazer ou de não fazer, o juiz, se procedente o pedido, concederá a tutela específica ou determinará providências que assegurem a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente.”

Dúvida que poderia surgir é com relação à aplicação de astreintes a obrigação que não tenha caráter patrimonial, como é o direito de visitas. Porém, o Código de Processo Civil, no capítulo que trata do cumprimento das obrigações de fazer e não fazer, tem previsão expressa no § 5º do art. 536 no sentido de serem aplicadas as mesmas regras ao cumprimento de sentença que reconheça deveres de fazer e de não fazer de natureza não obrigacional[vi].

Dessa forma, pode-se concluir pelo cabimento das astreintes ao direito de visitas, seja na sentença que prevê tal direito (condenatória ou homologatória), seja em sede de cumprimento de sentença. Assim, a fixação das astreintes também pode ser preventiva. E mais, pensando-se no melhor interesse da criança e adolescente, a fixação de astreintes para o descumprimento do estipulado com relação ao direito de visitas é uma opção bem menos traumática para a criança e o adolescente. A falta de estipulação de astreintes poderia gerar uma ação de busca e apreensão de menor, muito mais invasiva e traumatizante para todos os envolvidos.

Com relação ao segundo ponto, ou seja, a questão do descumprimento por parte do genitor não guardião que deixa de visitar seu filho, não há unanimidade na doutrina e jurisprudência acerca da possibilidade de incidência das astreintes. Para se chegar a uma conclusão, é necessário refletir sobre a existência ou não de dever do genitor não guardião em visitar.

Tomando como base a conclusão do Recurso Especial já mencionado, sendo o direito de visita um direito fundamental baseado no melhor interesse da criança e do adolescente, a conclusão lógica vai no sentido da aplicabilidade das astreintes, isto é, é possível a fixação de multa em ambos os casos, tanto na hipótese do genitor guardião dificultar o exercício do direito de visitas, quanto no caso da inércia do genitor não guardião em cumprir o seu dever.

Mas há entendimentos contrários a esse na prática. Exemplifica-se com os seguintes julgados do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO DE VISITAS. MULTA PELO DESCUMPRIMENTO. IMPOSSIBILIDADE. A imposição de multa em caso de descumprimento do dever de visita não constitui a forma mais adequada de garantir o direito do filho ao convívio com o pai, eis que o relacionamento entre ambos deve se desenvolver a partir da livre e espontânea vontade das partes. RECURSO PROVIDO. (Agravo de Instrumento Nº 70016868333, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Claudir Fidelis Faccenda, Julgado em 01/11/2006)

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE REGULAMENTAÇÃO DE VISITAS. INDEFERIMENTO DO PEDIDO DE APLICAÇÃO DE MULTA PELO DESCUMPRIMENTO DAS VISITAS.

1. Não cabe imposição de multa pecuniária por eventual descumprimento de parte da genitora, já que o interesse em disputa transcende a questão meramente econômica, situando- se no plano do direito do filho de conviver com o genitor.

2. A regulamentação de visitas materializa o direito do filho de conviver com o genitor não-guardião, assegurando o desenvolvimento de um vínculo afetivo saudável entre ambos, devendo ser resguardado sempre o melhor interesse da criança, que está acima da conveniência dos genitores. Recurso desprovido. (TJ-RS - AI: 70047324876 RS, Relator: Roberto Carvalho Fraga, Data de Julgamento: 25/07/2012, Sétima Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 31/07/2012).

Os julgados acima citados, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, primaram pela liberdade e espontânea vontade do não guardião e filho para a construção de um bom relacionamento familiar. Nesse sentido, classificaram as visitas enquanto uma faculdade, e não um dever.

Em sentindo contrário, defendendo a aplicação das astreintes na hipótese de inércia daquele que deveria visitar, Rolf Madaleno entende que “A multa tem ampla incidência na execução de obrigação de fazer, como sucede no dever ou direito de convivência, podendo ser imposta em caso de descumprimento do acordo, ou da pontual determinação das visitas”[vii]. Concluindo também pela possibilidade da aplicação das astreintes para o genitor não guardião, Adriane Medianeira Toaldo, Claudia Schmitt Rieder e Eliane Celina Goulart Leal Severo concluem que a aplicação das astreintes nessa hipótese pode até mesmo reverter a conduta do obrigado inadimplente[viii].

No mesmo sentido, Dimas Messias de Carvalho: “o descumprimento do dever, da obrigação jurídica e moral do pai não guardião, autoriza o juiz, de ofício ou a requerimento da parte, a imposição de multa, da mesma forma em que se aplica ao genitor guardião que dificulta ou impede as visitas”[ix]

Nessa mesma linha, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios posiciona-se pela possibilidade de fixação de multa cominatória ao genitor que descumpre o dever de visita do filho, ao terceirizar tal obrigação para a família. Vejamos:

DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. REGULAMENTAÇÃO DE VISITAS. FIXAÇÃO DE MULTA POR DESCUMPRIMENTO. POSSIBILIDADE. DEVER DO GENITOR. DIREITO DA CRIANÇA. EXERCÍCIO POR PARENTES. NATUREZA PERSONALÍSSIMA. RECURSO NÃO PROVIDO.

1. O direito às visitas há muito deixou de ser um direito do genitor, sendo visto mais como um direito do filho de conviver com seu pai, sendo essa obrigação infungível, personalíssima, não podendo ser exercida por parentes (Maria Berenice Dias, Manual de Direito das Famílias, 8ª ed., p. 456).

2. É cabível e conta com amparo legal a fixação de multa por descumprimento do dever de visitas, nos dias e horários aprazados.

3. Apelo não provido. Sentença mantida.[x]

Infere-se da decisão que o direito de visita faz nascer obrigação de fazer infungível e de caráter personalíssimo, daí porque não pode a visitação ser terceirizada, nem mesmo para outros membros da família.

Diante do exposto, conclui-se que as astreintes são um importante mecanismo para tornar efetiva a decisão do juiz no caso de descumprimento do direito de visitação, reconhecendo que o direito de visitas deve ser entendido não apenas enquanto direito do genitor não guardião, mas, também, como direito do filho à convivência familiar. Dessa forma, são cabíveis as astreintes tanto na hipótese em que o genitor guardião desrespeite o regime de visitas ou convivência estipulado, quanto para forçar o genitor não guardião a cumprir o seu dever de estar com seu filho.

 

Notas e Referências

[i] GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios, Direito Processual Civil, 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 762.

[ii] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 148153. 3. Turma. Relator: Ministro Moura Ribeiro, j. 16 fev. 2017. Disponível em: <https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201401869064&dt_publicacao=07/03/2017>. Acesso em: 15 set. 2020: 09:50.

[iii] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. REsp 148153. 3. T. Relator: Ministro Moura Ribeiro. j. 16 fev. 2017. Disponível em: <https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201401869064&dt_publicacao=07/03/2017>. Acesso em: 15 set. 2020: 09:50.

[iv] MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. 10. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 808.

[v] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 532-534.

[vi] “Art. 536, § 5º O disposto neste artigo aplica-se, no que couber, ao cumprimento de sentença que reconheça deveres de fazer e de não fazer de natureza não obrigacional”

[vii] MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. 10. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 816.

[viii] TOALDO, Adriane Medianeira; RIEDER, Claudia Schimitt; SEVERO, Eliane Celina Goulart Leal. O direito à convivência familiar e a possibilidade jurídica da multa cominatória. Revista Justiça & História, v. 10, n. 19-20, 2010, p. 223.

[ix] CARVALHO, Dimas Messias de. Direito das famílias. 6. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 512-513.

[x] DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça. Apelação n. 20140110171334. Relator: Desembargador Arnoldo Camanho de Assis. Revisor: Sérgio Rocha 4. Turma Cível, j. 18 mar. 2015. Diário de Justiça Eletrônico, 30 mar. 2015. Disponível em: <https://pesquisajuris.tjdft.jus.br/IndexadorAcordaos-web/sistj?visaoId=tjdf.sistj.acordaoeletronico.buscaindexada.apresentacao.VisaoBuscaAcordaoGet&baseSelecionada=BASE_ACORDAOS&numeroDoDocumento=856472&idDocumento=856472>. Acesso em: 17 set. 2020, 15:32.

 

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