Por Carlos Eduardo Martinez - 02/03/2016
A ideia de interpretação principiológica tem base na busca por efetividade na aplicação das normas jurídicas e mesmo de entendimento do próprio ordenamento jurídico. Evidente que a positividade das normas garante a racionalidade dos deveres e direitos dos cidadãos. No entanto, os princípios superam a característica do positivismo regando a hermenêutica jurídica com padrão geral de conduta, bem como visando a aplicabilidade daquilo expresso nas leis.
A partir desse modo de pensar a hermenêutica, com alicerce nos princípios, realizamos pesquisa acerca da aplicabilidade do princípio da insignificância penal no tocante ao crime de pesca no período defeso – tipo penal previsto na Lei Federal n.º 9.605/98 -. Para tanto, em vias de tornar a pesquisa mais efetiva e restringi-la a ponto de construirmos um melhor entendimento sobre o tema, pesquisamos junto ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região a jurisprudência relacionada ao objeto de pesquisa. Como aspectos de desenvolvimento abordamos o tema partindo da análise do princípio da ofensividade, diferenciando o citado da insignificância penal, além de indicar ligação entre o tipo penal em comento com o conceito de sociedade de risco e a forte antecipação da tutela penal vista hodiernamente criando ensejando a fortificação da figura do crime de perigo abstrato.
Claro que esse não é o espaço da discorrer do inteiro teor da pesquisa. Contudo, podemos comentar alguns dos pontos mais significativos para um entendimento aclareado sobre o tema de pesquisa.
O recorte feito tomou como base os julgamentos proferidos pelo TRF4 do ano de 2008 até o primeiro semestre do ano de 2015, visando identificar se havia um padrão de aplicabilidade do princípio da insignificância penal quanto a pesca realizada em período proibido. Pudemos identificar dois importantes posicionamentos da Corte Regional Federal quanto a divergência de aplicabilidade da insignificância penal: a) de um lado considerando crime de perigo abstrato, e a especial proteção conferida ao bem jurídico meio ambiente, impossível sua aplicação. Resultante tal posicionamento pela interpretação do texto contido no artigo 225 da Constituição Federal Brasileira; b) por outro lado, em vias de significar o manejo do aparelho estatal a conduta praticada tem de representar ofensividade suficiente contra o bem jurídico tutelado, qual seja, meio ambiente natural.
Além disso, a possibilidade de aplicação da insignificância na esfera penal ambiental ganhou força a partir do julgamento do HC n.º 112.563/SC, oportunidade em que os eminentes ministros do STF analisaram caso envolvendo a pesca de doze camarões da espécie rosa em determinada localidade no Estado de Santa Catarina. A repercussão do caso acalorou as discussões relativas à possibilidade de incidência da insignificância penal nos delitos ambientais.
Citam os desembargadores que tanto aplicam quanto deixam de aplicar a insignificância penal referente a pesca em período proibido que, o levado em conta não é a quantidade, e sim, dano causado ou não pela conduta praticada. Nisso, importante salientar que, a abstração dos tipos penais que necessitam de um complemento (normas penais em branco) levam em conduta o grau de reprovabilidade da conduta em face da ofensa contra o bem jurídico tutelado pela norma. Ou seja, como sugere o próprio tipo penal, não importa o resultado da conduta expressada, mas sim, a mera infringência àquilo que a lei tutelou como ofensivo ao bem jurídico protegido.
Evidente, essa postura do legislador brasileiro vai de encontro ao pensamento do finalismo penal, seara onde o importante é o resultado da conduta praticada. Também apresenta características daquilo que o prof. Silva-Sanchéz denominou de expansão do direito penal, um alargamento e aumento de legislações que antecipam a tutela penal cirando figuras de perigo abstrato. Muito desse pensamento hodierno tem base na sociologia naquilo que Ulrich Beck nomeou como sociedade de risco, conceito que ultrapassa os limites da modernidade criando um pensamento da Pós-Modernidade – resultado das conquistas produzidas pela sociedade onde, após o uso indiscriminado dos meios naturais a sociedade se depara com catástrofes climáticas e outras decorrências. Por outro lado, a proteção do meio ambiente natural é algo pretendido pelo legislador constitucional, se não qual outra razão justificaria o expresso no texto do artigo 225 da Magna Carta?
Contudo, o que propusemos na pesquisa realizada é a utilização de outros meios (Direito Civil, Administrativo) previstos no Direito que não a incidência da esfera penal, tendo por premissa o cerne da ultima racio. Apenas, e tão somente, quando as outras esferas do Direito restarem insuficientes é que se legitima a atuação do Direito Penal.
Discussão há muito abordada no meio doutrinário/acadêmico tendo como importante estudo aquele realizado pelo prof. Fabio Roberto D’Ávila em sua tese de doutorado intitulada “Ofensividade e Crimes Omissivos Próprios - Contributo à compreensão do crime como ofensa ao bem jurídico”. Estudo no qual são feitas diferenciações entre as diversas modalidades de crime de perigo abstrato relacionadas ao princípio penal constitucional da ofensividade.
O Direito enquanto ciência busca a análise do caso concreto, objetivando manter o ordenamento jurídico, por consequência a segurança jurídica evitando que decisões judiciais sejam prejudiciais à sociedade e revelem-se inócuas. O Judiciário busca equilíbrio e razoabilidade em suas decisões visando à pacificação social. Contudo, quando estamos tratando de normais penais de perigo abstrato, verifica-se uma franca antecipação da tutela penal, principalmente quando se trata de bens jurídicos supraindividuais.
A prevenção, por forma de antecipação de atuação do Direito Penal, caracteriza risco evidente ao sistema garantista de preceitos constitucionais e ordinários penais. Visto a expansão evidente, e iminente em alguns pontos, da ultima ratio do Direito, surgem importantes instrumentos de restrição ao punitivismo desproporcional e sem qualquer razoabilidade. Torna-se mister que, mesmo não se aferindo o resultado da conduta no tipo penal do art. 34, caput, da Lei nº 9.605/98 existam mecanismos de frenagem à sanção estatal, criando padrões de aplicação dos princípios de política criminal como é o caso da insignificância penal.
Certo é o descompasso existente na jurisprudência pesquisada, onde há mera ritualística de ocorrência formal do crime previsto no art.34, caput, primeira parte, da Lei de Crimes Ambientais. Se a conduta prevista tem como base um perigo de dano, isto é, um crime formal, onde o resultado decorrente pouco importa, sobreleva-se o papel da jurisprudência. Uma linha de entendimento capaz de aplicar ao caso concreto princípios despenalizadores em prol da segurança jurídica das normas e do próprio Direito. Pois, o mínimo parâmetro de aplicação da insignificância penal pelo magistrado deve existir.
Defende-se aqui, o mínimo de critério na aplicação do citado princípio, visando à segurança jurídica das decisões judiciais e para melhor e mais lúcida consecução dos instrumentos de Política Criminal, em vias de efetividade e razoabilidade tendo em conta o caso específico.
A promoção e devida efetividade de princípios despenalizadores, como é o caso da insignificância penal, traz à baila importante discussão acerca da real ofensa ao bem jurídico tutelado, onde sem a verificação in casu não há razão para mobilização do direito penal, servindo este quando de uma significativa ofensa ao bem jurídico. Nesta situação, protegido pelo artigo 34, caput, da Lei de Crimes Ambientais, qual seja, em maior amplitude o meio ambiente natural, consequentemente a fauna aquática no período de piracema.
Inobstante, mesmo nas esferas superiores do Judiciário Brasileiro, verificamos a existência de critérios para aplicabilidade da insignificância penal. No entanto, não há um padrão de aplicabilidade do referido princípio político-criminal.
Embora os Desembargadores do TRF4 sustentem que o aspecto quantitativo (isto é, a quantidade do pescado) não é levando em conta, nitidamente observa-se o contrário. Mesmo os argumentos favoráveis a incidência da bagatela em determinados casos, resta evidente o caráter quantitativo do pescado. Nessa senda, reforça-se que a ligação entre a quantidade e a inexpressiva lesão ao bem jurídico tem intrínseca relação.
Doravante, não se possa mensurar (a não ser com a devida aferição pericial) o quantum capaz de gerar ou não dano ao meio ambiente natural, também não é possível argumentar em cima da relatividade, sob pena de descaracterizar a própria funcionalidade da seara penal.
O risco pelo risco não é argumento suficiente para basear “decisionismos” judiciais. Vivemos, como bem ressalta Bauman, a “Era da liquidez”, onde as certezas esvaíram-se em dúvidas, medos e, evidentemente, incertezas. O que antes era possível, hoje não é mais. Incertezas quanto ao futuro da humanidade, do meio ambiente natural foram o combustível para a elaboração de diversas teorias, pensamentos prós e contras. A dita “sociedade de risco” referendou ao Direito, especialmente no tocante a área Penal, o aumento de tipos penais em abstrato, figurando a antecipação da tutela estatal como o mais moderno viés da prevenção geral positiva.
Possível inferirmos que vivemos, atualmente, o “Direito das Sensações” - sensação de insegurança, de medo, de incerteza, de proteção, de justiça. Medida a qual acaba legitimando o “decisionismo à lá carte”[1], conforme o pedido do dia, descambando a falta de precedentes judiciais aptos ao alicerce do Direito.
Em outra medida, a finalidade do direito penal é a proteção de bens jurídicos, pressupondo o funcionamento do aparato estatal e da Justiça. Contudo, essa finalidade deve sofrer uma limitação ulterior, consequência da política criminal segundo a qual apenas são impostas penas aquelas lesões de bens jurídicos sem a possibilidade de serem evitadas por meios menos incisivos (esfera administrativa ou cível)[2] . Primando pela natureza subsidiária e fragmentária, intervindo minimamente o Direito Penal.
Nesse jaez, sob a égide do Estado Democrático de Direito, tendo por instrumento normativo máximo de consecução dos direitos e garantias a Constituição da República Federativa do Brasil, a ofensividade é aspecto basilar a ser observado. Não basta apenas a conduta ser típica, ilícita e culpável, esta deve representar ofensa ao bem jurídico tutelado por dada norma para que seja aplicada a pena consequente. Razão pela qual é reconhecida a atipicidade material do crime específico contra o meio ambiente natural, quando a conduta do agente não alcança grande reprovabilidade e é irrelevante a periculosidade social e a ofensividade da ação.
Por derradeiro, argumentamos pela importância de uma padronização nos julgados do TRF4 relativos ao delito de pesca na piracema, sob o risco de ao contrário gerar insegurança jurídica para as decisões proferidas e na aplicação dos preceitos político-criminais. Alinhando ao argumento, também referido em alguns dos acórdãos analisados, de necessária análise do Pleno do Supremo Tribunal Federal visando nortear ou, ao menos, indicar parâmetros de aplicabilidade da insignificância penal quanto aos crimes ambientais, especialmente ao delito em estudo. Levando em conta que, embora existindo decisão proferida pela 2ª Turma do STF aplicando a insignificância em apresentado crime de pesca no defeso, tanto STJ quanto o TRF4 (no nosso caso) tem decidido de maneira diversa. Inclusive argumentado pela impossibilidade de aplicação da insignificância penal na seara ambiental.
Inadmissível é pautarmos decisões judiciais sob o reino da incerteza, onde situações são apresentadas e nítido percebemos a desproporcionalidade e irrazoabilidade na aplicação de uma pena, face uma conduta que não ocasionou ou produziu risco de lesão ao bem jurídico tutelado. Importante sempre referirmos o caráter de intervenção mínima da esfera penal e a natureza de ultima ratio, derradeiro instrumento a ser utilizado pelo Direito visando o amparo e proteção de bens jurídicos.
Notas e Referências:
[1] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. 1 v. Expressão utilizada pelo autor citado quando em referência crítica a figura do livre convencimento no âmbito do Direito Processual Penal;
[2] ROXIN, Claus. Fundamentos Político-criminais e Dogmáticos do Direito Penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 23, n. 112, p.33-39,jan.-fev.,2015.
D'ÁVILA, Fabio Roberto. Ofensividade e Crimes Omissivos Próprios (Contributo à compreensão do crime como ofensa ao bem jurídico). Coimbra: Coimbra Editora, 2005.
BAUMAN, Zygmunt. O Mal-estar da Pós Modernidade (tradução de Mauro Gama). 1. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1998.
BECK, Ulrich. Sociedade de Risco - Rumo a uma outra modernidade - (tradução de Sebastião do Nascimento). 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011.
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TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5. ed. 11. tir. São Paulo: Saraiva, 2002.
. . Carlos Eduardo Martinez é Bacharel em Direito. Conciliador Cível do JEC – Comarca de Tramandaí/RS. . .
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