Apenas um sonho

16/03/2021

Coluna Justa Medida

De repente, não mais que de repente, o orgulho de ser brasileiro ressurge no cenário midiático, pelas mãos improváveis da invisibilidade do folclore. A Netflix resgata a mitologia brasileira com toda a pompa e circunstância em série que se torna a nova Stranger Things

As cenas são praticamente costuradas ao cotidiano dos brasileiros. E de repente, não mais que de repente, resgatamos a riqueza da cultura desta pátria mãe gentil. O orgulho nos toma: o Brasil se vê e se representa na TV e na internet; o Curupira é nosso, a Cuca é a mais linda, a Yara é mãe de todas e quem precisa de Loki quando se tem o Boto? Em princípio, é um sonho.

Em verdade, somente um sonho. A brasilidade permanece invisível, envolta nas névoas de uma aparente representatividade que retrata a cultura brasileira sem dar rosto às suas origens. Enclausurado num projeto de deslegitimação de vozes, o sonho da representatividade assiste seu maior anseio se tornar pesadelo na ficção do reality.

Essa brasilidade, construída a duras penas por quem foi privado de sua terra e de sua humanidade, assiste com pesar estes assaltos às suas raízes, tentativas sistemáticas de arrancar e apagar os sorrisos e abraços negros que tanto trazem felicidade da História brasileira.

Diz a música que houve um tempo em que todo dia era dia deles, os povos indígenas, os verdadeiros donos de terrae brasilis, uma nação de muitas nações. Todos os dias eram desses povos, até sobrar apenas um, que em verdade. é nenhum. dos tupinambás, apinajés, tonamis e tantos outros, restaram somente os nomes, ornando ruas de bairros nobres em grandes metrópoles; como o Partenon, hoje um eco de eras épicas, cascas que ornam sem o conteúdo que lhes dá significado e relevância.

Cidade Invisível é uma série que nos leva a admirar e refletir sobre estes conteúdos, e seu lugar na sociedade atual, de inúmeras formas. A adaptação destes seres mitológicos às desigualdades brasileiras remetem ao tratamento dado ao estado da Bahia, em recente produção global: mesmo sendo o estado com mais presença da população negra no Brasil, foi retratado por personagens, sotaques e maneirismos tipicamente brancos, sob a escusa de que “não haviam pessoas negras” para o retrato.

Diante de ocorrências como esta, é importante refletir sobre o que consumimos, e pensar o consumo de forma crítica. O mundo do entretenimento define diversos formatos de violência simbólica, e a partir da popularização da televisão, é um dos mais potentes mecanismos de reforço das ferramentas que formam e informam as relações raciais no Brasil, seja pela invisibilidade, pela estereotipação, ou pelo embranquecimento, um dos maiores pilares da sociedade brasileira.

A chamada identidade nacional é intimamente ligada à negação da existência e da presença das pessoas negras na construção da nação brasileira, e expoentes de sua arquitetura são comumente homenageados. É o caso de Sílvio Romero e Nina Rodrigues, acadêmicos abertamente racistas; ao inventariar a literatura brasileira, Sílvio Romero deliberadamente excluiu o que derivava das culturas negras e indígenas, enquanto  Nina Rodrigues, ao introduzir a antropologia criminal no Brasil, tratou de aplicar marcadores sociais de diferença à lógica lombrosiana do inimigo, algo que perdura até a atualidade.

As estratégias de branqueamento tratam de adequar as simbologias, tradições e culturas de grupos não brancos a uma sociedade branca e embranquecedora, diluindo estes elementos de forma pejorativa até torná-los irreconhecíveis aos povos originários e assimilados aos povos eurocêntricos, que podem, então, apropriar-se destas origens. São exemplos dolorosos e controversos os escritos de Monteiro Lobato, que expõem uma verdadeira cruzada contra a brasilidade disfarçada de nacionalismo.

O uso de personagens folclóricos tem um traço caricato, infantilizado e agressivo com as representações de suas origens - como prova, é a dinâmica de personagens míticos com Dona Benta, mulher negra, sempre hostilizada na trama; as poucas vozes em sua defesa o fazem “apesar da condição de sua pele”, tida como inserida em polo de negatividade, impureza e maldade.

A obra de Monteiro Lobato já se tornou referência à mitologia nela tratada, a ponto de povoar os mecanismos de busca com suas ilustrações - caricatas, infantilizadas, e por vezes, embranquecidas - em vez de respeitar os retratos feitos pelos povos originários.  Com isso, o folclore brasileiro se tornou refém da representação de Lobato - diluída, caricata, infantilizada, embranquecida. E assim, sistematicamente distanciada de suas origens, esta mitologia rica foi apagada da história brasileira; agora, ressurge nas telas, vestida de branco, assimilada a um ideário eurocêntrico incompatível com suas origens.

A reflexão se faz necessária. Para além da crua exposição de um projeto centenário de embranquecimento brasileiro, cumpre observar a sistemática de violências simbólicas direcionada às populações negras e indígenas, compiladas em 8 episódios com média de 30 minutos. As comunidades ribeirinhas, comumente indígenas e quilombolas, são retratadas por pessoas brancas. Os principais personagens da mitologia indígena, difundidos especificamente para afastar os colonizadores de outrora de suas matas e aldeias, ganham as mesmas feições que os piores pesadelos das nações indígenas à época. Os poucos personagens negros presentes são retratados em estereótipos, e existem em função das pessoas brancas, ou em posição de subordinação à mitologia agora embranquecida.

A simbologia trazida pela série é um assalto a todo o trabalho de resgate de valores, identidades e ancestralidades de movimentos indígenas e negros no Brasil. O mais chocante é ver o fato passando despercebido por todos, e ver que, com tantas produções imersas na história e na cultura brasileira disponíveis, só agora, com uma Cuca que descende diretamente de colonizadores portugueses, os brasileiros se manifestam em redes dedicadas ao cinema com orgulho deste país.

É fato preocupante, que nos traz reflexões acerca do sucesso dos projetos de Sílvio Romero e Nina Rodrigues, dentre tantos outros. Sem retoques, a mitologia brasileira é digna de um universo cinematográfico próprio; precisamos mesmo vestir a riqueza cultural do Brasil com os rostos dos colonizadores, que tanto tentaram destruir esta identidade?

 

Imagem Ilustrativa do Post: Justice // Foto de:Becky Mayhew // Sem alterações

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