«Nadie te pidió que sufrieras. Eso fue idea tuya». Paul Schrader
- A solidão é o preço da liberdade[1]; a rotina, do êxito
Byung-Chul Han, autor do livro La sociedad del cansancio, abandeira a necessidade de recuperar nossa capacidade contemplativa para compensar nossa hiperatividade destrutora. Segundo este filósofo, somente tolerando o aborrecimento e o vazio seremos capazes de desenvolver algo novo e de desintoxicar-nos de um mundo repleto de estímulos e de sobrecarga informativa.
Ainda que para ser realmente autônomo (quer dizer, a ir pela vida com independência) é necessário aprender “a transitar la soledad” (não como um castigo ou uma penitência), na maioria das vezes a sensação de estar isolado, gerada pela rotina de nossos estudos, não deixa de parecer uma experiência negativa. Tenho a impressão que um dos aspectos fundamentais desse sentimento consiste no contraste entre as circunstâncias atuais e algumas outras possíveis circunstâncias mais agradáveis que se abrem caminho de maneira irresistível na imaginação de quem se dedica diariamente a este tipo de atividade (estudar).
Não pretendo dizer que essa forma de isolamento deliberado e o fastio provocado pela monotonia tenham necessariamente que ser uma carga insofrível; somente digo que, às vezes, o verdadeiro custo para a realização de alguns de nossos propósitos é aquilo ao que há que suportar, renunciar e/ou superar para consegui-lo. Os propósitos construtivos e valiosos não se formam facilmente na mente de uma pessoa se esta vive uma vida de distrações e dissipações (uma mente erradia), porque neste caso seus pensamentos sempre estarão dirigidos ao prazer imediato e não ao distante logro.
Tampouco há que temer ou evitar essas emoções caracteristicamente humanas. Em realidade, estou convencido que a capacidade para suportar uma vida mais ou menos solitária e rotineira deveria adquirir-se na infância. Entre tantas outras coisas, porque nada é mais importante que fazer com que nossa dita dependa unicamente de nós mesmos, conservando a própria independência e autonomia interior, apesar de e frente a todos e a tudo: uma pessoa capaz de estar só, de não enfadar-se (não queixar-se, não compadecer-se de si mesmo) por estar só e de não necessitar de ninguém porque não suporte a solidão. Poucas coisas nos fazem tão autônomos e livres, tão independentes dos manejos alheios, como a capacidade para não permitir que o tempo “pese como um íncubo” sobre nosso espírito quando não temos alguém ao lado e pendente de nós.
E essa virtude, se o é – e a mim me parece que sim -, também há que inculcá-la e também necessita seu treinamento para esses largos momentos dedicados ao estudo. É uma maravilha ter coisas próprias para pensar, para entreter-se sozinho e aprender a desfrutar a estar consigo mesmo enquanto se pensa. A melhor educação também se compõe desses momentos em que o sujeito se educa a si mesmo e descobre a rica e prazenteira que é a vida interior, o bem que se está sem que nos perturbem organizando-nos os dias, impedindo-nos descobrir pouco a pouco o que realmente nos dá satisfação ou forçando-nos - e às vezes atropelando – em conseguir o que intimamente desejamos.
Do mesmo modo, o tédio causado ou motivado pela rotina dos estudos deve ser percebido com paciência, sensatez e sereno sossego, uma experiência inevitável que decorre da evidência de que os objetivos difíceis não se logram de forma sincrônica, no momento, senão mais bem de forma diacrônica, ao longo do tempo. Admitir que o compromisso que assumimos com nossos propósitos implica não somente dias plenos, senão também dias vazios, e que são precisamente esses dias que percebemos como vazios e enfadonhos uma das poucas garantias de nosso êxito futuro.
Não sendo assim, corremos o risco de que nosso agastamento carregue consigo a completa perda de interesse no que sucede. E uma consequência natural disso é que nossa disposição a estar atentos se debilita e nossa vitalidade psíquica se atenua. Em suas manifestações mais habituais e características, estar entediado implica uma redução radical da agudeza e constância da atenção. O nível de nossa energia, atividade, motivação e perseverança diminui, ao igual que nossa receptividade às coisas que realmente importam. Nossa consciência perde a capacidade de perceber diferenças e distinções, convertendo-se em algo cada vez mais homogêneo. À medida que se expande e se apodera de nós, o enfado faz com que nossa capacidade de compreensão experimente uma diminuição progressiva no que se refere à percepção e retenção do que é relevante para nossos objetivos.
Dito de forma mais simples: dedicar-se a uma tarefa difícil significa ou consiste essencialmente, entre outras coisas, em considerar e priorizar nossos interesses, sonhos e objetivos como razões para atuar, com esforço, dedicação e perseverança, ao serviço dos mesmos. Nenhum grande logro é possível sem trabalho persistente, tão absorvente e difícil que resta pouca energia para entregar-se à eventual angustia provocada pela solidão ou pela rotina.
Ademais, uma vida realizada tem que ser, em grande medida, uma vida sossegada, pois somente em um ambiente tranquilo e uma rotina marcada por bons hábitos pode viver a autêntica plenitude (B. Russell). Esta plenitude depende unicamente da postura mental e da atitude que adotemos ante a vida que escolhemos levar, através de todos seus fenômenos e imprevistos, e que com o tempo exercita a virtude do pensamento, se estende e perdura; quer dizer: não é tanto uma questão do que fazemos, senão de nossa atitude com relação ao que fazemos. Já sabem: da mesma forma que escolhemos nossos amigos, amantes e cônjuges, também escolhemos os fatos em que queremos crer.
Não nos compliquemos demasiado a vida e deixemos de lado qualquer eventual, ansioso e agônico sentimento de preocupação com nossa solitária e rotineira atividade de estudantes e não confiemos em “ninguém – incluídos nós mesmos – que nos indique o muito que devemos confiar em seu juízo” (D. Kahneman). Possuímos uma alma que pode defender-se por si mesma; pode fazer-se companhia, tem com que atacar e com que proteger-se, com que receber e com que dar. Não temamos, em nossa solidão, apodrecer-nos ou corromper-nos no tédio da rotina. A virtude se contenta consigo mesmo e a coisa mais importante do mundo é saber ser para si mesmo, “ser capaz de ser suficiente para si mesmo e capaz de estar consigo mesmo”. (Epicteto)
Portanto, não se trata de se podemos superar a solidão e o tédio que nossos estudos eventualmente nos provocam, senão simplesmente de como o faremos. Por quê? Porque qualquer forma de estudo comprometido e preparação significativa impõe, para o bem ou para o mal, isolamento e rotina; o único que realmente importa é sentir-se satisfeitos e entusiasmados com o que somos e com o que fazemos, com as metas que fixamos, as eleições que fazemos e as ações que levamos a cabo. E na medida em que queremos ser o que fazemos de nós mesmos através da forma em que elegemos atuar, “a partir de certo ponto, as diferenças meramente quantitativas passam a constituir câmbios qualitativos”. (K. Marx).
Notas e Referências
[1] Carmen Díez de Ribera
Imagem Ilustrativa do Post: Studying // Foto de: rhodesj // Sem alterações
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