Apaga esse sorriso da cara: estudar sem esforço para concurso, um objetivo impossível (Parte 1)

18/05/2018

“No me dedico a decirle a la gente lo que tiene que hacer – ya hay bastantes que se dedican a ello -, sino lo que hago yo.” 

(Montaigne)

A afirmação que dá título a este artigo© tem uma explicação curta e outra extensa. A curta é: porque estudar para um concurso é uma inversão de tempo e esforço (cognitivo, emocional, ...), e tempo e esforço não se pode comprar, há que vivê-los.  A longa é que o mito do candidato genial que aprova “de primeira” há que contrapesar com uma realidade muito mais frequente: a de todos os que tem que empregar horas, energia e (toneladas de) dedicação em estudar pelos caminhos mais ou menos ao uso.

Claro está que a assertiva precedente não teria nenhum sentido se existisse uma receita ou uma fórmula mágica para estudar, aprender e aprovar. Bastaria seguir as instruções. Estudaríamos, aprenderíamos e aprovaríamos conforme a um modelo experimentado, seguindo um método comum, indiscutível e infalível. Monstruosa fantasia.

A tarefa de preparação para um concurso te rouba os planos do dia seguinte, da semana seguinte, do mês que vem. Um concurso te rouba a normalidade. De fato, tudo passa a ser muito mais complicado do que parece, porque estudar/aprender é uma atividade que somente o estudante pode experimentar como própria, que lhe exige um forte compromisso pessoal e ativo para impulsar e potenciar distintas competências e habilidades com a finalidade de que seja capaz de desenvolver múltiplos aspectos de sua capacidade cognitiva, intelectual, crítica e emocional.

Mas, dado que não podemos subtrair-nos às opiniões alheias (ainda que não deveríamos olvidar que as opiniões, por relevantes que sejam, não têm outra realidade intrínseca que a que lhes outorgamos em nossa mente), o que farei à continuação será oferecer simples pontos de vista acerca do que considero particularmente importante para superar ou minimizar as dificuldades encontradas por aqueles que vivem a realidade dos concursos públicos, sem pretender desconsiderar a atmosfera de incerteza (epistêmica - que resulta da falta de conhecimentos[1] - e aleatória - que resulta de circunstâncias que ocorrem por azar[2]) que circunda o anacrônico, descaradamente rentável e pasmosamente retorcido modelo que nos dias que correm dá forma a esse tipo de competição.

  1. “It’s the brain, stupid!”[3]

Segundo David Eagleman, todas as experiências da vida – desde uma conversação à mais vasta cultura – conformam os detalhes microscópicos de nosso cérebro. Nosso cérebro se metamorfoseia de maneira incessante, constantemente reescreve seu próprio circuito, e como nossas experiências são únicas, também o são os vastos e detalhados padrões de nossas redes neuronais.

De forma muito simplificada: nos últimos anos, a neurociência nos ensinou muito sobre como o cérebro humano representa e armazena a informação e o conhecimento. Aprender significa basicamente adquirir novas representações neuronais de informação e estabelecer relações funcionais entre estas e as já existentes no cérebro. Isto é possível porque quando aprendemos se formam novas conexões entre os neurônios que albergam o conhecimento, ou se fortalecem e estabilizam e, inclusive, desaparecem muitas das já existentes. São processos de câmbio derivados da capacidade do cérebro para aprender (isto é, para cambiar-se a si mesmo) que em conjunto se denomina plasticidade. É plástico o cérebro porque pode modelar-se e manter a forma: “la experiencia lo cambia, y ese cambio se mantiene”. (D. Eagleman)

Esta plasticidade nas conexões e circuitos neuronais do cérebro se corresponde com o fato de que, como consequência da prática e a experiência, as memórias e outras capacidades mentais (intelectuais, emocionais, comportamentais, etc...etc.) das pessoas podem igualmente aparecer ou desaparecer, reforçar-se ou debilitar-se. Trata-se, em síntese, de uma propriedade do cérebro que consiste na capacidade de modificar sua estrutura e os padrões de atividade de maneira significativa, não somente durante a infância - o que não seria muito surpreendente -, senão também na idade adulta e, em geral, ao longo de toda a vida (R. Davidson).

E não, não se trata de simples parlapatório: é um processo neurológico contrastado. O cérebro muda de uma maneira real e física em resposta a cada experiência, a cada novo pensamento e, principalmente, a cada novo conhecimento aprendido ou habilidade adquirida. Não é nem imutável e nem estático, senão que a vida que levamos o remodela constantemente: tudo o que experimentamos transforma a estrutura física de nosso cérebro e os mecanismos de aprendizagem e memória são os que fazem que tal coisa ocorra.

Apesar disso, há uma “lei de ferro” que rege os acontecimentos neuronais: o que não se usa se perde. Isso significa que a intensidade com que se transmitem os sinais entre os neurônios se reforça com o uso reiterado e se debilitam com o desuso; que dizer,  nosso cérebro muda e se fortalece quanto mais o utilizamos. E uma vez que esse fortalecimento ocorre especialmente durante e mediante o aprendizado contínuo, quanto mais exercitemos nossa mente com estudo/aprendizado, mais células cerebrais e mais comunicações (conexões sinápticas) entre elas se desenvolverão. Aprender é um processo de construção de redes ou conexões sinápticas; recordar é manter ou fortalecer essas conexões.

Portanto, da próxima vez que o indulgente leitor (a) estiver estudando, imagine que seu cérebro está estabelecendo novas conexões à medida que se enfrenta ao desafio, se concentra no que está fazendo e estuda com atenção. Ao final de cada dia de estudo mentalmente ativo e atento, tenha a certeza de que estará com um cérebro cujos neurônios (“que não morrem por atividade, senão por inatividade”) estão conectados de forma ligeiramente distinta a como o estavam quando se despertou pela manhã. E o amável leitor (a) também haverá cambiado de maneira paralela.

Por que digo tudo isso? Digo tudo isso apenas para lembrar que, dado que estamos dotados de um cérebroque sobrevive cambiando-se a si mesmo” (N. Doidge), convém ser conscientes de que o fenômeno da plasticidade cerebral permite educar nossa maneira de ser, estudar e aprender, de tal maneira que mediante uma preparação e formação adequadas podemos melhorar substancialmente o funcionamento global de nosso cérebro ante a maranha de possibilidades a que está exposto e que o modela[4]. Como (bem) disse em certa ocasião Catherine Malabou: “Los humanos hacen su propio cerebro pero no saben que lo hacen”.

Notas e referências

© Nota bene: Este artigo, dividido em 11 partes, corresponde a um extrato, ligeiramente modificado, do Livro FERNANDEZ, Atahualpa e FERNANDEZ, Marly. “Concurso público e o inimigo interior. Fracasso, vontade e resistência”, São Paulo: Editora Biblioteca24horas, 2013.

[1]http://emporiododireito.com.br/backup/estudar-para-que-parte-1-por-atahualpa-fernandez-2/; http://emporiododireito.com.br/backup/estudar-para-que-parte-2-por-atahualpa-fernandez-2/

[2]https://www.researchgate.net/profile/Atahualpa_Fernandez2/publication/256443213_CONCURSO_PUBLICO_E_FORTUNA_SOBRE_A_ALEATORIEDADE_DA_VIDA/links/0c9605229b0f45faa2000000/CONCURSO-PUBLICO-E-FORTUNA-SOBRE-A-ALEATORIEDADE-DA-VIDA.pdf?origin=publication_list

[3] Arne Dietrich, How creativity happens in the brain.

[4] O que implica que cada um é responsável de seu cérebro, que podemos (e devemos) cultivá-lo, que gozamos da capacidade de adaptar-nos a novas circunstâncias e de adquirir informação até a etapa final da vida (ainda que essa capacidade diminua com a idade): “Todo hombre puede ser, si se lo propone, escultor de su propio cerebro”, assim reza a famosa cita de Ramón y Cajal. E recordemos que não é isto tudo: a plasticidade do cérebro depende do quanto se usa e em que sentido, com o qual trabalhá-lo não somente é possível, senão também recomendável. Dito de outro modo, as estruturas do cérebro tornam possível o aprendizado e, ao mesmo tempo, o aprendizado modifica continuamente essas estruturas e também seu funcionamento: “Somos una obra en marcha, siempre en movimiento”. (D. Eagleman)

 

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