Antígona e as grandes mentirinhas

22/03/2018

Na famosa peça de Sófocles, Antígona desobedece a um decreto do tirano Creonte,  porque julga haver leis acima daquela que exigem lealdade total. 

Para a jovem, nem todas as leis são justas e, assim, nem todas merecem ser acatadas. 

Antígona é uma  mulher lutando numa sociedade androcêntrica e controlada por homens. Na peça, o coro proclama: "o homem é terrível" mas a jovem também mostra a sua força em nome da lealdade, da dignidade e da liberdade. 

Atualmente, a formação jurídica dos futuros operadores do direito é tal que também encoraja-os a desrespeitar as normas do direito positivo com a mesma coragem e o mesmo empenho da jovem tebana. 

No entanto, certamente não o fazem em louvor a leis divinas (Direito natural) e, portanto, sagradas, que nenhuma ordem humana (Direito positivo)  poderia suplantar . Pelo contrário. 

É com total desprezo ao que a sociedade tem por certo e justo que muitos jovens de hoje fazem questão de demonstrar as imperiosas forças que os governam e os obrigam a uma servidão voluntária aos seus próprios caprichos e interesses. 

Na atual cultura contemporânea, de culto ao indivíduo, ao consumo e ao imediatismo, todo tipo de limite é visto como uma ameaça ao sucesso individual. 

A mulher contemporânea se aproxima de Antígona no que diz respeito a viver numa sociedade ainda controlada por homens sob uma moral ambígua que confere certos papéis aos homens e os nega às mulheres. 

A outro giro, esta mulher atual também se afasta daquele estereótipo oferecido por Sófocles há séculos. 

Enquanto a jovem tebana contesta o poder do tirano porque este lhe parece injusto conquanto legítimo, a mulher típica do século XXI, é defensora das leis do Estado, ao menos daquelas que lhe garantem igualdade perante os homens, mas têm pouco apreço pelos mesmos valores que legitimam direitos alheios. 

Isto se deve ao fato de que os valores hegemônicos na nossa sociedade já não são aqueles selecionados e legitimados na norma positivada em uma ordem jurídica que se quer democrática. 

É justamente porque se tem um modelo de Estado onde os direitos individuais não são exclusivos de um único indivíduo e porque coexistem com os direitos sociais, que se tem também uma relação de amor e ódio com ele. 

Ora espera-se do Estado que reconheça direitos específicos mediante a criação de leis que para serem cumpridas necessita do jus imperii do Estado, ora ataca-se este por obrigar a fazer o que é dever imposto a todos. 

Na série televisiva Big Little Lies, baseada no livro homônimo de Liane Moriarty, encontramos o antítipo de Antígona no que tange a render-se a determinados valores e a assumir as consequências dessa rendição. 

 Celeste (Nicole Kidman) é uma advogada bem-sucedida que abandona a profissão para cuidar dos filhos (leia-se para agradar o marido) os quais convivem num contexto escolar onde o bullying, a violência e outras condutas contrárias à legislação vigente refletem as contradições e ambiguidades de uma pequena cidade aparentemente perfeita onde todos estariam vivendo o sonho americano. 

Celeste não conta nem às suas amigas e nem mesmo à sua terapeuta que deseja separar-se de seu marido violento e inseguro. 

Talvez porque fazê-lo implique mostrar a todos que não vive uma vida perfeita e ideal ou porque não tenha consciência de que deseja realmente ser uma pessoa íntegra e verdadeira antes de tudo consigo mesma, acedendo ao seu desejo depois de assumir a sua parcela de responsabilidade naquilo de que se queixa. Não é o que ocorre. 

Ela não compreende por que o american dream apresenta efeitos colaterais. 

Foi-lhe garantido que se fosse uma mulher com tais e tais características e se comprasse tais e tais produtos, então teria acesso ao reconhecimento do outro sobre a sua pessoa, entretanto não foi o que ocorreu. 

Se promessas midiáticas não se concretizam, é porque num mundo de grandes mentirinhas, há algo da ordem do desejo que não se encontra na ordem do discurso. 

Ainda assim, continua a relação tóxica com seu esposo, mesmo sabendo que a legislação democrática não impõe o que a moral sexual ambígua da sua sociedade lhe ordena. 

Celeste é mais uma mãe de alunos  numa escola  onde as crianças são protagonistas de microiniquidades que o dinheiro não pode evitar. 

A educação pelos valores, pelo respeito ao outro é custosa e demorada. Exige tempo e perseverança. A mídia mostra que é completamente desnecessária uma tal educação quando se pode ter objetos que funcionam como mediadores entre o sujeito e o reconhecimento dele pelo outro. 

Paradoxalmente, é justamente este outro de quem eu preciso para ser quem sou que eu desprezo toda vez que ele não contribui para a minha marcação narcísica, minha identidade, meu lugar no mundo. 

Atualmente, se os jovens se associam uns aos outros não é senão de modo efêmero e enquanto enxergar nisto algum proveito ou vantagem. 

Neste sentido, a formação profissional separada da formação humanística e crítica se presta a fazer dos ambientes escolares e acadêmicos um espaço de treino para intrigas e trapaças a serem devidamente certificadas. 

Trata-se de uma educação que visa produzir subjetividades para um mercado que precisa de consumidores cada vez mais ávidos; esta, sem dúvida, é o contrário da educação voltada à formação do cidadão autônomo, a qual exige gastar tempo com o outro, pensar antes de agir, tolerar as diferenças e suportar perdas e frustrações. 

Para a proliferação deste tipo e caráter concorrem aqueles que, ocupados com a mera transmissão de conteúdos, não cansam de ensiná-los a litigância, a competição e a vitória a qualquer custo, em detrimento da justiça, do diálogo e da busca da solução pacífica dos conflitos inerentes à vida social. 

 Bauman (2004) lembra que as relações sociais são líquidas, porque seguem a ética custo-benefício. Se não se lucra nada com alguém, então se expulsa-o do convívio. A descartabilidade do outro se torna inevitável. 

Por aderirem a essa ideologia perversa, não há nesses jovens nenhum sentimento de fraternidade ou solidariedade e tratam como inimigo a quem lhes oferece a menor resistência.

A falta de compreensão da justificação cultural das agências de socialização e formação intelectual, fragiliza as instituições democráticas e as torna presas fáceis para manipulações ideológicas compromissadas com outros valores que não aqueles que legitimam o esforço educativo.

Ensinar as futuras gerações a viver apenas para suprir interesses pessoais é condená-las a um futuro de guerra de todos contra todos em nome de um pacto social imaginário. 

Lebrun (2008) sustenta que estamos a viver  uma perversão comum, isto é, que vivemos juntos como se não existisse o outro. E explica: "o perverso nega a alteridade do outro e a instrumentaliza, rejeita toda negatividade  e deslegitima a autoridade que o limita". 

Assim, numa sociedade culturalmente marcada por visões fragmentárias e maniqueístas da realidade, o mundo se divide entre fortes e fracos e estes são quase que obrigados ideologicamente a ultrapassar todos os limites impostos pelos mais fortes e "exagerar na dose", sem saberem que a verdadeira liberdade consiste em impor um auto-limite em  respeito à liberdade do outro. 

No último episódio da minissérie, uma série de acontecimentos se entrelaçam para colocar no centro do palco o forte: o marido de Celeste, que é também o estuprador de sua amiga, rodeado por elas, as fracas, as vítimas.

 Celeste já vinha se distanciando do marido ao descobrir que a criança que hostilizava e agredia a pequena Amabella  na escola era o seu próprio filho que, de maneira discreta, aprendia como aluno exemplar, como se deve tratar uma mulher, vendo seu pai agredir a mãe; ou como os fortes devem tratar os fracos, que aprendem a lição sem contestar. 

O seu filho, uma criança cujo comportamento passou despercebido pela mãe, foi o responsável por uma mudança no seu comportamento relativamente ao marido. Portanto, vivemos uma época que exige de nós mais atenção com as coisas pequenas e fracas deste mundo, pois elas têm o poder de vencer e destruir as fortes e descomunais.

 

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zigmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zorge Zahar Editor, 2004.

BIG LITLLE LIES. Disponível em: https://br.hbomax.tv/serie/Big-Little-Lies-Parte-01/501466/TTL609861. Acesso em: 23/02/2018

LEBRUN, J.-P. (2010). A perversão comum: viver juntos sem outro. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 352 páginas.

SÓFOCLES.  Antígona. Trad. Donald Shüler. Porto Alegre: L&PM, 2014.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Antígona // Foto de: Ana Ovando // Sem alterações

Disponível em: https://flic.kr/p/6iCXAC

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura