Antecipando a decisão sobre a autoria: a gravidade do crime como fundamento da prisão preventiva¹

25/02/2018

O “requisito” da ordem pública é o mais utilizado de maneira sorrateira para fundamentar decisões que decretam a prisão preventiva. Pudera, dado o oba-oba semântico que se faz sobre o termo. A regra (ilegítima) não escrita que impera em alguns fóruns do país é que quando se quer prender preventivamente, basta invocar o malogrado requisito da ordem pública que tudo se resolve. Estando presente no artigo 312 do Código de Processo Penal como um dos requisitos que possibilita a decretação da prisão preventiva, justificada está decisão. Amparando-se na lei, o arbítrio se faz possível.

A imprecisão conferida ao termo “ordem pública” impossibilita sua utilização de maneira escorreita. Com Alexandre Morais da Rosa[2], que denuncia a anemia semântica dos requisitos previstos no artigo 312 do Código de Processo Penal, tem-se que “o fundamento da ordem pública é retoricamente manipulável, afinal de contas qual a conduta criminalizada que não alterou a dita “ordem social”?”. E é nesse ponto que entra o vale tudo decisório. O que é, afinal, a ordem pública? Não havendo uma delimitação concreta para a utilização do termo, os significados que surgem são diversos. Demonstrando alguns resultados dessa celeuma, Thiago Minagé[3] pontua: 

a jurisprudência tem emprestado à garantia da ordem pública os mais diversos significados “comoção social”; “periculosidade do réu”, ou mesmo “para preservar sua integridade” (do suposto autor da infração) em caso de possível linchamento; “perversão do crime”; “insensibilidade moral do acusado”; “clamor público”; “repercussão midiática”, ou seja, tudo que não serve como base ou requisito para decretação de prisão preventiva é utilizado como sinônimo de “ordem pública”, a fim de validar e justificar a decreto prisional provisório. 

Os argumentos utilizados pelo julgador ao decidir uma questão que possa resultar na prisão preventiva de alguém devem se ater apenas aos fatores processuais, ou seja, não pode se confundir as questões fáticas que se supõe como ocorridas com aquelas vinculadas ao processo. A segregação cautelar só se faz possível quando atendidos, de fato, os requisitos ensejadores de tal medida extrema, devendo sempre se lembrar de que essa medida é de cunho processual, portanto, devendo ser utilizada somente para atender às eventuais celeumas ligadas ao próprio processo.

Com isso se diz que os deslizes, os erros, os descuidos, os tropeços ocorridos ao lidar com a decisão acerca da prisão preventiva, acabam muitas vezes surgindo justamente por haver a confusão apontada. Assim, apenas o fato de um crime ser “grave”, por exemplo, não pode justificar uma cautelar processual decretada. Leia-se: cautelar processual, logo, exigindo-se um liame com o próprio processo. O crime que se aponta como grave está mais para a imputação realizada do que para a eventual necessidade de segregação cautelar.  Nos dizeres de Lenio Streck e Rafael Tomaz de Oliveira[4], “nenhuma prisão pode ser decretada com base no argumento da gravidade do crime, se a motivação vier desacompanhada de outro fundamento jurídico (art. 312 do CPP)”.

O problema acaba por se tornar ainda maior. Não obstante a falta de cuidado para com as conceituações, especificações, delimitações e explanações sobre os significados dos requisitos para a prisão preventiva, o equívoco se alarga quando sequer é observada a coerência dos argumentos que já são ilegítimos. Ora, muitas vezes a decisão do decreto cautelar prisional já está pautada em terreno lodoso, a saber, fora dos limites permissivos, o que significa dizer que a decisão não está amparada em fatores processuais, mas sim meramente fáticos, quando fatalmente acaba se levando em conta outros motivos para a fundamentação que não jurídicos, e ainda assim não há um zelo para que ao menos em tal viés o mínimo de coerência se faça presente. É sobre tal ponto que se faz a exposição crítica do presente escrito. A gravidade do crime, ou a periculosidade no modus operandi do agente, fundamentações essas que amparam diversas decisões que utilizam a ordem pública como requisito para a decretação da prisão preventiva, atropelam uma garantia fundamental do cidadão: a presunção da inocência.

Poder-se-ia dizer que a prisão cautelar em si, de certo modo, atentaria contra a presunção de inocência. Porém, quando respeitada a excepcionalidade de tal medida e desde que atendidos de maneira concreta os requisitos para tanto, a segregação cautelar se faz perfeitamente possível. A crítica aqui se debruça sobre as violações e o desrespeito ao cumprimento das formalidades necessárias. No caso específico mencionado, a saber, a utilização do argumento “gravidade do crime” ou “periculosidade no modus operandi” para preencher o requisito da ordem pública, desrespeita não somente os limites semânticos que deveriam ser levados em conta numa leitura dos motivos ensejadores da prisão cautelar de acordo com a Constituição, mas também viola a presunção de inocência. Explica-se. No momento em que o julgador fundamenta uma prisão preventiva com base na gravidade do crime, está atestando em definitivo a autoria do delito. A autoria é tida como certa, e assim atestada sem que muitas vezes se dê conta, no momento em que uma decisão determinada a prisão de alguém pelo fato de que esse alguém demonstrou notória periculosidade quando da prática do crime. Percebe-se? A autoria já resta decidida na mesma frase que invoca o fundamento para a segregação cautelar. Dizer que o crime praticado é grave, e por isso o autor desse crime deve permanecer preso durante o curso do processo, é dizer justamente isso: o autor do crime é o fulano que foi detido/indiciado/acusado. A partir de tal tipo de decisão (e têm-se muitas) restaria apenas apurar o quantum da pena que já seria certa ao final do processo? Ora, se a autoria já foi determinada quando se entendeu o crime como grave ou o agente como perigoso em sua conduta criminosa, não estaria nem mais se falando em “indício suficiente de autoria” como prevê o artigo 312 do Código de Processo Penal, mas sim numa autoria certa apta a ensejar uma futura condenação. O problema de utilizar tal tipo de argumento, para além daqueles outros diversos apontados pela doutrina, é que passam a serem observadas apenas questões alheias aos fatores processuais, estes que deveriam unicamente ser levados em conta em tal tipo de decisão. Eis uma das consequências do grande imbróglio que surge no momento em que se deixa de observar a necessidade processual da prisão cautelar, e se passa a decidir com base em questões subjetivas de cunho político, moral, religioso ou econômico. O prejuízo é evidente e quem sofre é o detido e a coerência do sistema jurídico.

A prisão preventiva é medida excepcional, não comportando sua justificação por requisitos abstratos desprovidos de delimitações semânticas. Conforme pontua Aury Lopes Jr.[5], “neste terreno, excepcionalidade, necessidade e proporcionalidade devem caminhas juntas”, ou seja, levando-se em conta os requisitos de fato concretos e permissivos, não há espaço para se antecipar a autoria num decreto prisional cautelar, de modo que devem cair por terra toda e qualquer “fundamentação” de prisão preventiva com base na “gravidade do crime” ou na “periculosidade no modus operandi”.              

 

[1] Texto já publicado anteriormente no portal, mas não mais disponível, pelo que se disponibiliza novamente o seu conteúdo. 

[2] ROSA, Alexandre Morais da. Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogos. 3ªEd. Florianópolis: Empório do Direito, 2016. p. 309

[3] MINAGÉ, Thiago. Prisões e Medidas Cautelares à Luz da Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. p. 109

[4] STRECK, Lenio Luiz. OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. O que é isto – as garantis processuais penais? Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012. p. 75-76

[5] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 9ª Ed. Saraiva: São Paulo, 2012. p. 792

 

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