Anarquismos e abolicionismo. Liberdades e concretudes sem pretensão de respostas pré-prontas com precisão tranquilizadora – Por Guilherme Moreira Pires

16/08/2016

 "Não sei quanto tempo demorará a entender que, em nome do respeito à lei e às verdades científicas, se esconde a certeza de que poucos juristas terão "peito" para propor outra versão do mundo. Como a Cortázar, essa sangria de vida, produzida pela mentalidade legalóide, provoca-me um tremendo desespero. Detesto tudo o que é feito em nome da máxima seriedade, da fé na ciência e das certezas semânticas do Direito." (Warat, Luis Alberto, p. 90, 2004)

Ante a crescente retomada de perspectivas abolicionistas (há muito oxigenadas pelos pensamentos libertários, vale sublinhar), ressurgem críticas potentes  entre criminólogos que até pouco tempo atrás (praticamente) ignoravam isso, tratando apenas como notas de rodapé (muitas vezes literalmente) o que chamariam de histórias dos pensamentos libertários, cujos sopros e reinvenções no presente estariam apagados.

Antes de prosseguir com uma das propostas do texto, a de afastar a crítica da "falta de concretude" (não sendo essa uma das críticas excelentes que emergem)  atribuída aos abolicionistas libertários (libertários, palavra ligada aos anarquistas) [1], vale ressaltar que a criminologia crítica, bem como os anarquistas abolicionistas, em que pesem tantas tensões, muito podem contribuir entre si, como já o fizeram no passado, direta ou indiretamente.

O criminólogo Nils Christie, destaca em A indústria do controle do crime, a importância dos pensamentos do anarquista Ivan lIIich:

"Este livro é dedicado a Ivan lIIich. Seu pensamento está por de trás de muito do que foi formulado aqui, e ele também significa muito para mim, pessoalmente, lIIich não escreve sobre o controle do crime como tal, mas percebeu as origens do que está acontecendo atualmente; os instrumentos que criam a dependência, o conhecimento adquirido pelos especialistas, a vulnerabilidade das pessoas comuns quando são levadas a acreditar que as respostas para seus problemas estão nas cabeças e nas mãos de outras pessoas, que ocorre no campo do controle industrializado do crime é a manifestação extrema de tendências contra as quais Ivan lIIich frequentemente advertiu. Incluo referências a algumas de suas principais obras na bibliografia, apesar de não serem mencionadas diretamente no texto. Apesar disso, elas estão presentes." (CHRISTIE, Nils, p.4-5,1998).

Impossível não recordar mais uma vez de Proudhon, ao destacar: "Existem pessoas, afirma o Sr. De Ficquelmont, que parecem conceber o curso do mundo como um drama dividido em atos. Elas imaginam que durante os entreatos podem se entregar, sem medo de serem perturbadas, a seus prazeres e seus negócios particulares. Elas não enxergam que esses intervalos, durante os quais os acontecimentos parecem interrompidos, são o momento interessante do drama. É durante essa calma aparente que se preparam as causas do ruído que será feito mais tarde. São as ideias que formam a corrente dos tempos. Aqueles que só veem as coisas grandes, que só escutam as detonações, não compreendem nada da história."  (p. 30, 1861)

Escapam-lhes, assim, a percepção de nuances complexas, cuja possibilidade e versatilidade crítica de leitura é permutada, cedendo espaço às extrações de informações típicas de um pensamento encarcerado, que acredita no timing (e sobreposição) das detonações conjecturadas, deixando, sem sequer desconfiar, escaparem da percepção a concretude perdida do presente, substituída pelo timing idealizado das detonações, um timing com estatuto de sonho, superficial e coletivo, agarrado como crença tranquilizadora, um processo mágico, ilusório de promessas bem organizadas, que permite o negligenciar de movimentos, e de momentos importantíssimos.

É curioso que abolicionistas libertários sejam criticados pela "falta de concretude" - a mesma construção desqualificadora voltada a anarquistas  e anarquismos, reduzidos, mapeados como partes de uma infância superada do pensamento crítico) - quando são precisamente esses, no passado e na atualidade, os interessados em pensar nas singularidades e complexidades da vida, destronando autoridades, dissolvendo centralidades, universalidades, replicações de interações fictícias com papeis e fluxos pré-estabelecidos (incompatíveis com a complexidade da realidade), tautologias baratas, representações, categorias, ficções e artificialidades sistêmicas e de coesão autoritária e identitária; energizando o único que sobreposições autoritárias visam absorver, triturar e redimensionar.

E visam fazê-lo em suas próprias linguagens sistêmicas, altamente contaminadas por tudo isso que libertários não incorporam e naturalizam complacentemente como princípio e pressuposto de possibilidade, como imprescindibilidades colonizadoras e brutalmente violentas, a exemplo do sistema penal [2] e suas autoridades, castigos e controles, hierarquias e dores.

(Dores, palavra não por acaso destacada por Christie) [3].

Opõem-se, entre tantas coisas, à "castração da imaginação e os Etapismos de um Amanhã prolongado, eternizado, que nunca vem" [4], não adiando suas movimentações ao condicionamento de uma detonação que virá, como parece, ao se ouvir de alguns coisas estranhas, exemplificativamente, que Hulsman nos ensina a seguir em etapas, aos poucos com o repúdio à linguagem-crime e suas ressonâncias, como se sociabilidades libertárias apenas fossem possíveis após o fim de culturas repressivas. Leituras estranhas, garantidoras de sobrevida dos controles, assim eternizando culturas repressivas.

Negligenciam, assim, que práticas libertárias, bem como uma sociedade sem penas [5], são possíveis mesmo no interior de culturas autoritárias, não sendo necessário aguardar as grandes promessas de detonações para agir [6].

Uma sociedade sem penas já existe nesse momento (lembram criminólogos críticos e pensadores libertários) [7].

O que se aponta, é dizer, o problema, não advém da percepção das detonações, mas do que não é percebido, e que, assim... se esvai, junto com nossas vidas, enquanto as movimentações são condicionadas com fechamentos insensatos.

Uma segunda crítica, a da falta de precisão tranquilizadora dos libertários, nos remete a uma crítica que não merece ser lida como crítica: soa como um grande elogio, eis que aqui não se vende precisão tranquilizadora e nem instituição codificada de sistemas que dela necessitam.

A precisão tranquilizadora desejada por tantos se encontra no plano da utopia, com estatuto de sonho, enquanto que abolicionismo penal e pensamento libertário não equivale a utopias (tranquilizadoras e consoladoras), senão que movimentações reinventadas e energizadas no presente, livres de fluxos pré-estabelecidos (que destroçam concretudes e dissolvem singularidades) e movimentações artificialmente pré-determinadas; movimentações livres de fórmulas e receitas oficialmente incidentes antes mesmo das situações concretas envolvendo sujeitos reais ocorrerem.

Movimentações livres de uma linguagem que nos remete a vários nomes.

Um deles: sistemas.


Notas e Referências:

[1] Na edição 28 da revista verve (p. 158-159), sobre anarquia e sequestro de palavras: "'A anarquia não pode deixar de ser a negação do conjunto do sistema autoritário, e que em período de luta é a prática da desobediência, da insubmissão, da indisciplina, numa palavra, da revolta', afirmou Sébastien Faure no século XIX. O sequestro dessa palavra [revolta], usada por corajosos homens e mulheres que se lançaram aos fogos das lutas e contra a instituição de qualquer polícia, expõe a tolice de alguns e o oportunismo cabotino de outros. Assim como grupos partidários à esquerda e à direita dão continuidade ao roubo da palavra libertário, iniciado pelos neoliberais estudunidenses [...]. Quando uma revolta estoura, ordem e contraordem (elites e dirigentes) unem-se em um generalizado pedido de calma, em um desesperado lamento por ordem."

[2]Sublinhe-se que "uno de los problemas del sistema penal es la descontextualización de las situaciones problemáticas y su reconstrucción en un contexto ajeno a las víctimas, los victimarios y otros individuos. El sistema penal crea individualidades irreales y una interacción ficticia entre ellos y define a las situaciones de problema o conflicto de acuerdo con las reglamentaciones y necesidades organizativas del sistema penal y sus agencias burocráticas. Las partes involucradas en el problema no pueden influir en su resolución o continuación, una vez que se lo define como 'delito' y de él se hacen cargo los 'expertos' del sistema penal. El resultado de ello, además de no satisfacer a ninguna de las partes involucradas en el problema, genera nuevos problemas, como la estigmatización, la marginación social, etcétera. Hulsman proponía, entonces, una más comprensiva visión anascópica, o 'desde abajo', de la vida social, en contra de la visión catascópica, que realiza 'desde arriba' la maquinaria estatal que no se siente parte de los problemas, sino sólo una solución. Se debería intentar comprender la realidad social desde el punto de vista de los individuos y no de acuerdo con las definiciones de la realidad y el marco conceptual burocrático que asume el sistema penal." (ANITUA, Gabriel Ignacio, 2012, p.4).

[3] "Los límites del dolor, de 1981, es una gran obra teórica que fue presentada en un momento muy oportuno, ya que frente a la caída del ideal resocializador aparecían viejas justificaciones que retornaban para justificar el mismo castigo o para plantear castigos alternativos. En este libro, Christie afirmó, en cambio, que la imposición de un castigo, aunque se enmarque dentro de un Estado de derecho y se rodee de todas las garantías legales, no significa sino causar dolor deliberadamente. La asunción por parte de criminólogos y penalistas de todos los adelantos técnicos que en materia de reducir el dolor han realizado diversas disciplinas debería llevarlos a establecer restricciones al castigo y, por tanto, al dolor provocado por el ser humano. Además de insoportable antropológicamente, tampoco imponer dolor es lo mejor [...] se hace sólo cuando los individuos no se conocen. Entre conocidos siempre se busca otra manera de evitar violencias o de solucionar los problemas que pueden producirse. De esta manera, proponía buscar, con imaginación, alternativas al castigo, más que castigos alternativos o justificaciones alternativas al castigo." (ANITUA, Gabriel Ignacio, 2012, p.12). Perceptível nas entrelinhas uma sociedade sem penas já existente. Também vale frisar que nem sempre é possível fazer algo em uma situação-problema, e que algumas não possuem mesmo solução, de modo que não adianta, por mera sensação e angústia de fazer algo, se aplicar o que sabidamente representa sofrimento estéril e inútil, o que não funciona positivamente em situações-problema, isto é, o apego ao sistema penal. Se não se sabe o que fazer em uma complexa situação, não será o apego penal a grande solução e esmeralda do sucesso. O emprego do poder penal como necessário sobre o que não conseguimos resolver de outras formas, como sustentam os minimalistas, é gravíssimo do ponto de vista lógico, e absolutamente refutável quando compreendidas as ressonâncias do sistema penal, fluxos e influxos. Assim, complementa-se que: "No se quedaba Christie, no obstante, en el mero reclamo a la imaginación, sino que mostraba diversos ejemplos de pequeñas sociedades que no reaccionaban frente a los diversos problemas de acuerdo a la lógica punitiva. Para ello hacía una constante reflexión sobre la realidad, y sobre la existencia de conflictos varios en las relaciones entre humanos. Christie decía que más allá de admitir distintas reacciones a las punitivas frente a esos conflictos, no siempre es necesario 'reaccionar'. Habría un problema en suponer que los conflictos siempre se han de resolver. Los conflictos en sí mismos son importantes, y lo que es importante es saber convivir con ellos, no 'negarlos'." (ANITUA, Gabriel Ignacio, 2012, p.12-13).

[4] CORDEIRO, Patrícia; PIRES, Guilherme Moreira.  A castração da imaginação e os Etapismos de um Amanhã prolongado, eternizado, que nunca vem: imaginação capturada e ativadora de novas-velhas capturas. Empório do Direito, 2016. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/a-castracao-da-imaginacao/>. ISSN 2446-7405.

[5] "Una breve pero atenta mirada hacia la sociedad actual nos enseñará que las prácticas abolicionistas suceden a diario. En este sentido, es necesario decir que la sociedad sin penas ya existe: la viven quienes se ven involucrados en una situación-problema y, prescindiendo de la mediación policial o judicial, encuentran soluciones conciliadoras.” (PASSETTI, Edson, 2012, p. 24).

[6] "No final do século XVIII, o libertário William Godwin escreveu o principal libelo antiprisional moderno, identificando as procedências socioeconômicas dos principais habitantes das prisões, assim como o sofisticado circuito de reformas que promove o sistema penal. Para ele, a prisão era inaceitável por explicitar a continuidade entre ricos e pobres, os diferentes, os supostamente perigosos. Não via a prisão como lugar de educativa reflexão crítica do indivíduo diante de um suposto delito juridicamente julgado [...] Desde La Boétie e Godwin, sabe-se da vida de uma sociedade sem soberanos e sem penas, já existente no interior da sociedade autoritária em que vivemos, e à qual a prisão não educou, corrigiu, integrou. O anarquismo e o abolicionismo são práticas adversárias de uma sociedade autoritária, pautada pelo exercício da soberania centralizada e hierarquizada. Investem numa sociabilidade libertária que suprime verticalizações [...]" (PASSETTI, Edson, p. 223-224, 2003).

[7] "Diante de uma situação-problema, uma ou mais respostas-percurso. Resposta que não se fundamenta numa universalidade, numa punição ou absolvição. [...] O percurso, por isso mesmo, permanece desconhecido e singular, recusando a regularidade do acontecimento ou das estatísticas das possíveis respostas-percurso [...]. A singularidade demanda atenção e tempo dos envolvidos, incluindo as autoridades judiciais, que a moderna aplicação da pena não requer por se voltar para a rapidez e eficácia da aplicação, segundo o questionável e indescritível critério de periculosidade [...]. A resposta-percurso para cada singularidade requer tempo para tomada de decisão a partir da conciliação entre as partes e acompanhamento do desenrolar daquilo que foi acordado entre elas. A solução para cada caso é pois única, como única é cada pessoa. A tomada de decisão requer abolição da cabeceira da mesa ou do degrau superior onde se encontra a mais alta autoridade. Ela exige que sejam dissolvidos lugares e patamares, levando a horizontalizar as conversas [...]" (PASSETTI, Edson, p. 31-32, 2012). Considerar também notas anteriores, sobre uma sociedade sem penas já existente no presente, paralela aos sistemas de dejetos sedimentados que pretendemos destronar.

ANITUA, Gabriel Ignacio. Historias de los pensamientos criminológicos. Prólogo de E. Raúl Zaffaroni. 1ª ed. 2ª reimp. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Del Puerto, 2010.

ANITUA, Gabriel Ignacio. Fundamentos para la construcción de una teoría de la no pena. In: POSTAY, Maximiliano (compilador). El abolicionismo penal en América Latina. Imaginación no punitiva y militancia. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2012.

CORDEIRO, Patrícia; PIRES, Guilherme Moreira.  A castração da imaginação e os Etapismos de um Amanhã prolongado, eternizado, que nunca vem: imaginação capturada e ativadora de novas-velhas capturas. Empório do Direito, 2016. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/a-castracao-da-imaginacao/ISSN 2446-7405.

Nu-Sol. Direto na Direita. In: Verve, 28: 154-169, 2015.

PASSETTI, Edson. Anarquismos e sociedade de controle. São Paulo: Cortez, 2003.

PASSETTI, Edson. Ensayo sobre un abolicionismo penal. In: POSTAY, Maximiliano (compilador). El abolicionismo penal en América Latina. Imaginación no punitiva y militancia. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2012.

PROUDHON, Pierre-Joseph. a guerra e a paz (1861).  Verve, 19: 23-71, 2011.

WARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista  pelos  lugares  do  abandono  do sentido  e  da  reconstrução  da  subjetividade.  Florianópolis: Fundação Boietux, 2004.


*Para consultar alguns textos abrangendo anarquismos e abolicionismos, (além de cursos e eventos abolicionistas já ocorridos, com participação ou não do autor), conferir em: <http://emporiododireito.com.br/tag/guilherme-moreira-pires/> - com encontros de várias potências inquietas, que vivem e energizam culturas libertárias, enquanto agitam o presente, dissolvendo mundos gosmificados, ativando complexidades, inventando e potencializando liberdades.


 

Imagem Ilustrativa do Post: Time // Foto de: Pranav Seth // Sem alterações

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