Os crimes sexuais detêm como característica processual a complexidade e dificuldade de julgamento. Tratam-se de crimes que normalmente ocorrem na clandestinidade, sem a possibilidade de haver testemunhas. Em muitos casos, o magistrado depara-se com a inexistência de provas incisivas capazes de demonstrar a efetiva ocorrência de um Estupro, hipótese em que desenvolverá seu convencimento tão somente baseado na palavra do(a) ofendido(a), o que significa um risco à justiça.
O caso Escola Base escandalizou no Brasil no ano 1994, através de suposições de abuso sexual, Estupro e prática de ato libidinoso dentro da escola contra as crianças que a frequentavam, alegações estas que nunca foram comprovadas e levaram a absolvição dos denunciados anos depois.
Entretanto, os transtornos morais, psicológicos, familiares e profissionais trazidos aos envolvidos que carregaram as acusações e a condenação social e midiática, são danos irreparáveis e insanáveis. Não houve condenação judicial, mas a vida dos acusados fora destroçada pela sociedade brasileira e pela mídia que consideraram as acusações como verdade comprovada.
Esse é um dos exemplos, talvez o mais conhecido no Brasil, de casos de falsas acusações de crimes sexuais. Analisando brevemente o caso é possível notar os reflexos trazidos a um acusado por abuso sexual. Casos como esses são comuns na esfera familiar ou conjugal em situações que envolvem divórcio, disputa de guarda, vingança, e normalmente as acusações partem de mulheres contra homens.
De acordo com a pesquisa trazida pela psicóloga Andreia Calçada (2005, p. 7) em seu livro intitulado “Falsas acusações de abuso sexual e a Implantação de falsas memórias”, no Brasil avalia-se que 30% (trinta por cento) das denúncias de Estupro oriundas de divórcios, são falsas. Ainda, na maioria dos casos o pai é o incriminado e a mãe é a acusadora, sendo a criança a vítima que carrega consigo a implantação de memórias falsas.
Nesse ínterim, merece destacar que falsas acusações de crimes sexuais ocorrem não somente com crianças. Mulheres motivadas pelo sentimento de vingança que precisam justificar uma gravidez indesejada ou até mesmo esconder um relacionamento extraconjugal,
imputam ao homem falsa acusação pelo crime de Estupro, já que para tanto sua palavra pode ser elemento suficiente para convencer o juiz. Para esses casos, a criminologia desenvolveu uma síndrome denominada de Síndrome da Mulher de Potifar, retratada no presente trabalho.
O crime de Estupro (art. 213, CP) e Estupro de Vulnerável (art. 217-A, CP) estão enquadrados na Lei de Crimes Hediondos (Lei n. 8.072/1990), logo, possuem todas as limitações processuais trazidas pela referida norma. São crimes cuja repugnância social é muito superior à dos crimes contra a vida, como o homicídio.
Uma acusação por Estupro atrai uma condenação antecipada diante do repúdio social e familiar, sendo extremamente difícil o retorno ao status quo ante da saúde psicológica, moral e até mesmo profissional do indiciado, mesmo que comprovadamente seja absolvido ou a sua condenação seja revertida posteriormente para uma absolvição.
Os crimes sexuais estão presentes dentro da sociedade desde os primórdios, mas acusações por violência sexual cada vez se tornam mais frequentes, mesmo com a existência de uma dura penalização legislativa. Anteriormente à Lei n. 12.015 /2009 que reformou o capítulo do Código Penal que trata dos crimes sexuais, somente o homem poderia ser o agente violentador e a mulher, vítima. Ademais, existia uma separação entre o crime de Estupro e Atentado Violento ao Pudor, sendo que no primeiro delito estava presente somente a conjunção carnal (art. 213, CP), e o segundo traziam todos os demais atos libidinosos (art. 214, CP) cuja finalidade era satisfazer a lascívia.
Com a reforma do Código Penal trazida pela citada lei, uniram-se os crimes de Estupro e Atentado Violento ao Pudor e, consequentemente, ampliaram-se os atos que se enquadram em Estupro, além de permitir que qualquer pessoa possa configurar sujeito ativo ou passivo de tais condutas. A pena continuou a mesma.
Diante da fácil manipulação da prova no tocante aos crimes de Estupro, que em muitos casos pode ser simplesmente a acusação da vítima, o sistema policial e judiciário fica vulnerável às possíveis imputações falsas. Caberá ao magistrado utilizar-se de sua sensibilidade e imparcialidade para se convencer absolutamente de que as alegações trazidas não possuem vícios e são capazes de submeter o acusado a uma sentença condenatória que se mostre justa.
CONCEITO, CLASSIFICAÇÃO E JURISPRUDÊNCIA:
O Estupro inaugura o capítulo denominado de “dos crimes contra a liberdade sexual”. Dissertando sobre o conceito de liberdade sexual, o professor Nucci (2014, p. 1470) conceitua:
É o direito inerente a todo ser humano de dispor do próprio corpo. Cada pessoa tem o direito de escolher seu parceiro sexual, e com ele praticar o ato desejado no momento que reputar adequado, sem qualquer tipo de violência ou grave ameaça. O Código Penal protege o critério de eleição sexual que todos desfrutam na sociedade.
Por liberdade sexual compreende-se que cabe ao seu titular determinar seu comportamento íntimo, sobre como, quando ou quem mantém vínculo sexual. Trata-se da capacidade de autodeterminação do indivíduo, o livre, íntimo e subjetivo poder de escolha do parceiro sexual.
Conjunção Carnal e Ato Libidinoso
A reforma trazida pela Lei n. 12.015/2009 que uniu o crime de Atentado Violento ao Pudor (art. 214, CP) ao crime de Estupro (art. 213 e art. 217-A, CP) ampliou os conceitos deste último, sendo que as condutas extraídas da nova redação podem ter a finalidade de: a) ter conjunção carnal; b) praticar outro ato libidinoso; e/ou c) permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.
A conduta típica prevista no art. 213, CP, se resume no constrangimento mediante violência ou grave ameaça. No ilustre e prático entendimento de Cleber Masson (2014, p. 1473), o ato de constranger “consiste, em suma, no comportamento de retirar de uma pessoa sua liberdade de autodeterminação”. Complementando, nas palavras de Nucci (2014, p. 911) “significa tolher a liberdade, forçar ou coagir”.
O núcleo do crime de Estupro é constranger, do que se nota a semelhança com o crime de Constrangimento Ilegal (art. 146, CP). Entretanto, no caso do Estupro o constrangimento deve ter a finalidade sexual específica, seja a conjunção carnal ou a prática de qualquer ato libidinoso.
Trata-se de crime comum, sendo que tanto o homem quanto a mulher podem atuar como agentes do delito, constrangendo a outra pessoa independentemente do gênero que figure como vítima. Ainda, indagável a existência de dolo na conduta, inexistindo a modalidade culposa, conforme entendimento majoritário da doutrina.
Por violência (vis absoluta ou vis corporalis) entende-se qualquer tipo de emprego de força física, capaz de subjugar a vítima para a manutenção de praticar ato sexual. Já o emprego de grave ameaça (vis compulsiva) consiste na promessa de realização de grande mal à vítima ou a outra pessoa ligada à vítima, capaz de obrigá-la à prática do ato forçadamente. O conceito trazido por Greco (2009, p. 467), apresenta que:
Grave ameaça, ou vis compulsiva, pode ser direta, indireta ou explícita. Assim, por exemplo, poderá ser levada a efeito diretamente contra a própria pessoa da vítima ou pode ser empregada, indiretamente, contra pessoas ou coisas que lhe são próximas, produzindo-lhe efeito psicológico no sentido de passar a temer o agente. Por isso, a ameaça deverá ser séria, causando na vítima um fundado temor do seu cumprimento. [...] Assim, imagine-se a hipótese daquele que, sabendo da infidelidade da vítima para com seu marido, a obriga a com ele também se relacionar sexualmente, sob pena de contar todo o fato ao outro cônjuge, que certamente dele se separar.
O professor Nucci (2014, p. 911) extrai três alternativas para o cometimento do crime de Estupro: “a) constranger alguém a ter conjunção carnal; b) constranger alguém a praticar outro ato libidinoso; c) constranger alguém a permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.”, sendo que a prática de uma, duas ou das três condutas com a mesma vítima, geram um único delito.
A conjunção carnal, em termos práticos, significa a introdução do pênis na vagina. Trata-se da “cópula secundum naturam, o ajuntamento do órgão genital do homem com o da mulher, a intromissão do pênis na cavidade vaginal” (GRECO, p. 466, 2009). Ainda, João Mestieri (1982, p. 59) prescreve que:
[...] restritivo é o critério pelo qual apenas se admite como conjunção carnal a cópula secundum naturam; amplo, o compreensivo da cópula normal e da anal; e amplíssimo o que engloba o ato sexual e qualquer equivalente do mesmo; assim, a cópula vaginal, a anal e a fellatio in ore [...].
Qualquer outro ato praticado não correspondente à introdução do órgão masculino à vulva da mulher, desde que presentes a violência ou grave ameaça, será considerado ato libidinoso, caracterizando também no crime de Estupro. De acordo com Nucci (2014, p. 918) ato libidinoso é o “ato voluptuoso, lascivo, que tem por finalidade satisfazer o prazer sexual, tais como o sexo oral ou anal, o toque em partes íntimas, a masturbação, o beijo lascivo, a introdução na vagina dos dedos ou de outros objetos, dentre outros”.
Quando se fala na prática de ato libidinoso há um amplo e vago conceito de situações que atraem a incidência das penas aplicáveis ao crime de Estupro, cuja penalidade mínima é de 06 (seis) anos de reclusão. Nessa toada, o professor Nucci (2014, p. 918) disserta o exemplo do beijo lascivo, em que há longos beijos voluptuosos, na boca, em que se inserem a língua com intensa descarga de libido. Esse ato libidinoso, vislumbrando a abrangência da norma, é considerado Estupro.
Portanto, quando se trata de conjunção carnal, a consumação é resultante da introdução do pênis à vagina mesmo que incompleta ou sem que haja a ejaculação ou a satisfação da lascívia do agente. Quanto aos atos libidinosos, a consumação ocorre com um simples toque físico cuja finalidade é atender o desejo sexual do agente, que resulte em constrangimento à vítima. Nota-se que o crime é material, capaz de transferir à vítima vestígios que comprovem as condutas.
Refere-se a um crime cuja ação penal é Pública Condicionada à Representação quando a vítima for maior de 18 (dezoito) anos. Se menor, a ação penal é Pública Incondicionada. Em ambos os casos, o prazo para oferecimento da denúncia é decadencial, de 06 (seis) meses, conforme art. 38, CPP e art. 103, CP.
Discorrendo ainda sobre a literalidade do texto em voga, apresenta-se as qualificadoras do Estupro, presentes quando resultar em lesão corporal de natureza grave, se a vítima for menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze) anos ou se houver resultado morte.
Diante da amplitude das ações que levam ao crime de Estupro, não importa se houve ou não ejaculação por parte do homem ou se o hímen da mulher se rompeu (mulher virgem). Ao Código Penal cabe a interpretação literal do texto da norma, portanto, praticada alguma conduta considerada ato libidinoso, aplicar-se-á ao sujeito, as penas cominadas nos artigos 213 ou 217-A, a depender da situação da vítima.
Vulnerabilidade – Art. 217-A, CP.
O objeto típico nesse caso é “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (quatorze) anos”. Diante dos conceitos já trazidos anteriormente, dispensa-se nova narrativa sobre as condutas ora tipificadas. Nota-se que, neste crime, é dispensável a existência de violência ou da grave ameaça, pois está-se diante de um crime cuja violência é presumida, considerando que as vítimas somente poderão ser os chamados “vulneráveis”.
No tocante aos crimes sexuais contra vulneráveis, o conceito doutrinário é que a vulnerabilidade subsiste da inexistência do completo desenvolvimento físico da vítima ou da impossibilidade de discernimento e consentimento decorrente de enfermidade mental ou ausência do poder de resistência da vítima.
O art. 217-A extinguiu a presunção de violência pregada pelo art. 224 do Código Penal, trazendo o conceito de estado de vulnerabilidade, conforme citado no parágrafo anterior. São vulneráveis sexualmente os menores de 14 (quatorze) anos, aqueles que não possuem o necessário discernimento para a prática do ato sexual por enfermidade ou deficiência mental ou ainda as pessoas que não possuem a capacidade de oferecer resistência por qualquer outra causa. Nessas condições, é inviável legalmente a manutenção da prática sexual com as essas pessoas (NUCCI, 2014, p. 937).
Ainda discorrendo sobre a vulnerabilidade, o professor Nucci (2014, p. 938) apresenta sua crítica quanto se trata de menor de quatorze anos, apontando a ideia de uma necessária relativização da existência de consentimento do ofendido. Veja-se:
Partimos do seguinte ponto básico: o legislador, na área penal, continua retrógrado e incapaz de acompanhar as mudanças de comportamento reais na sociedade brasileira, inclusive no campo da definição de criança ou adolescente. Perdemos uma oportunidade ímpar para equiparar os conceitos com o Estatuto da Criança e do Adolescente, ou seja, criança é a pessoa menor de 12 anos; adolescente, quem é maior de 12 anos. Logo, a idade de 14 anos deveria ser eliminada desse cenário. A tutela do direito penal, no campo dos crimes sexuais, deve ser absoluta, quando se tratar de criança (menor de 12 anos), mas relativa ao cuidar do adolescente (maior de 12 anos). É o que demanda a lógica do sistema legislativo, se analisado em conjunto. Desse modo, continuamos a sustentar ser viável debater a capacidade de consentimento de quem possua 12 ou 13 anos, no contexto do Estupro de Vulnerável.
Quanto a classificação doutrinária, o crime de Estupro de Vulnerável (art. 217-A) é idêntico ao crime de Estupro (art. 213) sendo, portanto, tipo penal comum, doloso, comissivo e material, ressalvada a ação penal, que é Pública Incondicionada, somente, nos termos do art. 225, § único, CP.
O entendimento majoritário das cortes superiores - Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF) – no que diz respeito à vulnerabilidade da ofendida, é pela impossibilidade de relativização quanto ao consentimento da(o) ofendida(o) menor de quatorze anos para a prática de relação sexual ou ato libidinoso.
Portanto, não importa se há ou não o consentimento à prática delituosa contra vítima menor de quatorze anos, considerada vulnerável, tampouco o conhecimento, experiências e a vida pregressa da(o) ofendida(o) quanto aos atos sexuais. Abaixo, em demanda repetitiva, decidiu o STJ:
RECURSO ESPECIAL. PROCESSAMENTO SOB O RITO DO ART. 543-C DO CPC. RECURSO REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. VÍTIMA MENOR DE 14 ANOS. FATO POSTERIOR À VIGÊNCIA DA LEI 12.015/09. CONSENTIMENTO DA VÍTIMA. IRRELEVÂNCIA. ADEQUAÇÃO SOCIAL. REJEIÇÃO. PROTEÇÃO LEGAL E CONSTITUCIONAL DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. 1. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça assentou o entendimento de que, sob a normativa anterior à Lei nº 12.015/09, era absoluta a presunção de violência no Estupro e no Atentado Violento ao Pudor (referida na antiga redação do art. 224, "a", do CPB), quando a vítima não fosse maior de 14 anos de idade, ainda que esta anuísse voluntariamente ao ato sexual (EREsp 762.044/SP, Rel. Min. Nilson Naves, Rel. para o acórdão Ministro Felix Fischer, 3ª Seção, DJe 14/4/2010). [...] 7. A modernidade, a evolução moral dos costumes sociais e o acesso à informação não podem ser vistos como fatores que se contrapõem à natural tendência civilizatória de proteger certos segmentos da população física, biológica, social ou psiquicamente fragilizados. [...] Para a caracterização do crime de Estupro de Vulnerável previsto no art. 217-A, caput, do Código Penal, basta que o agente tenha conjunção carnal ou pratique qualquer ato libidinoso com pessoa menor de 14 anos. O consentimento da vítima, sua eventual experiência sexual anterior ou a existência de relacionamento amoroso entre o agente e a vítima não afastam a ocorrência do crime. (Superior Tribunal de Justiça. Em Recurso Especial Repetitivo REsp. 1480881/PI, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, Terceira Seção, julgado em 6/08/2015, DJe 10/09/2015).
Firmou-se ainda, o entendimento sumulado do Superior Tribunal de Justiça que diz:
O crime de Estupro de Vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente (Súmula 593, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 25/10/2017, DJe 06/11/2017).
Não obstante, o Supremo Tribunal Federal vem defendendo o mesmo entendimento conforme informativo número 569 (de 23 a 27 de novembro de 2009) da corte (in verbis):
Atentado Violento ao Pudor e Presunção de Violência
O eventual consentimento da ofendida — menor de 14 anos — e mesmo sua experiência anterior não elidem a presunção de violência para a caracterização do delito de Atentado Violento ao Pudor. Com base nesse entendimento, a Turma indeferiu habeas corpus em que condenado pela prática do crime de Atentado Violento ao Pudor alegava que o fato de a ofendida já ter mantido relações anteriores e haver consentido com a prática dos atos imputados ao paciente impediria a configuração do mencionado crime, dado que a presunção de violência prevista na alínea a do art. 224 do CP seria relativa. Inicialmente, enfatizou-se que a Lei 12.015/2009, dentre outras alterações, criou o delito de Estupro de Vulnerável, que se caracteriza pela prática de qualquer ato libidinoso com menor de 14 anos ou com pessoa que, por enfermidade ou deficiência mental, não tenha o necessário discernimento ou não possa oferecer resistência. Frisou-se que o novel diploma também revogara o art. 224 do CP, que cuidava das hipóteses de violência presumida, as quais passaram a constituir elementos do Estupro de Vulnerável, com pena mais severa, abandonando-se, desse modo, o sistema da presunção, sendo inserido tipo penal específico para tais situações. (Acórdão em HC 99993/SP, rel. Min. Joaquim Barbosa, 24.11.2009).
Brevemente, ainda há de se falar no tocante a esse crime (Estupro de Vulnerável), das hipóteses de erro de tipo e erro de proibição, possíveis de levar à absolvição do acusado, perfeitamente exemplificado por Nucci (2014, p. 942):
No contexto do erro de tipo, torna-se possível que o agente imagine ter relação sexual com alguém maior de 14 anos, embora seja pessoa com 12 ou 13 anos, mas de compleição avantajada. Se o engano for razoável, impõe-se o reconhecimento do erro de tipo escusável (art. 20, caput, CP). Por outro lado, torna-se viável que o agente, pessoa simples, sem cultura, jamais imagine ser vedada a relação sexual com doente mental. Mantido o relacionamento sexual, é preciso verificar se houve erro de proibição escusável. Assim constatado, o caminho é a absolvição (art. 21, caput, CP).
O erro de tipo ocorre quando o agente possui uma visão distorcida da realidade (acredita que o parceiro sexual seja maior de quatorze anos), enquanto que no erro de proibição há um perfeito juízo sobre tudo o que está se passando, mas há uma errônea apreciação sobre a antijuridicidade. No primeiro caso é possível o enquadramento do crime como culposo (art. 20, CP), enquanto que no segundo existe a possibilidade de absolvição (art. 21, CP).
PROCESSO PROBATÓRIO - CRIMES SEXUAIS
Conceitua-se prova como o conjunto de elementos produzidos pelas partes, por terceiros ou determinadas pelo magistrado na faculdade trazida pelo art. 156 do CPP, durante a fase de instrução processual, cuja finalidade é a formação da verdade quanto aos fatos e circunstâncias para a composição do convencimento do julgador.
Diferencia-se, portanto, do conceito de elemento de informação, o qual é formado nos autos de inquérito policial, sem instituir o contraditório e ampla defesa, e que em análise isolada não pode fundamentar uma condenação criminal, nos termos do art. 155 do CP. As provas são introduzidas no processo judicial e constituem-se em alicerces para a decisão fundamentada que solucionará o mérito.
Nesse sentido, Mirabete (2003. p. 1550) define que “provar é produzir um estado de certeza, na consciência e mente do juiz, para sua convicção, a respeito da existência ou inexistência de um fato, ou da verdade ou falsidade de uma afirmação sobre uma situação de fato [...].”
Imperioso salutar neste momento, breve análise sobre os indícios de crime, perfeitamente conceituado no art. 239 CPP: “considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias”. De acordo com Nucci (2009, p. 522), “nem tudo se prova diretamente, pois há crimes camuflados – a grande maioria – que exigem a captação de indícios para a busca da verdade real”.
No que se refere à busca pela verdade real pelo magistrado, o professor Norberto Avena (2017, p. 44) disserta que:
[...] devem ser realizadas as diligências necessárias e adotadas todas as providências cabíveis para tentar descobrir como os fatos realmente se passaram, de forma que o jus puniendi seja exercido com efetividade em relação àquele que praticou ou concorreu para a infração penal. Não se ignora, diante das regras legais e constitucionais que informam o processo penal brasileiro, que a verdade absoluta sobre o fato e suas circunstâncias dificilmente será alcançada. Muitos referem, inclusive, ser ela inatingível. Assim, a afirmação de que a verdade real é a meta do processo criminal significa dizer que o juiz deve impulsioná-lo com o objetivo de aproximar-se ao máximo da verdade plena, apurando os fatos até onde for possível elucidá-los, para que, ao final, possa proferir sentença que se sustente em elementos concretos, e não em ficções ou presunções.
No processo instrutório penal procura-se a reconstrução dos fatos a fim de elucidar e materializar o crime. O onus probandi para caracterizar a conduta típica, autoria e materialidade é da acusação, seja o Ministério Público quando se tratar de ação penal pública, ou a parte ofendida quando se tratar de crimes que ensejam o impulso processual mediante queixa (ação penal privada).
A persecução penal sempre observará os princípios do contraditório e ampla defesa, da vedação à autoincriminação, da publicidade, da inadmissibilidade de provas ilícitas, da oralidade, da verdade real, e sobretudo, o in dubio pro reo, dentre outros garantidores da ordem processual.
Especialmente nos crimes contra a dignidade sexual, abordados pela presente pesquisa, há uma exceção ao princípio da publicidade, para os quais prevalecem a determinação de segredo de justiça (art. 234-B, CP). Já o princípio da oralidade possui extrema relevância nos casos de crimes sexuais diante da importância da palavra da ofendida e da oitiva de testemunhas, o que em muitos casos são fontes únicas de prova para a condenação ou absolvição, considerando que os vestígios capazes de materializar o delito muitas vezes são inexistentes.
Sistema do Livre Convencimento Motivado
No que concerne à valoração das provas trazidas na persecução penal, prevalece no ordenamento jurídico brasileiro o sistema do livre convencimento motivado do juiz sustentado nas provas produzidas sob a égide do contraditório judicial, não sendo possível decisão fundamentada somente em elementos informativos colhidos durante a investigação (art. 155, caput, do CPP).
Esse sistema não atribui limitação ao magistrado quanto aos meios de provas adotados por este, desde que sejam lícitos e observem o contraditório e a ampla defesa. Também, não outorga hierarquia de valor probatório para as prenunciações trazidas a juízo pelas partes envolvidas, sendo que todas as evidências possuem o mesmo peso probante.
A avaliação das provas trazidas em juízo é ato exclusivo do magistrado, o qual ponderará todos os elementos trazidos pelos litigantes, podendo chegar a uma conclusão sobre a consideração de culpa do acusado. Em contrapartida a liberalidade do togado, este fica obrigado a fundamentar sua sentença com a indicação dos motivos de fato e de direito em que se fundar sua decisão (art. 381, III, CPP).
Quando se tratam de análises relativas aos crimes sexuais, especialmente de crianças e adolescentes, é importante que o magistrado possua sensibilidade suficiente a fim de constatar a veracidade extraída das alegações da ofendida, desde que apresentem coerência, imparcialidade, credibilidade e verossimilhança nas alegações.
Os instrumentos de prova à disposição das partes no processo penal estão elencados no Código de Processo Penal, Título VII, e em legislação especial esparsa. A seguir destacaram-se resumidamente os principais meios de provas possíveis de instruir os crimes relativos à liberdade e dignidade sexual.
Exame de Corpo de Delito
A prova pericial (exame de corpo de delito) é o primeiro meio prova arrolado pelo código de processo penal cuja finalidade é solidificar o resultado do crime cometido, de forma a registrar o vestígio encontrado.
Sempre que a infração penal deixar vestígios, haverá a necessidade do exame de corpo de delito, sendo que eventual confissão não dispensa a produção desta prova (art. 158, CPP). Ainda, se não for possível a realização de perícia técnica para aferir a materialidade delitiva, a prova testemunhal poderá suprir-lhe à falta (art. 167, CPP).
Interrogatório do Acusado e a Confissão
O interrogatório do acusado é realizado após a oitiva do ofendido e das testemunhas mediante o acompanhamento de seu procurador, podendo desfrutar do direito ao silêncio quando questionado sobre o delito e a conduta delitiva que enseja sua acusação. O silêncio não será considerado confissão do crime, apesar de poder fundamentar a decisão do magistrado (art. 186 e 198, CPP).
A confissão agregada aos demais elementos de prova trazidos durante do contraditório processual, constitui importante meio de prova. Importante destacar que o próprio art. 197, CPP, atribui ao julgador a responsabilidade de confrontar a confissão com as outras provas, a fim de constatar compatibilidade com a conduta delitiva, a materialidade e a culpabilidade. Ademais, a confissão anteriormente fornecida poderá ser retratada no decorrer do processo.
Depoimento Testemunhal e as Declarações do Ofendido
O depoimento testemunhal é colhido de pessoas indicadas pela acusação, pela defesa ou ainda pelo magistrado quando, no decorrer do processo, identificar a necessidade de ouvir a pessoa citada no decorrer da instrução processual. Será sempre realizado sob a promessa de dizer a verdade. Nos crimes sexuais, constitui meio de prova escasso, diante da clandestinidade que permeia nesses casos.
Já o ofendido não presta compromisso de dizer a verdade. Contudo, o magistrado faz a advertência de que é importante relatar os fatos da maneira mais fidedigna possível a fim de melhor esclarecer os fatos, sobretudo porque diante da ausência de prova testemunhal, acaba por ser a única fonte de prova.
Comprovação do Crime de Estupro
A comprovação de crimes sexuais pode ocorrer por meio de laudo pericial ou pelas declarações da vítima, podendo essa última ser analisada isoladamente quando apresentar convicção ao magistrado. Há do exame pericial direto, quando realizado diretamente no vestígio deixado pelo crime, ou indireto, realizado com base em informações verossímeis conquistadas pelos peritos. Nesse sentido, Norberto Avena (2017, p. 360) exemplifica:
Imagine-se um delito de Estupro, sendo submetida a vítima à perícia de conjunção carnal ocorrida um mês antes. Não mais sendo constatado o vestígio em face do tempo decorrido, poderão os experts elaborar laudo indireto, a partir, por exemplo, de atestado do médico particular da vítima que a tenha examinado logo após a ocorrência.
No caso de conjunção carnal, se a vítima não for virgem ou não houver marcas que evidenciem a relação sexual, por certo não haverá vestígios médicos da prática de Estupro. Na incapacidade de comprovação da materialidade do crime por meio de exame de corpo de delito, a prova testemunhal supre a ausência de prova pericial (arts. 158 e 167, CPP).
No caso de ato libidinoso, as condutas quase invariavelmente não deixam marcas físicas, de modo que a prova pericial é suprida por outros meios probatórios. Nesse sentido, Mirabete (2003, p. 1550) afirma que “o Atentado Violento ao Pudor não é crime que necessariamente deixa vestígios, podendo ser comprovado por qualquer elemento probatório, com relevância para a palavra da vítima, prescindindo-se do exame pericial”.
No mesmo sentido é o entendimento pacífico da jurisprudência: “O laudo de exame de corpo de delito na vítima do crime de Atentado Violento ao Pudor, que atesta a ausência de vestígios, não tem o condão de, por si só, estabelecer que não existem provas da materialidade do crime” (STJ, Acórdão em HC 135.972/SP, 5.ª Turma, Rel. Min. Felix Fischer, DJe de 07/12/2009. Relator: Ministra Laurita Vaz, Data de Julgamento: 26/10/2010).
De outro lado, os crimes contra a dignidade sexual normalmente são cometidos de forma clandestina. Assim, as declarações do ofendido constituem importante instrumento de prova, principalmente e especialmente nos crimes contra a dignidade sexual trazidos por este artigo. Mesmo ausentes todos os demais meios de provas lícitos possíveis (exame pericial negativo ou inconclusivo, confissão, depoimentos testemunhais, ou provas documentais), supervalorizam-se as declarações da vítima, as quais podem constituir fundamento único de uma condenação.
Nesse sentido, Norberto Avena (2017, p. 391) reconhece que mesmo que a palavra da vítima deva ser confrontada com os demais elementos de provas produzidos no processo, “não se pode deixar de reconhecer que, em alguns casos, possui alto valor, como nas hipóteses de crimes contra a dignidade sexual, os quais, cometidos na clandestinidade, não apresentam testemunhas”.
Consequentemente pode haver uma condenação cujo único fundamento seja a palavra do ofendido. Ao magistrado cabe analisar os fatores intrínsecos, subjetivos e psicológicos para validar sua decisão. Devem estar presentes a verossimilhança das alegações, a coerência fática, a imparcialidade da vítima, o revestimento familiar da vítima e suas relações com o acusado, a vida pregressa do acusado e do ofendido, dentre muitas outras situações e atitudes que o magistrado deverá compreender ao julgar um caso de Estupro.
Tratam-se de crimes de extrema complexidade de julgamento, passível de erros ou falhas na condenação, pois nesses casos o magistrado encontra-se pautado tão somente à sua subjetividade e sensibilidade. Norberto Avena (2017, p. 392) completa o raciocínio:
[...] ainda que se trate de hipótese que não haja nenhuma outra prova direta, deverá o magistrado, para o bem de valorá-la, socorrer-se, no mínimo, da prova circunstancial (ausência de álibi convincente, presença de antecedentes judiciais pela prática de crime semelhante ao imputado, contradições entre as versões do réu prestadas na polícia e em juízo, coerência da versão da vítima sempre que ouvida etc.).
Observa-se, portanto, que a prática jurisdicional diante de crimes sexuais é carregada de subjetividade em grande parte dos casos, já que subsistem escassos meios probatórios, prevalecendo soberanamente as alegações do ofendido e a sensibilidade do magistrado a fim de construir sua convicção.
REPULSA SOCIAL E CONSEQUÊNCIAS AO ACUSADO
Para ilustrar a aversão social aos crimes relativos à violação da dignidade sexual, sugere-se uma análise, aqui resumida, ao Caso Escola Base. Trata-se de uma escola particular de educação infantil de São Paulo/SP, inaugurada em 1992, hoje não mais existente no local.
Em 1994, através do enorme sensacionalismo trazido pelas grandes mídias, uma acusação de Estupro, prática de atos libidinosos e pedofilia supostamente realizadas pelos proprietários da escola às crianças que estavam sob os seus cuidados, ocasionaram enorme alvoroço social.
O caso foi retratado minuciosamente por Alex Ribeiro, em seu livro intitulado de “Caso Escola Base: os abusos da imprensa”. Em síntese, a trama se inicia quando duas mães de crianças que faziam parte da escola base se dirigem à delegacia de polícia da cidade e prestam queixa contra os proprietários da escola, alegando que os filhos relataram algumas situações de abuso e pedofilia.
Os argumentos narrados por essas duas mães para instaurar o inquérito policial se deram em momentos em que somente mãe e filho estavam juntos, sendo que as histórias contadas pelas crianças foram insuficientes para constatar que eventual prática sexual ou abuso tenha ocorrido na escola. Em laudo médico realizado pelo IML, nenhum vestígio de violência sexual fora encontrado e, igualmente, nos mandados de busca e apreensão, nenhum indício ou vestígio que pudesse incriminar a escola fora identificado.
Insatisfeitas com os resultados da investigação, as mães acionaram uma rede jornalística para divulgar o caso, o que iniciou um escândalo social em âmbito nacional. Mesmo com a completa ausência de prova concreta sobre as acusações de práticas de Estupro e ato libidinoso, a vida dos proprietários da escola fora destroçada diante das falsas acusações e pré-julgamento social. As acusações arguidas foram tratadas pela autoridade policial e pela imprensa como verdade comprovada, ainda que inexistente qualquer prova real.
A sociedade alvoroçada pela denúncia daquelas mães depredaram o estabelecimento físico da escola, massacraram a vida dos denunciados. Os indiciados precisaram se esconder ou se disfarçar para fugir de um possível linchamento popular e ao longo do tempo desenvolveram transtornos depressivos, síndrome do pânico e demais problemas de saúde física e psicológica e, ainda, jamais puderam retornar à profissão de educador ou recuperar a dignidade pessoal, social, profissional e psicológica. Sem elementos suficientes para embasar uma ação penal, o inquérito policial foi arquivado meses depois do escândalo social.
Deixando em segundo plano a crítica que é feita à mídia nesse caso, é possível se extrair ainda que existem sim inúmeras imputações falsas de crimes, principalmente no que se refere aos crimes sexuais, os quais dificilmente deixam vestígios e a prova de eventual condenação poderá ser tão somente a palavra do ofendido.
Ademais, o ódio e o repúdio social existente diante dos crimes sexuais é algo surpreendente. Os acusados por crimes relacionados à violação sexual possuem desprezo popular muito superior a outros crimes dolosos contra a vida, como exemplo o homicídio ou latrocínio.
Essa repulsa social é patente também entre a população carcerária. Os acusados por crime de Estupro, ainda que não haja condenação, detém uma proteção especial quando ingressam num presídio: possuem cela em apartado e o contato com os demais presos por “crimes comuns” é evitado. Isso tudo porque não raros são os casos de violência sexual, tortura e linchamento dentro dos presídios brasileiros contra aqueles acusados/condenados por Estupro.
Diversos são os casos que já foram expostos na mídia em que inocentes condenados ou indiciados por crimes sexuais são presos, torturados e até mesmo assassinados pela população carcerária ou pela sociedade enfurecida.
Há de se destacar também as profundas consequências psicológicas, profissionais e morais que se prendem ao acusado pelo cometimento do crime de Estupro, que passam a sentir-se impotente, inseguro e exasperado, podendo ainda apresentar doenças impulsivas e agressivas decorrente da desordem emocional.
A psicóloga Andreia Calçada afirma que, “socialmente, o indivíduo perde a confiança social, passa a ser visto como aberração [...]. Perde amizades, passa por constrangimentos em todos os ambientes; perde a privacidade e fica exposto a insultos, injúrias, o que leva a fechar-se e retrair-se socialmente” (CALÇADA, 2005, p. 62-64).
Dessa forma, sendo os crimes sexuais inundados de uma complexidade de instrumentalização de provas contra o acusado e diante das inúmeras possibilidades que podem ensejar uma falsa acusação de Estupro, que mesmo antes de um julgamento condenatório ou não já impõem ao acusado uma série de constrangimentos sociais, familiares e psicológicos, é de extrema importância alavancar a necessidade de retirar a supremacia e a idolatria existente nas declarações do ofendido de forma isolada.
O magistrado deve convencer-se absolutamente da culpabilidade do acusado somente com base nas informações colhidas através da palavra da vítima, quando este for o caso, e mesmo assim estará sujeito a aplicar uma condenação errônea, já que existem diversos casos em que ocorrem uma reversão da sentença. A legislação é master quando diz: na dúvida, absolve-se o réu.
FALSAS COMUNICAÇÕES DE ESTUPRO
Não se obsta ao rico entendimento do legislador em unir os delitos de Estupro e Atentado Violento ao Pudor, bem como a tipificação mais gravosa relacionada ao Estupro de Vulneravel através da Lei 12.015/2009.
Entretanto, é importante indagar a vasta possibilidade de haver (e há) falsas comunicações relativas ao crime de Estupro, especialmente quando condutas elencadas no conceito de ato libidinoso, cuja gravidade pode ser muito inferior à violação física ocasionada pela conjunção carnal, possuem o mesmo tratamento penal e processual penal.
O prazo decadencial de seis meses para a comunicação do crime prejudica o exame pericial, tendo em vista que o lapso temporal pode resultar em inexistência de vestígios passíveis de serem materializados e, ainda, a rara possibilidade de existir testemunhas do crime, ostenta a suposta vítima uma supervalorização de suas alegações.
Não escassas são as comunicações de falso Estupro, fundadas na rejeição, desejo de vingança ou outras motivações diversas. Ex-mulheres com a pretensão de se vingar do ex-marido; mães que desejam prejudicar o homem induzem os filhos a acreditarem que tenham sidos violentados pelo pai[1]; jovens que mantêm ato sexual escondido dos pais e que para manter a mocidade imputam o crime de Estupro ao homem; a tentativa de esconder um relacionamento extraconjugal[2] ou uma gravidez indesejada, etc.
O Estupro geralmente é um crime praticado na “clandestinidade”, ou seja, de forma oculta ou sem que haja testemunhas. Nas hipóteses em que não há materialidade constituída pelo exame pericial ou mesmo que esse exame aponte a inexistência de quaisquer indícios ou resquícios de violência sexual, há o confronto entre a palavra da suposta vítima e as alegações de defesa do réu.
Em se tratando de casos como este, não incomum no poder judiciário brasileiro, incumbe ao magistrado comprovar a verossimilhança das alegações da vítima, se contrapondo a todas as demais provas de inexistência do crime, podendo levar a condenação do acusado mesmo que fundamentada exclusivamente no poder probatório da palavra da vítima, como bem permite o Código de Processo Penal.
Uma teoria trazida pela criminologia, retirada de uma passagem bíblica a qual se fará referência mais adiante, traz em voga a Síndrome da Mulher de Potifar para o âmbito processual penal. Essa hipótese ocorre quando a mulher imputa ao homem, falsamente, o crime de Estupro, a fim de vingar-se, proteger-se e/ou prejudicá-lo.
Tratando-se os crimes sexuais, sendo os delitos mais difíceis de se constituir provas robustas, é bem comum o magistrado deparar-se com situações extremas em que, de um lado, figuram as alegações da vítima (declarações do ofendido), e de outro lado estão as razões de defesas do acusado negando a prática do delito.
A palavra da vítima possui especial destaque como elemento probatório, sendo que não é incomum os casos em que esse é o único meio de prova da ocorrência do delito. Ademais, inúmeras decisões jurisprudenciais reiteram essa prática e não coíbem a condenação fundamentada exclusivamente na palavra da ofendida.
É nesse ponto que surge a teoria da Síndrome da Mulher de Potifar, derivada dos ensinamentos bíblicos no livro de Gênesis 39:1-23. A história relata parte da trajetória de José, que era repulsado por seus irmãos, os quais, em certa oportunidade, venderam José aos ismaelitas que posteriormente o comercializaram à Potifar, um homem egípcio chefe da guarda do Faraó.
Conforme contextualização trazida por Rogério Greco (p. 842, 2009), “José era um homem temente a Deus e logo ganhou a confiança de Potifar, passando a ser administrador de sua casa, tomando conta de tudo o que lhe pertencia. Entretanto, a mulher de Potifar, sentindo forte atração por José, quis com ele ter relações sexuais, mais foi rejeitada.”.
A mulher de Potifar, motivada pela rejeição amorosa e sexual, imputou a José, falsamente, o crime de Estupro, afirmando que fora violentada ou abusada por ele a fim de prejudicá-lo diante ao faraó e aos demais membros da sociedade que ali existia.
Essa teoria desenvolvida pela criminologia aplica-se atualmente nas hipóteses de ausência de provas que confirmem o abuso ou a violência sexual, buscando avaliar a imparcialidade, a veracidade, a convicção, a credibilidade, a seriedade, a validade da palavra da vítima no direito processual penal, quando em conflito com a palavra do acusado.
Em sua crítica à Síndrome da Mulher de Potifar, Rogério Greco (2009, p. 483) afirmou que “em muitas situações, a suposta vítima é quem deveria estar ocupando o banco dos réus, e não o agente acusado de Estupro”. Em continuidade, Greco ressalta que cabe ao julgador possuir a sensibilidade necessária para apurar a veracidade dos fatos alegados pela suposta vítima.
Há casos em que a materialidade delitiva do crime de Estupro inexiste perante o exame pericial. Ainda, algumas condutas menos gravosas no tocante a dignidade sexual da vítima, como por exemplo o beijo lascivo, o toque, etc., não exteriorizam marcas capazes de comprovar o delito, mas se enquadram ao tipo penal e possuem a pena mínima de 6 (seis) anos.
É nesse sentido que a justiça penal oferece margem para a propagação de falsas acusações pelo crime de Estupro. São diversas condutas que se enquadram no delito. Ademais, com o advento da Lei n. 12.015/2009 que uniu as condutas de Estupro e Atentado Violento ao Pudor, situações em que figuram a Síndrome da Mulher de Potifar ganharam ainda mais força.
A ausência de punição para quem promove uma denunciação caluniosa propaga a prática dessa atitude. Casos em que a mulher de auto intitula vítima de Estupro; alegam situações de Estupro de Vulnerável contra os filhos; criam histórias fantasiosas na cabeça da criança de que o homem/pai cometeu o delito. “Quando a criança é muito pequena, tem dificuldade para diferenciar a fantasia da realidade. Se repetem que ela sofreu o abuso, aquilo acaba virando uma verdade para ela”[3], diz Lindomar Darós, psicólogo da Vara da infância e Adolescência de São Gonçalo.
Dessa forma, estando-se diante do dever sensitivo e imparcial do julgador, é indiscutível a insegurança trazida para o contraditório e a ampla defesa do acusado, o qual mesmo tendo em seu favor exame pericial negativo e a ausência de demais elementos probatórios, ainda sim poderá ser condenado com base tão somente às acusações levantadas pela vítima ou seus representantes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O trabalho iniciou-se de forma a apresentar um percurso histórico sintético relacionado ao crime de Estupro no direito brasileiro, especialmente destacado o deslocamento da mulher perante a sociedade, a qual deixa de ser somente vítima do crime, ingressando a um status de igualdade ao homem, podendo ser agente do delito.
De modo consequente, apresentou-se a classificação e conceitos doutrinários dos crimes de Estupro e Estupro de Vulnerável e, ainda, entendimentos atualizados das cortes de justiça brasileira (Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça) com relação à questão de vulnerabilidade do ofendido menor de quatorze anos.
Ingressando ao processo penal diante dos crimes sexuais em voga, foram brevemente narrados os principais meios de prova possíveis de serem utilizados nesses casos, momento em que se percebe a importância e a supervaloração da palavra da vítima no momento da formação da cognição do magistrado.
Não obstante, enfatizaram-se em tópico exclusivo, as consequências sociais e morais trazidas a um acusado e/ou condenado pelo crime de Estupro, seu tratamento carcerário e a repugnância social que contorna a realidade desses indiciados, levando a uma condenação precipitada e por vezes injusta.
Adiante, foram trazidas em tela as falsas comunicações pelo crime de Estupro, a fim de demonstrar que esses casos existem e precisam ser tratados na justiça penal brasileira. Nesse ponto, destacou-se a chamada Síndrome da Mulher de Potifar, a qual é considerada pela criminologia como a síndrome que nasce do sentimento de rejeição e vingança da mulher contra o homem.
Isto posto, conforme o que se pode extrair deste estudo, a palavra da vítima em crimes sexuais, especialmente nos crimes de Estupro e Estupro de Vulnerável, não pode ser enaltecida à rainha das provas, tampouco ser levada à análise e fundamentar uma condenação de forma isolada, devendo sempre estar adstrita a uma outra prova contundente colhida no processo. Sendo estreito o conjunto probatório ou existente a mínima controvérsia, há de prevalecer o in dubio pro reo.
Notas e Referências
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