Por André Nicolitt, Bruno Cleuder de Melo e Gustavo Rodrigues - 27/05/2015
Querer ser livre é também querer livres os outros.
Simone de Beauvoir
Circula nas redes sociais recente decisão do TJSP, da relatoria do Desembargador e culto professor, Guilherme de Souza Nucci. Ficamos estarrecidos e a indagar como um jurista da envergadura do referido processualista penal pode não compreender o tratado e produzir uma decisão tão a contramão de um processo penal afinado com o Estado Democrático de Direito. Transcrevo:
PRISÃO EM FLAGRANTE. AUSÊNCIA DE APRESENTAÇÃO IMEDIATA DO PRESO AO MAGISTRADO. OFENSA AO Pacto de São José da Costa Rica e ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos. DESCABIMENTO. A OBRIGAÇÃO CONSTITUCIONAL CINGE-SE À COMUNICAÇÃO DA PRISÃO E DO LOCAL ONDE A PESSOA SE ENCONTRE PARA FINS DE ANÁLISE DA LEGALIDADE, NORMA ESSA DE EFICÁCIA PLENA, DE EFEITO IMEDIATO E ILIMITADO (CR, ART. 5º, INCISO LXII). CORRESPONDÊNCIA COM A DISPOSIÇÃO CONTIDA NO ARTIGO 306 DO CPP. ORDEM DENEGADA (TJSP – HC n. 2198503-45.2014.8.26.0000-São Paulo, 2ª Câmara de Direito Criminal, Rel. Des. Diniz Fernando, em 26/01/15). “Quanto à afirmada ilegalidade da prisão em flagrante, ante a ausência de imediata apresentação dos pacientes ao Juiz de Direito, entendo inexistir qualquer ofensa aos tratados internacionais de Direitos Humanos. Isto porque, conforme dispõe o art. 7º, 5, da Convenção Americana de Direitos Humanos, toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais. No cenário jurídico brasileiro, embora o Delegado de Polícia não integre o Poder Judiciário, é certo que a Lei atribui a. Esta autoridade a função de receber e ratificar a ordem de prisão em flagrante. Assim, In concreto, os pacientes foram devidamente apresentados ao Delegado, não se havendo falar em relaxamento da prisão. Não bastasse, em 24 horas, o juiz analisa o auto de prisão em flagrante” (TJSP – HC n. 2016152-70.2015.8.26.0000- Rel. Guilherme de Souza Nucci, em 12.05.2015).
O acórdão é fruto de uma má compreensão dos tratados e do sistema de direitos fundamentais instituído pela CRF/888.
A Constituição do Brasil possui um sistema aberto de direitos fundamentais, como se extrai do art. 5.º, § 2.º, da CF/1988. A abertura de nosso sistema está definida com a seguinte redação: (§ 2.º) "os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte". A Constituição do Brasil, ao sair do catálogo, remeteu-nos à própria Constituição (regime e princípios por elas adotados) e aos tratados internacionais[1].
Quanto aos tratados internacionais, embora o Texto Constitucional tenha se referido apenas a “tratados”, não há razão para interpretação restritiva da qual decorreria a exclusão das convenções e dos pactos. A doutrina se inclina a reconhecer na expressão “tratado” um gênero que abriga diversas espécies, como os pactos e as convenções.[2] Os direitos fundamentais previstos tanto em tratados quanto em pactos e convenções internacionais podem enunciar direitos fundamentais, nos termos do art. 5.º, § 2.º, da CF/1988.
Ilustra-se muito nesta categoria o direito de recorrer da sentença, o chamado duplo grau de jurisdição (art. 8.º, item 2, h, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica de 1969 e art. 14, item 5 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966). Pode-se falar, ainda, do direito do preso de ser apresentado “sem demora” à autoridade judicial, constante do art. 7.º, item 5 do Pacto de São José da Costa Rica e de igual maneira no art. 9º, 3 do Pacto internacional sobre direitos civis e políticos.
No que tange aos direitos fundamentais previstos em “tratados”, há uma discussão interessante, relativamente ao status jurídico do ingresso destes direitos no ordenamento jurídico, notadamente em razão do § 3.º do art. 5.º da CF/1988. Indaga-se: os direitos fundamentais previstos em tratados internacionais estão na mesma posição hierárquica da norma Constitucional, inclusive se beneficiando de proteção como cláusula pétrea e servem de referência para o controle de constitucionalidade, ou estão no mesmo nível das leis infraconstitucionais, ou ainda estariam entre a Constituição e as leis?
Comungamos do entendimento no sentido de que os direitos fundamentais previstos em tratados internacionais ingressam no ordenamento jurídico se aglutinando à Constituição material e com status equivalente, por força do art. 5.º, § 2.º, da CF/1988.[3]
Este porém não é o entendimento do STF que, embora não unânime, insiste em negar a natureza constitucional destas normas, afirmando estarem os tratados abaixo da Constituição e acima das leis conforme se extrai do RE 349.703. Assim, seriam eles infraconstitucionais e supralegais. Contudo, o Min. Celso de Mello esposa entendimento no sentido de que os tratados são formalmente constitucionais ut HC 90.450.
Não obstante, não há dúvida de que os tratados e convenções sobre direitos humanos ingressaram no Brasil e possuem posição hierárquica superior a das leis infraconstitucionais, seja na nossa perspectiva seja na do STF.
Portanto, a exigência da audiência de custódia está acima das leis ordinárias, devendo a aplicação do CPP e sua interpretação ser conforme os tratados, não podendo ser incompatíveis com os mesmos.
É preciso entender que a garantia da audiência de custódia situa-se nos tratados como mecanismo que visa assegurar o direito de liberdade. A ideia reside exatamente em levar o preso a presença de autoridade capaz de restabelecer o direito de liberdade.
Com efeito, a apresentação sem demora possibilita ao juiz verificar não apenas a legalidade da prisão, como também sua necessidade, garantindo também o exercício do contraditório, o que o CPP, na dicção dos art. 306 e 310 não asseguram.
Note-se que, a autoridade prevista em lei deve ter o poder de restabelecer a liberdade. O delegado de polícia não possui em nosso sistema tal poder. O máximo que pode é conceder a fiança nos crimes cuja pena seja de até 04 anos. Nos demais casos (leia-se: nos crimes cuja pena seja superior a 04 anos; e até mesmo nos de pena até 04 anos, quando o agente não prestar a fiança arbitrada pelo delegado), mesmo entendendo desnecessária a custódia (por entender ausentes os requisitos da prisão preventiva), encaminhará o ser humano para o cárcere e aguardará a decisão do juiz.
Bom seria que o delegado tivesse este poder, vez que quanto mais agentes públicos pudessem tutelar a liberdade melhor. Mas no quadro atual, o delegado não tem poder de tutelar a liberdade para além das hipóteses de crimes punidos com pena de até 04 anos (e até mesmo nesses, quando o agente não prestar a fiança arbitrada).
Na verdade, antes do ato jurídico do delegado que lavra o flagrante não temos verdadeiramente prisão, temos apenas captura. A custódia só existe a partir da lavratura do APF. Neste sentido, a exigência é de que o custodiado seja apresentado e não o capturado. Até porque não é da tradição “prender” (capturar) e não levar ao delegado para tornar jurídico o ato. Do contrário o que haveria era sequestro, desaparecimento forçado, etc.
Assim, não há dúvidas de que o Delegado de Polícia nos termos da atual legislação não atende aos fins colimados nos tratados quando exigem a audiência de custódia. O que o acórdão pretende é dar uma interpretação que cria um garantidor para inglês ver, pois o preso é apresentado para alguém que não tem o pleno poder de soltar.
Portanto, analisando de forma crítica a proposição delineada pelo Des. Nucci, de que na atual conjectura legal do processo penal brasileiro teria a atribuição de garantia irrestrita de liberdade, ter-se-ia, na esteira da clássica definição do filósofo alemão Jünger Habermas uma contradição performativa[4], eis que a própria proposição não se coaduna com os pressupostos pragmáticos do ato de fala que a incorpora.
Neste sentido, em termos mais claros, de nada adianta atribuir ao Delegado de Polícia função de garantia que não pode cumprir por ausência de disposição legal, ou, ainda, no mais simples jargão popular, “dar com uma mão e tomar com outra”, eis que a Autoridade responsável pela tutela da liberdade não poderá concedê-la.
Lendo o voto do Des. Nucci, o que se extrai dos fatos é que o indivíduo foi preso em 19 de janeiro de 2015 e como o voto é de 12 de maio de 2015, imaginamos que o HC não restou prejudicado, isto é, continua preso e sem ter sido apresentado ao magistrado há quase 05 meses. Consta também do voto informação de que se tratava de acusado primário e com bons antecedentes acusados de tráfico o que por si só indica a desproporcionalidade da medida, vez que em tese admite-se no caso a substituição da pena definitiva em se seguindo a orientação pacífica do STF. Não obstante, o fundamento da prisão é a garantia da ordem pública o que já reputamos inconstitucional em outros escritos[5].
De nossa parte entendemos o seguinte: a prisão lavrada pelo delegado pode ser legal. Comunica ao Juiz em 24 horas. Este a converte e passa ser a autoridade que mantém a custódia. Uma vez convertida deve designar audiência de custódia para apresentação do preso sem demora. Configurada a demora na audiência, há ilegalidade superveniente e a prisão deve ser relaxada.
Em resumo, a decisão que converte a prisão após a comunicação desta pelo Delegado de Polícia não afasta o dever do juiz de garantir ao preso o direito de ser levado “sem demora” até a autoridade que tem o poder de conceder-lhe a liberdade. Não autoriza o juiz a manter a prisão por meses até que se realize a AIJ ocasião em que o preso vai ser interrogado.
As normas do CPP (art. 306 e 310) e dos tratados internacionais, no que tangem a audiência de custódia, convivem tranquilamente.
Há que se destacar que o tema da audiência de custódia ganhou força em razão da pressão internacional que recai sobre o Brasil por descumprimento dos tratados, pelas violações de direitos humanos destacadamente pelo alarmante número de presos provisórios. A toda evidência o grande responsável por isso é o judiciário. Daqui há pouco vão querer dizer também que outras autoridades é que são os responsáveis por todos os problemas decorrentes do encarceramento e massa e tudo que daí decorre. Definitivamente não! No sistema constitucional em vigor é o juiz que prende e o juiz que solta e ele o responsável por todos os problemas que decorrem de sua atividade.
Vislumbramos profundo equívoco do acórdão ao tentar ver no Delegado autoridade capaz de atender aos fins previstos no Pacto de São José e no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. Trata-se na verdade de uma contradição performática na qual se afirma proteger a liberdade restringindo-a na medida em que institui como garantidor alguém que não tem o pleno poder de libertar.
Notas e Referências:
[1] NICOLITT, André. Manual de Processo Penal. SP, Revista dos Tribunais, 2014, p. 87.
[2] Neste sentido: Trindade, Antonio Augusto Cançado. Princípios de direito internacional contemporâneo. Brasília: UnB, 1981. p. 12.
[3] Neste sentido: Piovesan, Flávia. Os direitos humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Max Limonad, 1996. p. 89-90. Esta, inclusive, é a posição dominante da doutrina e, em parte significativa da jurisprudência.
[4] HABERMAS, Jünger apud DUTRA, D. J. V. Razão e consenso em Habermas: teoria discursiva da verdade, da moral, do direito e da biotecnologia. 2ed. rev. e ampl. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2005. p. 175/176
Disponível em https://periodicos.ufsc.br/index.php/ethic/article/viewFile/16132/14669 acesso em 25/05/2015 às 1h.
[5] NICOLITT, op. cit., p. 751-752.

André Nicolitt é Doutor em Direito pela Universidade Católica Portuguesa, professor da Universidade Federal Fluminense, Juiz de direito - TJRJ.
Bruno Cleuder de Melo é Delegado de Polícia Civil – RJ.
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Gustavo Rodrigues Ribeiro é Delegado de Polícia Civil – RJ.
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