ANÁLISE CRÍTICA DO CONTROLE DE VALIDADE DOS NEGÓCIOS PROCESSUAIS NA EXECUÇÃO CIVIL BRASILEIRA

08/01/2021

Projeto Elas no Processo na Coluna O Novo Processo Civil Brasileiro / Coordenador Gilberto Bruschi

Não é segredo que a tutela jurisdicional executiva não vem recebendo a atenção e o tratamento devidos no processo civil brasileiro. Esse cenário não se restringe ao território nacional, sendo compartilhado por diversos países ao longo da história, a ponto de ser um traço comum do panorama processual no mundo.

Se de um lado é antiga, crescente e generalizada a preocupação com a efetividade do processo, por outro, paradoxalmente, não se costuma destinar atenção prioritária ao estudo da execução. Embora o processo executivo seja campo preocupado por excelência com a realização de direitos, apresenta-se como terreno pouco ou mal explorado, não sendo raro associá-lo a um caráter meramente acessório e complementar em relação ao processo cognitivo.

No ensejo do centenário de Clarice Lispector, um exercício metafórico pode ser útil, ou ao menos interessante: se a mesa da ciência processual estivesse posta, a tutela executiva seria vista como algo semelhante a um café frio, item pouco disputado e que gera olhares de espanto a quem se interessa por apreciá-lo[i].

É preciso partir da ideia de que o exercício da jurisdição não está limitado ao julgamento resultante da atividade cognitiva, já que não é suficiente para o credor o anúncio formal de que está juridicamente certo[ii]. Em verdade, a frequente resistência do obrigado no atendimento da prestação corrobora a incapacidade do processo de conhecimento em garantir a modificação da situação de fato ao titular do direito[iii].

Em termos estatísticos, o cenário executivo é pouco animador. De acordo com a última apuração anual do Conselho Nacional de Justiça, dos 77 milhões de processos judiciais existentes no país, 55,8% estão em fase de execução. Além dos processos executivos serem maioria, possuem as maiores taxas de congestionamento[iv].

Sabe-se que os problemas enfrentados pela execução são plurais e complexos, indo de aspectos jurídicos a questões sociais, políticas e econômicas, de difícil resolução[v]. A amplificação do acesso ao crédito, o avanço tecnológico, a rápida depreciação patrimonial, a reduzida reprovabilidade social ao estado de inadimplência e a insuficiente estrutura das instituições de justiça são exemplos situados no segundo grupo. De toda sorte, apesar dos fatores técnicos não estarem sozinhos, exercem função essencial na racionalização dos rumos do processo civil executivo, sendo grave equívoco desvalorizá-los, como há tempos alertou Barbosa Moreira[vi]. Os negócios jurídicos processuais executivos se inserem nesse quadrante.  

Há dois principais fundamentos normativos que estimulam a negociação processual no âmbito executivo: a cláusula geral de negociação processual (art. 190, CPC) e o regime de disponibilidade da execução (art. 775, CPC). Assim, é necessário romper com o dogma de que toda execução seria necessariamente imposta ou forçada, como uma expressão absoluta do poder de império do Estado, sem espaço para diálogo ou ajustes entre os envolvidos. A lógica negocial e cooperativa também informa o procedimento executivo, existindo ampla margem de conformação do seu percurso[vii].

Com o sistema processual em vigor, a incidência da vontade das partes no processo se fortaleceu, conduzindo o ambiente processual a se tornar terreno propício ao exercício da liberdade. Na execução, isso é intensificado, uma vez que se desenvolve em favor da realização dos interesses do credor, podendo desistir de toda a execução ou de medidas executivas, sem precisar, como regra, da anuência do executado. Trata-se de campo que lida com a satisfação do direito de crédito, com acentuada natureza patrimonial e com vastas possibilidades de autocomposição[viii], o que propicia a modificação consensual das suas formas, atos e situações jurídicas processuais.

O incentivo à consensualidade é facilmente notado pela presença no CPC de leque bastante significativo de acordos processuais na execução. Para mencionar alguns: cláusula de eleição de foro (art. 781, I); suspensão convencional da execução (arts. 921, I e 313, II); pacto de impenhorabilidade (art. 833, I); avaliação consensual do bem penhorado (art. 871, I); e escolha do executado para depositário (art. 840, § 2º).

Mas é no terreno da atipicidade que está a grande potencialidade do tema e também suas maiores discussões. A doutrina processual já sinaliza ser possível acordo para supressão de efeito suspensivo de recurso; convenção de não promoção de cumprimento provisório; acordo para dispensa de caução; convenção de modificação da ordem preferencial de penhora; acordo de inexecução de multa coercitiva; pacto para escolha do depositário-administrador e do avaliador, assim como do regime de pagamento e distribuição de gastos; acordo de preferência do método expropriatório; exclusão consensual de medida executiva atípica ou transformação consensual dela em medida principal...[ix] Não há como inventariar todas as possibilidades, visto que seria tarefa incompatível com a fluidez e amplitude do modelo de atipicidade negocial.

Um ponto que merece atenção é como o tema dos negócios processuais executivos tem sido recebido pelos tribunais, sobretudo pelo Superior Tribunal de Justiça, considerando a relevância da sua atuação para a uniformidade de interpretação de leis federais, como são o CPC e diversas legislações processuais esparsas.

É certo que o termômetro de utilização dos negócios processuais não deve ser o amplo posicionamento do Poder Judiciário ao seu respeito. Primeiro, porque o Código está em vigor há menos de cinco anos, tempo insuficiente para essa avaliação. Segundo, se a convenção for celebrada, aplicada, e não suscitar dúvidas, sequer será profundamente debatida pelas instâncias judiciais, até mesmo por ser dispensada a sua homologação pelo órgão julgador, salvo exigência expressa nesse sentido. Sem prejuízo disso, importa saber como o controle de validade dos negócios processuais está sendo realizado na execução, em especial em relação ao objeto das convenções atípicas.

A limitação objetiva da negociação processual é assunto sensível e dotado de elevada complexidade. A ausência ou multiplicidade de critérios, com a utilização de parâmetros demasiadamente genéricos, vagos e imprecisos, pode acarretar a proliferação de interpretações que, ao cabo, inviabilizem o próprio objeto do acordo[x]. Com efeito, a realização adequada do controle judicial da convenção é importante para que não se proíba, por via transversa, o que o legislador expressamente permitiu, tampouco sejam adotados critérios que sirvam ao propósito de fomentar decisões arbitrárias ou de difícil controle, conforme Marília Siqueira da Costa acentua[xi].

Falar em limites objetivos não envolve o desestímulo à celebração do negócio processual ou a promoção do seu desprestígio. Ao contrário, revela a preocupação em melhor utilizar o instituto, de acordo com o seu máximo alcance, com respeito ao autorregramento da vontade, à segurança jurídica e ao dever de fundamentação.

De modo geral, a construção jurisprudencial do STJ acerca do controle de validade dos negócios processuais ainda é incipiente. No processo executivo, o panorama parece se repetir, resultando em poucos casos. Entre eles, destaca-se a decisão proferida pela Ministra Maria Isabel Gallotti, integrante da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, no Agravo em Recurso Especial n. 1.545.153/São Paulo, com publicação no mês de outubro de 2019.

Em síntese, trata-se de execução de título executivo extrajudicial, ajuizada com base em confissão de dívida, no valor de R$ 72.482,26. O juízo de origem determinou a citação dos executados, fixando a verba honorária em 10% do débito. A exequente interpôs agravo de instrumento em relação a esse ponto, recurso que foi rejeitado pela Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo. Interposto recurso especial, houve a negativa de seguimento, circunstância que originou a utilização pela exequente de agravo dirigido ao STJ.

No caso, a agravante sustentou a violação ao art. 190 do CPC pela decisão agravada, uma vez que no instrumento de confissão de dívida havia pactuação expressa entre as partes de fixação de verba honorária de 20% sobre o valor do débito atualizado, patamar que não foi respeitado pelo magistrado de origem e pelo TJ/SP, os quais afastaram a convenção e se limitaram ao valor de 10% de honorários, por ser um comando numérico expresso do art. 827 do CPC.

No STJ, a Ministra Relatora negou provimento monocraticamente ao agravo, por considerar ser hipótese de aplicação da Súmula 283 do STF, em razão do agravante não ter atacado todos os fundamentos relevantes da decisão recorrida. Não obstante, a decisão disse mais, sinalizando que a posição adotada pelas instâncias ordinárias no caso está em harmonia com o que a Corte Superior pensa sobre a temática.

Ao se verificar o fundamento para negativa de aplicação do negócio processual em tela pelas instâncias ordinárias, teor que inclusive consta transcrito na decisão monocrática agravada, vê-se que houve a indicação de que não competiria às partes renunciar ao devido processo legal, alterando o patamar da verba honorária para 20% no processo de execução autônoma por quantia, já que o art. 827 estipula expressamente valor inferior. Por essa ótica, caberia apenas ao julgador, e não às partes e seus advogados, majorar a verba honorária, sempre excepcionalmente, conforme o § 2º do art. 827, ou reduzi-la pela metade, sendo o caso do § 1º do dispositivo. Logo, ocorrendo o aumento da verba por iniciativa dos acordantes, a justificativa teleológica de incentivo à satisfação da obrigação seria violada, impelindo o devedor a suportar o pagamento de demasiados honorários.

De início, formula-se uma primeira crítica e questionamento: a invocação do respeito ao devido processo legal, de maneira genérica, é critério adequado ou minimamente seguro para controlar o que pode ser negociado no processo? Não se duvida da relevância do mandamento constitucional expresso de obediência ao processo devido (art. 5º, LIV, CRFB). O que se mostra nebulosa é a sua utilização, nos termos narrados, para o fim de controlar a validade do objeto do negócio processual. O que é o devido processo legal, afinal de contas? Não há consenso sobre os elementos ou postulados que o integram, nem mesmo sobre sua definição[xii], o que traz imprecisões.

Além disso, a vedação absoluta e em abstrato de negociar sobre verbas honorárias é ilusória. Em tese, admite-se a realização de acordos processuais sobre qualquer verba que integre o custo do processo, ou seja, sobre as custas, despesas e honorários advocatícios[xiii]. Na linha do que propõe Antonio do Passo Cabral, os acordantes podem decidir que cada um arcará com os custos dos seus advogados no processo ou disciplinar o pagamento das verbas honorárias pelo adversário, mas de maneira diversa da que está estabelecida legalmente. Desse modo, pode existir negócio para estipular valor fixo de honorários, e não um percentual específico, assim como para alterar a base de cálculo ou modificar os patamares máximo e mínimo da verba honorária[xiv]. Esse raciocínio se aplica plenamente à execução.

Na situação examinada, celebrado o acordo para o aumento do patamar dos honorários a serem pagos pelos executados em favor do advogado da exequente, a norma convencional contida no instrumento de confissão de dívida derroga a norma legal do art. 827 do CPC, como de resto acontece com as demais espécies negociais.

É importante dizer que a leitura da decisão não permite concluir se o advogado da exequente participou da celebração do acordo processual. Por se tratar de negócio que beneficia o patrono, não lhe causando prejuízo, entende-se não haver pertinência em eventual pretensão de ineficácia por ausência de sua concordância naquele momento, até porque o instrumento está sendo agora executado, o que supriria a ausência primitiva de participação. Todavia, como regra, é necessária a anuência do advogado, já que o recebimento dos honorários é um direito autônomo e exclusivo do procurador, sendo vedada, a princípio, a disposição das partes sobre situação jurídica titularizada por terceiro, conforme também se extrai dos arts. 23 e 24, § 4º, do Estatuto da OAB.

Para encerrar, reitera-se a expectativa de que a negociação jurídica processual seja mais e melhor utilizada, com a realização adequada do seu controle de validade perante os órgãos judiciais brasileiros. Na dúvida, a liberdade negocial deve prevalecer, especialmente no processo executivo, em que impera a disponibilidade.

 

Notas e Referências

[i] A alegoria foi inspirada na obra “A hora da estrela”, último romance escrito por Clarice Lispector, publicado originalmente em 1977, mesmo ano do falecimento da autora. Em certo trecho, o narrador da história, Rodrigo S.M, descreve a protagonista Macabeá do seguinte modo: “[...] Nada nela era iridescente, embora a pele do rosto entre as manchas tivesse um leve brilho de opala. Mas não importava. Ninguém olhava para ela na rua, ela era café frio. E assim se passava o tempo para a moça esta. Assoava o nariz na barra da combinação. Não tinha aquela coisa delicada que se chama encanto. Só eu a vejo encantadora. Só eu, seu autor, a amo. Sofro por ela [...]” (LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. São Paulo: Rocco digital, 2020, versão eletrônica).

[ii] PROTO PISANI, Andrea. Lezioni di diritto processuale civile. 6. ed. Napoli: Jovene, 2014, p. 692-693.

[iii] LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de direito processual civil. Tradução e notas de Cândido Rangel Dinamarco. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 261.

[iv] Conselho Nacional de Justiça. Relatório Justiça em Números 2020. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/WEB-V3-Justi%C3%A7a-em-N%C3%BAmeros-2020-atualizado-em-25-08-2020.pdf. Acesso em: 05 jan. 2021.

[v] Sobre o tema, recomenda-se a leitura: GRECO, Leonardo. Execução civil – entraves e propostas. Revista Eletrônica de Direito Processual, Rio de Janeiro, v. XII, 2013; SICA, Heitor Vitor Mendonça. Tendências evolutivas da execução civil brasileira. In: ZUFELATO, Camilo; et al (coord.). I Colóquio Brasil-Itália de Direito Processual Civil. Salvador: Juspodivm, 2016.

[vi] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Efetividade do processo e técnica processual. Temas de direito processual. Sexta série. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 27.

[vii] DIDIER JR., Fredie; CABRAL, Antonio do Passo. Negócios jurídicos processuais atípicos e execução. Revista de Processo, São Paulo, v. 275, jan., 2018, p. 3-4, versão eletrônica.

[viii] TEMER, Sofia; ANDRADE, Juliana Melazzi. Convenções processuais na execução: modificação consensual das regras relativas à penhora, avaliação e expropriação de bens. In: MARCATO, Ana; et al (coord.). Negócios processuais, v. 1. Coletânea Mulheres no Processo Civil Brasileiro. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 553.

[ix] Algumas hipóteses mencionadas constam nos Enunciados 19, 262 e 490 do FPPC. 

[x] FARIA, Marcela Kohlbach de. Licitude do objeto das convenções processuais. In: MARCATO, Ana; et al (coord.). Negócios processuais, v. 1. Coletânea Mulheres no Processo Civil Brasileiro. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 357.

[xi] COSTA, Marília Siqueira da. Convenções processuais sobre intervenção de terceiros. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 113.

[xii] YARSHELL, Flávio Luiz. Convenção das partes em matéria processual: rumo a uma nova Era? In: CABRAL, Antonio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique (coord.). Negócios processuais. Coleção Grandes Temas do novo CPC. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 82.

[xiii] CABRAL, Antonio do Passo. Convenções sobre os custos da litigância (I): admissibilidade, objeto e limites. Revista de Processo, São Paulo, v. 276, fev., 2018, p. 76.

[xiv] Ibidem, p. 77.

 

 

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