AMPLIANDO OS HORIZONTES DO JULGADOR À LUZ DA MULTIPLICIDADE DE VIVÊNCIAS

24/01/2020

Coluna Vozes-Mulher / Coordenadora Paola Dumont

O professor Adilson José Moreira explica que o artigo terceiro da Constituição Federal deve conduzir os juristas para o compromisso com uma agenda emancipatória, de modo que deve se buscar a partir das decisões judiciais, práticas institucionais e, também, quaisquer atos jurídicos, o fim da subordinação de todos os grupos minoritários. Assim, para realização plena de ideais tão caros, como a “erradicação da marginalização” é imprescindível o compromisso genuíno com o protagonismo das minorias[1]. Para tanto é importante tratarmos sobre os diversos juristas, as narrativas de vida que adotam (se são excludentes ou não) e se estes possuem o compromisso de entender os desdobramentos das diferentes realidades sociais para aprimoramento do próprio olhar.        

Os intérpretes não leem os textos de forma completamente pura, pois ao buscarem compreender, já possuem pré-compreensões, o que pode, em maiores ou menores medidas, influenciar no sentido de determinado texto. De tal sorte que, a forma como se enxerga o mundo pode ampliar, restringir ou modificar o sentido daquilo que está escrito. O mesmo acontece com a interpretação dos diversos fatos sociais. Bem, por isso a necessidade, portanto, de discutir sobre qual pré-compreensão está presente no imaginário dos nossos intérpretes e se a mesma é adequada para realização dos objetivos emancipatórios previstos na Constituição Federal.

Para tanto, não se pode desconsiderar que um pensamento que ainda vigora, advindo do período de colonização, é a ideia de que existe um jeito certo de se viver, existindo uma forma iluminada de se encarar as experiências cotidianas, sendo que todas as demais formas são obscurecidas.[2] Este pensamento possui a tendência de conduzir os sujeitos a falsa percepção de que eles são os seres mais interessantes da Terra. Como se fossem o centro de tudo, o que acarreta a marginalização de todo aquele que não merece tanta consideração como si próprio. Alguns até pensam que os marginalizados não são o centro por falta de esforço, ignorando completamente a estrutura perversamente excludente na qual esses indivíduos estão inseridos.[3]

E, para além da extrema arrogância deste pensamento, no Direito, isso se reveste de ares de dramaticidade, pois existe, por exemplo, o perigo de juízes fundamentarem suas decisões judiciais, partindo do pressuposto de que todos possuem a mesma experiência social que eles.[4] A grande problemática é que, pelo perfil da maioria dos nossos magistrados, fica fácil perceber que os mesmos nunca foram discriminados, o que faz com que o olhar destes sobre o sofrimento dos membros de grupos minoritários no Brasil seja absurdamente limitado. É isso: como as pessoas percebem, interpretam e encaram os diversos fatos sociais está amplamente ligado ao lugar que essa pessoa ocupa na sociedade.

Isso, porém, não quer dizer que não seja possível alcançar uma sensibilidade com a dor do outro. Não é preciso experenciar as diversas formas de opressões para saber que elas existem e como atuam para manter uma sociedade hierarquizada. É possível que um magistrado que seja homem, branco, heterossexual, não portador de nenhuma deficiência e oriundo de classe social não-vulnerável, saiba e leve em consideração as diversas formas de subordinação existentes no Brasil. Para tanto, tão somente o Direito, pode não ser suficiente, de tal sorte que os conhecimentos das demais ciências socias podem auxiliar de forma pontual. Esta contiguidade é necessária e urgente.

Pois, ampliar os horizontes é reconhecer a multiplicidade de vivências, rejeitando os discursos que universalizam. É sobre perceber que meros modelos não conseguem esgotar a pluralidade de seres, de experiências e de percepções. Os sujeitos são multifacetados por excelência.[5] E para além de grande aprimoramento existencial, para os que optarem por adotar essa postura mais inclusiva, tais reflexões são urgentes para realização dos ideais constitucionais e, portanto, promoção de justiça social.  

Adilson José Moreira sugere que os ideais emancipatórios preconizados pela Constituição, só serão alcançados com o fim das práticas que reproduzam sistematicamente a opressão de grupos raciais minoritários, cada qual na sua proporção e singularidade. Isso  aliado ao urgente aumento de juristas com postura interpretativa das normas e práticas sociais que considera as multiplicidades de vivências, de modo que, estes intérpretes se atentem para a situação daqueles que enfrentam discriminação de forma estrutural, tendo em vista que “os sujeitos humanos estão situados em uma série de pertencimentos sociais porque eles possuem identidades distintas”.[6]          

Também com apoio nos estudos realizados pelo professor Adilson José Moreira,  é preciso pontuar que existem atos estatais que podem ser discriminatórios e legitimadores da opressão racial. Isso pode ser notado no Direito, como um todo, mas aqui destaca-se exemplos do que acontece no processo penal. Já que, não são poucas as vezes que pessoas negras são encarceradas por causa de processos que se pautam única e exclusivamente na palavra dos policiais.

Quando se decide pautado apenas na palavra dos policias, o que ocorre,  por vezes, mesmo quando os depoimentos desses agentes não transmitem tanta certeza sobre os fatos, se ignora que estes agentes públicos também são sujeitos ideológicos e que, talvez, nos casos em análise, possam ter sido atravessados por pensamentos racistas, mesmo que de forma inconsciente[7]. Exemplifiquemos: Imaginemos uma ronda policial em um bairro de alguma comunidade periférica. Suponhamos que nesta comunidade exista uma quadra de esportes, na qual, grande parte dos membros exerçam suas atividades de lazer. As crianças brincam. As mães conversam entre si. Os adolescentes jogam bola e os jovens, em sua maioria negros, se reúnem para conversar. Pois bem. Centralizemos a atenção nos jovens e suponhamos que os policiais também o fizeram, se aproximando para uma abordagem. Acontece que dois dos jovens que nem estavam nesse grupo, correm ao perceberem a aproximação policial, deixando cair drogas no chão. Os demais não correm e são submetidos a abordagem policial, não tendo sido encontrados nada de ilícito com eles. Porém, mesmo assim, por alguma razão, os policiais resolvem conduzi-los por tráfico de drogas, afinal estavam em local “comumente conhecido pela mercancia de drogas” e pior, estavam próximo de pessoas que portavam drogas!

Ora, sem hipocrisia! É normal que em qualquer lugar da cidade, seja no centro ou na periferia, existam pessoas que cometem crimes e pessoas que não cometem crimes. Também é normal que em qualquer lugar da cidade essas pessoas convivam entre si – mesmo sem saber da condição de infração de leis penais umas das outras –, assim, fica o questionamento, o que pode ter levado esses policiais a criminalizarem o “estar perto” de quem porta drogas? O mesmo aconteceria se os jovens que estavam no tal grupo fossem brancos? Ou o mesmo aconteceria se estes jovens estivessem em algum local com status mais prestigiado da cidade, e por consequência, um local mais branco?

A esperança que se tem é que, neste caso e em casos similares, os mesmos nem fossem indiciados pela completa atipicidade da conduta e, se fossem indiciados, espera-se que não sejam denunciados, mas, se denunciados, espera-se que sejam absolvidos por inúmeros motivos, sendo a atipicidade da conduta e o “in dubio pro reo” alguns deles. Porém, pela agressividade do processo penal e seus efeitos irreversíveis, mesmo quando não geram condenações, casos assim não deveriam nem virar processo penal!

Sabendo que o racismo opera de maneira a criar um imaginário social, no qual, pessoas negras, mais especificamente, homens jovens e negros, são, inúmeras vezes, representados como potenciais criminosos.[8] Sabendo também o quanto isso faz com que esses jovens, com essas características, sejam alvos preferenciais das instituições de persecução criminal. E aqui relembremos a “circular da Polícia Militar de São Paulo orientando policiais a abordarem e revistarem homens negros e pardos que circulam em bairros nobres de Campinas”[9]. Bom, partindo dessa realidade, seria indispensável, para a erradicação dessa marginalização dos homens jovens e negros, que a possibilidade de agentes das instituições de persecução criminal atuarem orientados por pensamentos racistas fosse, pelo menos, cogitada pelos juízes criminais.  

O que se presencia, em massa, por sua vez, é o contrário. Muitas decisões são fundamentadas em argumentos do tipo: 1) “não há motivos para desconfiar da palavra dos policiais” ou pior, 2) “os policiais não possuem motivos para descriminarem o réu”. Talvez os magistrados pensem que todos os policiais agem distanciados de qualquer forma de discriminação, por nunca terem sido discriminados. Assim, mesmo que “organizações nacionais e internacionais de direitos humanos denunciam as ações arbitrárias cotidianas das forças policiais brasileiras”[10], este juiz utiliza como parâmetro o comportamento cordial que ele já recebeu dos policiais, se é que este juiz já tenha tido contato com algum policial fora dos fóruns e salas de audiências. Muito provavelmente estejamos falando de alguém que nunca foi abordado pela polícia, nem mesmo para essas revistas cotidianas que selecionam muito bem o seu público-alvo.

O exemplo supracitado é bem confortável de ser utilizado neste texto, pois aqueles que atuam na defesa, em processos penais, sabem da possibilidade disso realmente acontecer, inclusive, trata-se de exemplo baseado em fatos reais. Destaca-se ainda que, por entendermos que o racismo molda o inconsciente dos sujeitos, assim como ensina o professor Silvio Almeida, não se afirma, de modo algum, que a seletividade penal seja sempre praticada por agentes das instituições policiais de forma intencional. Pois, compreende-se que estes trabalhadores também são perpassados por todo o imaginário racista que há muito tem sido construído neste país.

Caso o leitor não esteja satisfeito, apresentaremos um caso específico e que gerou muita repercussão nacional. Falemos, portanto, em apertada síntese, de Rafael Braga: homem negro, periférico e preso por portar produtos de limpeza. Repita-se: preso por portar produtos de limpeza. Durante as manifestações políticas que aconteceram no Brasil, no ano de 2013, Rafael Braga Vieira foi abordado por dois policiais civis, que alegaram que o mesmo, supostamente, carregava consigo “artefatos incendiários”. Por certo, deveria causar estranheza e muita indignação que produtos de limpeza tenham representado perigo só por estarem nas mãos de um homem negro. Todavia, o que é péssimo, neste caso, ainda pode piorar, pois, assim como acontece com muitos jurisdicionados, eles são julgados por intérpretes que parecem viver em uma realidade paralela. Por isso, o juiz do caso Rafael Braga, ao invés de demonstrar espanto com a prisão em flagrante de um homem que portava produtos de limpeza[11], que foram considerados como se fossem artefatos incendiários[12],  afirmou que é preciso acreditar, piamente, nas palavras proferidas pelos policiais.[13] Ora, o que faltou para uma decisão de horizonte mais ampliado? Faltou cogitar a opressão racista que pode sim guiar a atuação de qualquer agente público de forma consciente ou inconsciente!

Engana-se quem considera que esta ampliação dos horizontes seja uma exigência muito grande para o Poder Judiciário, ou então, que isso fuja da esfera de atuação deste poder. A Constituição de 1988, através do seu texto repleto de princípios, passou a exigir uma postura diferente dos magistrados que, outrora, por muitos terem sido formados na tradição positivista, estavam acostumados a decidirem “com base em regras de tudo ou nada, efetuando aplicações silogísticas e operando a partir de métodos tradicionais de interpretação”.[14] Ocorre que a mudança de postura depois da Constituição de 1988 é urgente, ainda mais quando levado em conta o seu texto que contém promessas generosas.[15]

Por todo o exposto, o que se propõe é que, os vários intérpretes das normas jurídicas e também das situações jurídicas, ampliem seus horizontes, a fim de terem olhares que alcancem o máximo de realidades possíveis, em todos os momentos cruciais para a sociedade: elaboração de leis, interpretação de leis, aplicação das leis e outros. Que o parâmetro para essas condutas não seja universal, pois o universal não consegue abranger os grupos minoritários. E aqui enfatiza-se que embora exista evidente corte racial neste texto, muito influenciado pela cor de pele de quem o escreve, o foco na justiça criminal e o referencial teórico adotado, o que aqui se escreve não se restringe às questões raciais. É possível que se proponha que o Direito transforme a realidade de mulheres, pessoas com deficiências, LGBT’s, índios, as religiões minoritárias e também de qualquer sujeito que sofra alguma opressão por sua condição “marginalizada”.

Vale lembrar da literatura de Carolina Maria de Jesus e sua afirmação potente sobre contemplar “as flores de todas as qualidades”.[16] Observem: é sobre contemplar todas as flores e ao mesmo tempo cada uma. É o famoso “cada caso é um caso”. É a total dedicação em se perceber todas as circunstâncias possíveis nos fatos que são levados ao judiciário, mesmo quando essas circunstâncias são extremamente complexas,  como o racismo. E não se nega a dificuldade que os intérpretes terão quando passarem a refletir verdadeiramente sobre isso, pois, na direção dos ensinamentos da historiadora Beatriz Nascimento, o racismo brasileiro é um “emaranhado de sutilezas” [17], e isto significa que será trabalhoso o combate deste sistema de opressão, mas não há outra alternativa para a plena realização dos ideais constitucionais. Trabalhemos!   

 

 

NOTAS E REFERÊNCIAS

[1] MOREIRA, Adilson José. Pensando como um negro: ensaio de hermenêutica jurídica. São Paulo: Editora Contracorrente, 2019.

[2] KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. Disponível em: https://culturapolitica2018.files.wordpress.com/2019/09/ideias-para-adiar-o-fim-do-mundo.pdf. Acesso em 20 Dez. 2019.

[3] Neste sentido ver: ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

[4] MOREIRA, Adilson José. Pensando como um negro: ensaio de hermenêutica jurídica. São Paulo: Editora Contracorrente, p. 52 – 57. 2019.

[5] TEIXEIRA, Thiago. Inflexões éticas. Belo Horizonte: Senso, 2019.

[6] MOREIRA, Adilson José. Pensando como um negro: ensaio de hermenêutica jurídica. São Paulo: Editora Contracorrente, p. 263. 2019.

[7] ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, p. 64. 2019

[8] Idem, p. 63 – 69.

[9] MOREIRA, Adilson José. Pensando como um negro: ensaio de hermenêutica jurídica. São Paulo: Editora Contracorrente, p. 101 e 102. 2019.

[10] Idem, p.105.

[11][11] BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, processo n. 0008566-71.2016.8.19.0001, 39ª Vara Criminal, Juiz: Ricardo Coronha Pinheiro, 20/04/2017.

[12] Convém registrar que, em ambos os juízos, 1ª e 2ª instância o que é crucial para a caracterização do “artefato incendiário” é o argumento de que se encontra uma substância inflamável, suscetível de provocar incêndio, em uma das garrafas plásticas apesar deste porte não configurar conduta penalmente tipificada. Ademais, as testemunhas policiais afirmaram que havia “pavio ignitor” nas garrafas, o que foi negado por Rafael Braga. De modo que, o que se tem nestes autos é palavra x palavra.

[13] Sobre isso é muito agregador conferir as considerações imprescindíveis do Adilson José Moreira in: MOREIRA, Adilson José. Pensando como um negro: ensaio de hermenêutica jurídica. São Paulo: Editora Contracorrente, p.103-107. 2019.

[14] PINHO, Ana Cláudia Bastos de. Para além do garantismo: uma proposta hermenêutica de controle da decisão penal. Porto Alegre: Livraria do advogado Editora, p.20. 2013 

[15] Conforme fala do professor Dimitri Dimoulis em: TAPERÁ, Tapera. Lançamento “Pensando como um Negro: Ensaio de Hermenêutica Jurídica”, do professor Adilson José Moreira. 2019. (1h42m).Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=x4l2X3pCMgc> Acesso em: 01 Nov. 2019.

[16] JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática p. 52. 2001.

[17] RATTS, Alex. Eu sou Atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Imprensa Oficial, 2006.

 

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