Amai Direito?: Sobre os sobreviventes do abandono afetivo

29/06/2015

 Por Maíra Marchi Gomes - 29/06/2015

“Há tantas violetas velhas sem um colibri”

Zé Ramalho

Tratemos hoje do amor no Direito. Ou, melhor dizendo, do direito de amar. Parece que a melhor maneira de iniciar tal discussão é lembrando que, para ser direito, não pode ser um dever.

Parece que o Direito, quando penetra a floresta que é o amor, apresenta uma dificuldade em distinguir direito e dever. Ou, dizendo de outra forma, não sabe muito bem o que deve preservar e o que deve derrubar em sua passagem. Vide, neste sentido, no que diz respeito à violência de gênero, a ploriferação das movediças ervas daninhas chamadas “ações incondicionadas”, a ponto de muitas mulheres não se sentirem amparadas pela referida legislação, mas reprovadas em sua modalidade de amar. Na mesma direção, pode-se citar a idéia de que toda vítima criança e adolescente de violência sexual intrafamiliar apenas odeia o autor, e as correlatas posturas dos operadores do Direito que são tão ou mais traumáticas que a violência anteriormente sofrida.

Talvez a facilidade com que o Direito toma o amor como um dever relacione-se a sua concepção parcial do que ele é: algo que não é necessariamente o amor romântico. Dever-se-ia preservar todas as formas de amar, inclusive, o amor pela dor. O amor do qual tanto falam os contos de fadas não necessariamente está em algum lugar após o atravessamento da floresta, tão frequentemente por eles mencionada. Pode estar precisamente nela, com sua escuridão, frieza, falta de colorido, solidão, poucos indícios de humanidade e tendência a nos deixar sem rumo. Para que isto faça sentido, podemos lembrar daqueles amores que preferiríamos não ter escolhido sentir (tá...pelo menos por enquanto, mantenhamos pelo menos a ilusão de algum amor é fruto de escolha!).

Como nos alertam Roudinesco & Plon (1998) ao definir “gozo”, a relação com o outro busca outra coisa que não o prazer. Interessantemente, a origem de tal conceito fundamental para a Psicanálise lacaniana remonta ao Direito. “O termo gozo surgiu no século XV, para designar a ação de fazer uso de um bem com a finalidade de retirar dele as satisfações que ele supostamente proporcionava. Nesse contexto, o termo reveste-se de uma dimensão jurídica, ligada à noção de usufruto, que define o direito de gozar de um bem pertencente a terceiros” (Roudinesco; Plon, 1998, p.299). Em se tratando de Freud, há apenas duas menções à expressão: uma pouco significativa em “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905), e outra em “Os chistes e sua relação com o inconsciente”. Desta passagem, pode-se dizer: “o gozo não é apenas sinônimo de prazer, mas é sustentado por uma identificação e articulado com a ideia de repetição, tal como esta seria empregada mais tarde em Mais-além do princípio de prazer, por ocasião da elaboração do conceito de pulsão de morte” (Roudinesco; Plon, 1998, p.299).

Em se tratando de Lacan, as premissas de sua formulação sobre o conceito de gozo encontram-se em sua distinção entre necessidade, demanda e desejo.

...é o outro, a mãe ou seu substituto, que confere um sentido à necessidade orgânica, expressa sem nenhuma intencionalidade pelo lactente. Em decorrência disso, a criança vê-se inscrita, à sua revelia, numa relação de comunicação em que esse outro (o outro minúsculo), pela resposta que dá à necessidade, institui a existência pressuposta de uma demanda. Em outras palavras, a partir desse instante, a criança é remetida ao discurso desse outro, cuja posição exemplar contribui para a constituição do Outro (Outro maiúsculo). A satisfação obtida pela resposta à necessidade induz à repetição do processo, escorado no investimento pulsional: a necessidade transforma-se então em demanda propriamente dita, sem que, no entanto, o gozo inicial, o da passagem da sucção para o chuchar, possa ser resgatado. O Outro originário permanece inatingível, barrado pela demanda que se tornou ilusoriamente primária (...).

Lacan estabelece então uma distinção essencial entre o prazer e o gozo, residindo este na tentativa permanente de ultrapassar os limites do princípio de prazer. Esse movimento, ligado à busca da coisa perdida que falta no lugar do Outro, é a causa de sofrimento; mas tal sofrimento nunca erradica por completo a busca do gozo” (Roudinesco; Plon, 1998, p.299-300).

Mais adiante, Lacan apresenta outra discussão sobre o conceito de gozo, que inclusive se apresenta em sua teoria da perversão. Em seu artigo “Kant com Sade”, ele “pretende mostrar que o gozo se sustenta pela obediência do sujeito a uma ordem – quaisquer que sejam sua forma e seu conteúdo – que o conduz, abandonando o que acontece com seu desejo, a se destruir na submissão ao Outro (maiúsculo)” (Roudinesco; Plon, 1998, p. 300).

A respeito deste outro conceito que aqui surge, o de Outro, Lacan estabeleceu a terminologia outro/Outro para diferenciar a dualidade (conforme proposta pela Psicologia), do lugar terceiro (da determinação pelo inconsciente freudiano).

Termo utilizado por Jacques Lacan para designar um simbólico – o significante, a lei, a linguagem, o inconsciente, ou, ainda, Deus – que determina o sujeito, ora de maneira externa a ele, ora de maneira intra-subjetiva em sua relação com o desejo.

Pode ser simplesmente escrito com maiúscula, opondo-se então a um outro com letra minúscula, definido como outro imaginário ou lugar da alteridade especular. Mas pode também receber a grafia grande Outro ou grande A, opondo-se então quer ao pequeno outro, quer ao pequeno a, definido como objeto (pequeno) a (Roudinesco; Plon, 1998, p.558).

O desafio de barrar o gozo que temos ao obedecer o Outro-Direito, quanto ao tema em questão, é não apenas reconhecer que o amor não necessariamente traz apenas prazer, mas nele, como ele realmente é (com prazer e desprazer), encontrar beleza, serenidade e conforto. A floresta é um bom lugar, mesmo quando nela nos sentirmos mal. Sim...a luz às vezes ofusca, o calor às vezes sufoca, a potência de uma cor não está apenas em suas combinações mas também em sua multiplicidade de tons, a companhia nem sempre é um bem, também é humano destruir o outro, e as certezas de aonde ir podem nos impedir de encontrar o melhor caminho.

Há algumas outras características do amor romântico, que melhor seriam vislumbradas a partir de uma discussão sobre gênero e família. No entanto, para um foco que melhor permita o aprofundamento de algumas questões, problematizemos o Projeto de Lei 700 apresentado no Senado Federal em 2007, ainda em tramitação. Ele estabelece medidas no âmbito penal, por meio da tipificação penal do abandono afetivo (a previsão é de pena de detenção, de um a seis meses para quem deixar, sem justa causa, de prestar assistência moral ao filho menor de 18 anos, quando lhe cause prejuízos de ordem psicológica e social) e civil (ensejando a reparação do dano psicológico causado).

Já há jurisprudência no âmbito cível para ações de abandono afetivo, tendo as decisões via de regra sustentado-se na concepção de que quando da conduta omissiva restar dano moral a integridade da criança ou adolescente, o assunto atravessa o direito de família, e alcança o âmbito da responsabilidade civil. Sobre tais ações, ainda é necessário lembrar que a reparação é financeira, partindo-se do princípio de que, como qualquer ação de reparação moral, o autor deve financiar os meios que possam diminuir/restaurar o dano. No caso, meios de diminuição/cessação de dor, angústia, solidão e desamparo experimentado pela ausência de quem tinha o dever de amparar afetiva, moral e psiquicamente.

Poder-se-ia aqui sinalizar a fertilidade do terreno que é o capitalismo, a ponto de se compreender que dinheiro custeia questões não materiais. De fato, essa é uma discussão que afeta a todas as ações de danos morais que pretendem reparações pela via financeira. Talvez, a propósito, este seja um campo que muito se beneficiaria com a mediação de conflitos, mas, ao mesmo tempo e não paradoxalmente, no qual ela encontraria muita resistência. Como alerta um já bordão: amor com amor se paga.

Também se pode vislumbrar o humor sarcástico da seguinte situação prevista pelo legislador: uma criança ou adolescente que supostamente sofre por não se sentir retribuído por aquele que ama sentir-se melhor ao ter preso o seu objeto de amor.

Bom...talvez a lógica implícita nesta proposta de criminalização do abandono afetivo e nas ações cíveis de abandono afetivo possa servir apenas para alertar ao pantanoso terreno da lei de que amor e dor não são tão diferentes assim. E que, então, é comum provarmos de um achando que é outro, e nos envenenarmos. Assim como é comum procurarmos exterminar o outro crentes de que isso é um bem (a si, ao exterminado e à sociedade). Como uma bruxa da história “Branca de Neve e os sete anões” que acredita que a maçã envenenada é um presente. Uma bruxa cujo talvez pior feitiço de transformar o mal num bem virou contra si.

Os favoráveis a este projeto de lei, bem como os que sentenciam decisões na esfera cível respondendo ao abandono afetivo por pais de seus filhos, via de regra baseiam-se no Art. 1.634 do Código Civil, que prevê que “Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores: I – dirigir-lhes a criação e educação; II – tê-los em sua companhia e guarda”, e nos a ele relacionados Arts. 1.579 e 1.632 (que abordam a dissolução de relações). Também se remetem ao Art. 229 da Lei Maior: “Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”.

Mas amar não é cuidar, educar, respeitar, sustentar, guardar, proteger, criar, assistir. Pode estar nisso tudo, ou não. Além disto, o sofrimento de não ser amado ou ser mal-amado talvez aumente frente à condição de ser compulsoriamente cuidado, educado, respeitado, sustentado, guardado, protegido, criado e/ou assistido. Cazuza já bem falou que os maiores abandonados que se contentam com migalhas, raspas e restos sofrem por quererem na verdade nossa mão e um pouquinho do braço.

É fato que, numa cultura que carrega o valor da competitividade inclusive para o campo do amor, alguns podem se sentir melhor ao prejudicar aquele que não o amou (pelo menos não tanto ou da forma que queria). De qualquer modo, poder-se-ia questionar o incentivo, por meio de ações cíveis (e, quiçá, penais) de abandono afetivo, desta cultura. Se o amor frequentemente confunde-se com a dor, ele não pode confundir-se com extermínio do outro.

Os adeptos de ações de abandono afetivo também alegam que não se está obrigando a amar, mas apenas reprovando condutas que prejudicam o desenvolvimento moral e psicológico da criança ou adolescente e garantindo o cumprimento das obrigações de pais junto aos filhos. Ora, mas qual seria a conduta apresentada pelos pais que afeta o desenvolvimento moral e psicológico de um filho a não ser aquela que é interpretada pela criança ou adolescente como falta de amor ou desamor? Portanto, está-se, sim, tornando o amor uma obrigação.

E, diga-se, uma obrigação ao pai e ao filho, já que se parte ao princípio de que a criança ou adolescente não pode preferir ser desamado ou não amado a ser obrigatoriamente amado.

Este debate também diz respeito, em certa medida, às ações de visita. Aliás, nestes casos é que melhor se evidencia uma outra concepção sobre o amor que, ao meu ver, é equivocada: a de que amor é sinônimo de convivência. A 4ª turma Cível do TJ/DF, neste ano, não deu provimento ao recurso de um processo (cujo número não é divulgado em razão do segredo de justiça), e fixou multa por descumprimento do dever de visita do pai a um filho. O pai até tentou argumentar que, devido ao seu trabalho como agente penitenciário, a sua convivência quinzenal era impossível, e propôs que sua irmã e mãe substituíssem-no em algumas datas. Compreendeu-se que o direito da criança gera obrigação personalíssima.

Já a 8ª Câmara Cível da comarca de Guaíba, no acórdão Nº 70051620565 de 2012, cuja ementa é “Agravo de instrumento. Dissolução de união estável. Visitas. Acordo homologado. Descumprimento pelo pai visitante, que não busca qualquer contato com os filhos. Fixação de multa. Descabimento”, inclusive garante aos pais o direito de não amar os filhos. Ela negou o provimento de maneira unânime, tendo o relator Luiz Felipe Brasil Santos dito: “É de pensar qual o ânimo de um pai que vai buscar contato com seus filhos premido exclusivamente pela ameaça de uma multa? Deixará ele perceber a tão desejada afetividade que idealmente deve permear a relação entre pais e filhos? Ou, ao contrário, constrangido pela situação que lhe é imposta, exporá as crianças a situações de risco emocional, ou até físico, como forma de provocar na parte adversa o desejo de vê-lo longe da prole, que é aquilo que, afinal, ele pretende... O resultado: um verdadeiro “tiro pela culatra”, cujas vítimas serão as crianças, pois amor não se compra, nem se impõe...”.

O afeto é um direito fundamental esculpido na constituição. Mas se deve lembrar que afeto não é sinônimo de amor. Sequer de um sentimento bom. Afeto é simplesmente o que nos afeta. E, principalmente, deve-se lembrar que aprender a viver exige sermos não-amados ou desamados (ah, amor não precisa ser eterno para dar certo!). E que, em alguns casos, quem não nos ama ou deixa de amar são nossos pais.

Não tiremos o direito desses que não são amados, pelo menos a partir de algum momento, pelos pais de lidarem com o lugar que têm nos seus desejos. Acreditemos que isso não é uma sentença de morte. Aliás, há alguns zumbis em cujos olhos só se vê corações. São aqueles que se contentam em viver custe o que custar. Inclusive com a ilusão de que há algum amor que só bem nos quer.

Evidentemente, quando ele nos traz mais mal que bem, podemos optar por abandonar o amor. Porém, é só autorizando o outro a não nos amar ou deixar de nos amar que nos autorizaremos a fazer o mesmo.

Aliás, quem disse que sempre se deve amar os pais, além do quinto mandamento cristão? Muitas das relações amorosas mortificantes do sujeito e do outro advém da repetição de relações com as figuras parentais da infância e adolescência cujo fim (ou impossibilidade sequer de começar) não se admitiu. Pais são seres como quaisquer outros. Podem nos amar ou não. Podem ser amados ou não. Não são amáveis por completo, e não nos amam por completo. Podem inclusive nos odiar tanto que o melhor seja nos afastarmos, e os amar um pouco menos e/ou à distância.

Lacan (1955/1956), objetivando mostrar a função de Deus no delírio paranóico de Daniel Paul Schreber (um juiz! Vejam que coincidência!), propõe uma relação de êxtase, misticismo, com o Outro. Nela, o sujeito se aniquila, e surge a heterogeneidade radical de um Outro. E o autor alerta que deste Outro absoluto (que sabemos poderem ser a palavra dos pais, o Direito, Deus, etc.) sempre se deve desconfiar. Afinal, nunca se sabe se ele está ou não nos enganando.


Notas e Referências: 

Lacan, J. (1955/1956). O seminário, livro 3, As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Roudinesco, E. & Plon, M. (1998). Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.


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Maíra Marchi Gomes é doutoranda em Psicologia, mestre em Antropologia pela UFSC e Psicóloga da Polícia Civil de SC.  Facebook (aqui)                                                                                                                                                                                                                                                                                                


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