Aliás, não seria a penhora do bem de família do fiador na locação uma afronta à dignidade de sua pessoa?

30/10/2019

Coluna Espaço do Estudante

Antes de adentrarmos propriamente no tema proposto, mais especificamente no que tange a hipótese em que o bem de família do fiador é alvo de penhora, precisamos abordar questões preliminares consoantes a este instituto, quais sejam, sumariamente: 1. O que é bem de família? 2. Qual a sua origem? 3. Quais são os seus fundamentos legais? 4. Em que se baseia a possibilidade de sua penhora?

Vejamos.

O ensinamento prevalente e largamente preconizado no direito brasileiro, no que concerne à origem do bem de família, é a do jurista e professor Dr. Álvaro Vilaça de Azevedo, para quem, o bem de família relembra o modelo americano (em tradução livre: “residência de família”), oriundo da lei Homestead Law Exemption Act, promulgada em meados da década de 50, no Texas, sob a presidência de Abraham Lincoln, cuja finalidade era a de instituir e distribuir terras para quem se dispusesse a estabelecer-se como colono é pequeno fazendeiro no Oeste dos Estados Unidos. (AZEVEDO, Álvaro Vilaça. Bem de Família: com comentários à Lei 8.009/90. 5. ed. São Paulo: RT, p. 25, 2002).

Pondera, noutras linhas, o doutrinador e professor Antônio Natanael Sarmento Martins, e não o fez em momento inoportuno, que o bem de família encontra sua origem no instituto alemão Hofrecht, que consiste, de modo geral, em tornar indivisível, por disposição legal, o imóvel rural, para que este possa ser transmitido, integralmente, aos sucessores — ius haereditatis. (SARMENTO, Natanael. Notas sobre o bem de família. Jus Et Fides, Recife, ano 1, n. 1, p. 173, dez. 2001).

Fato é que, muito em que pese o douto arrazoado dos doutrinadores primeiramente destacados, o bem de família, como bem preconiza Álvaro, não se esgota nos limites territoriais estadunidenses e alemães, estendendo-se para outros países europeus e latino-americanos, em especial, e notadamente, o Brasil. (AZEVEDO, Álvaro Villaça. Bem de Família Internacional (necessidade de unificação). São Paulo: Revista da Faculdade de Direito da USP, v. 102, p. 106, 2007).

Eis que chegamos no Brasil e, por sua vez, no momento apropriado para interpenetrar o seu vasto e rico ordenamento jurídico.

Antes de tratar dos fundamentos legais do bem de família, é importante destacar que este instituto foi inicialmente recepcionado pelo Código Civil de 1916, mas que ele só veio a ser efetivado com o advento e promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, e concretizado em virtude da Lei 8.009 de 26 de março de 1990 - Lei de Impenhorabilidade do Bem de Família.

Dando continuidade a presente abordagem, e respondendo a segunda pergunta proposta, o bem de família encontra seu fundamento legal em dois diplomas, distintos entre si, embora visualmente análogos: têm-se, em primeiro plano, o diploma específico, a Lei 8.009/90, que regula o bem de família legal, sendo este norma de direito público, de efeito erga omnes, oponível a qualquer do povo; têm-se, em segundo plano, o tratamento mais genérico, que se dá por meio do Código Civil 1916, em seus arts. 1711 e seguintes, que regula o bem de família voluntário ou convencional, sendo este oriundo do ato de vontade da entidade familiar, instituído e formalizado mediante registro no Cartório de Registro Público de Imóveis.

De um lado, pois, dispõe a Lei n° 8009/90, em seu art. 1°, que: “o imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei” (art. 3º da Lei n. 8.009/90, que veremos em breve). São considerados, ainda, para efeitos desta lei, “o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados”. (conf. parágrafo único do mesmo dispositivo legal).

Lado outro, sob a égide do Código Civil de 1916, têm-se o bem de família voluntário ou convencional, regulado no Código da seguinte forma: “podem os cônjuges, ou a entidade familiar, mediante escritura pública ou testamento, destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família”. (art. 1711 do Código Civil de 1916).

Uma vez tratadas as questões preliminares subjacentes ao bem de família (o que é, seu contexto histórico, bem como seu fundamento legal), voltemos a questão central: pode o bem de família do fiador ser penhorado? Antes de respondê-la, e para respondê-la, precisamos esquadrinhar a matéria referente à impenhorabilidade do bem de família (do fiador), a fim de precisar o âmbito de incidência das regras de impenhorabilidade.

Pois bem.

Referido bem, muito em que pese à garantia conferida a ele, notadamente a garantia à impenhorabilidade, pode ser penhorado, desde que, como antedito, a penhora esteja é enquadrada em uma das hipóteses previstas no rol do art. 3°, da Lei n° 8009/90.

Com efeito, pode o bem de família do fiador sofrer penhora, quando na hipótese do inciso VII do art. 3° da referida lei. Senão vejamos.

Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:

[...]

VII - por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.

[...]

Trata-se da possibilidade de penhora do bem de família do fiador de contrato de locação. Neste sentido, o bem de família, pela lei, é impenhorável, salvo quando este bem for do fiador de contrato de locação, que se obrigou, como principal pagador e devedor solidário, pela satisfação do crédito do locador, em caso de inadimplemento por parte do locatário.

Verdade é que, apesar de a penhora do bem de família do fiador encontrar previsão legal, a Lei não distingue o locador de imóvel residencial e locador de imóvel comercial, razão pela qual há muito têm-se discutido os âmbitos de incidência desta norma. Em não o fazendo, têm-se aplicado o mesmo dispositivo para ambos os casos, em detrimento da omissão da lei.

Eis que, em junho de 2018, quando do emblemático julgamento do RE 605.79, a 1ª Turma da Suprema Corte, aplicando o método do distinguish, segregou o locador de imóvel residencial e o locador do imóvel comercial.

Antes de tratar dos efeitos da decisão do STF, mister se faz considerar alguns apontamentos úteis a discussão a presente discussão.

Prima facie, o crédito do locador pode ter diversas finalidades, independentemente de sua natureza (locatícia). Assim, visualiza-se um caso em que o locador de um imóvel residencial cede todo o seu crédito para seu lazer próprio, ao passo que também se pode visualizar, em sentido singelamente diferente, um caso em que o locador de um imóvel comercial dedica — e não há nada de errado em fazê-lo — todo o seu crédito para sua própria moradia, e vice versa. A lei, neste diapasão, é, como antedito, omissa e não diferencia um caso do outro. Árdua é a tarefa de encontrar, porquanto, neste expediente de omissão e indefinibilidade, razoabilidade para penhorar o bem de família do fiador do contrato.

Imperioso ressaltar, ainda, que o crédito, além de ser utilizado para fins de moradia, pode ser utilizado para fins de subsistência — eis a razão de ser do bem de família. Não pensava Maluf de modo diferente quando afirmou que o instituto do bem de família visa proteger um dos elementos fundamentais da família, que é o lar. (MALUF, Carlos Alberto Dabus; MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Curso de Direito de Família. São Paulo: Saraiva, p. 723, 2013). Como incremento ao douto arrazoado de Maluf, Venoza preconiza que é senão a impenhorabilidade desse patrimônio, em benefício da constituição e permanência de uma moradia para incorporar familiar (VENOSA. Sílvia de Salvo. Direito de Família. 9. Ed. São Paulo; Atlas, 2009. 6 v). Visando, com isso, “à preservação do mínimo patrimonial para uma vida digna” (GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO PAMPLONA, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Direito de Família: As Famílias em Perspectiva Constitucional. 5. Ed. 6v. São Paulo: Saraiva, 2015).

Esta matéria foi rotineiramente debatida pelos Tribunais de Justiça dos Estados em virtude da Lei 8.245/91 — Lei do Inquilinato —, que inseriu o inciso VII ao rol do art. 3° da lei em comento, sem diferenciar locador de imóvel residencial e locador de imóvel comercial.

Tamanha foi a discussão no campo jurisprudencial que a matéria se deslocou das instâncias inferiores, chegando aos tribunais superiores, ao Superior Tribunal de Justiça, em sede recursal especial, e ao Supremo Tribunal Federal, em sede recursal extraordinária.

Após deliberar sobre a matéria, a fim de dirimir a lide existente e de pacificar a evidente divergência jurisprudencial, o STF, em 2010, resolveu a questão editando o tema 295/STF, atribuindo-lhe repercussão geral, que, através do julgamento do recurso paradigma RE 612.360, afirmou a seguinte tese:

"É constitucional a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, em virtude da compatibilidade da exceção prevista no art. 3°, VII, da lei 8.009/90 com o direito à moradia consagrado no art. 6° da CF, com redação da EC 26/20".

Ainda neste alinhavo, contudo em momento subsequente, o STJ, em 2014, em julgamento pela sistemática de recursos repetitivos, que fundou o tema 708/STJ, também declarou seu entendimento sobre a matéria, fixando a seguinte tese:

"É legítima a penhora de apontado bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, ante o que dispõe o art. 3º, inciso VII, da lei 8.009/90".

Posteriormente, já no ano de 2015, o STJ pacificou de vez a questão editando a súmula 549/STJ, preconizando a seguinte tese:

"É válida a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação".

Ressalte-se que, todos os julgamentos precedentes, do STJ, tanto o REsp 1.363.368/MG, que serviu de paradigma e amparo para o tema 708/STJ, quanto os recursos AgRg no AREsp 624.111/SP; REsp 1.363.368/MS; AgRg no AREsp 160.852/SP; AgRg no AREsp 31.070/SP; AgRg no Ag 1.181.586/PR; e AgRg no REsp 1.088.962/DF, carregam, em sua essência, a possibilidade da penhora do bem de família do fiador em contrato locatício comercial, e não residencial.

À luz do Acórdão do RE 605.709:

"EXTRAORDINÁRIO MANEJADO CONTRA ACÓRDÃO PUBLICADO EM 31/8/05. INSUBMISSÃO À SISTEMÁTICA DA REPERCUSSÃO GERAL. PREMISSAS DISTINTAS DAS VERIFICADAS EM PRECEDENTES DESTA SUPREMA CORTE, QUE ABORDARAM GARANTIA FIDEJUSSÓRIA EM LOCAÇÃO RESIDENCIAL. CASO CONCRETO QUE ENVOLVE DÍVIDA DECORRENTE DE CONTRATO DE LOCAÇÃO DE IMÓVEL COMERCIAL. PENHORA DE BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR. INCOMPATIBILIDADE COM O DIREITO À MORADIA E COM O PRINCÍPIO DA ISONOMIA. 1. A dignidade da pessoa humana e a proteção à família exigem que se ponham ao abrigo da constrição e da alienação forçada determinados bens. É o que ocorre com o bem de família do fiador, destinado à sua moradia, cujo sacrifício não pode ser exigido a pretexto de satisfazer o crédito de locador de imóvel comercial ou de estimular a livre iniciativa. Interpretação do art. 3º, VII, da lei 8.009/90 não recepcionada pela EC 26/00. 2. A restrição do direito à moradia do fiador em contrato de locação comercial tampouco se justifica à luz do princípio da isonomia. Eventual bem de família de propriedade do locatário não se sujeitará à constrição e alienação forçada, para o fim de satisfazer valores devidos ao locador. Não se vislumbra justificativa para que o devedor principal, afiançado, goze de situação mais benéfica do que a conferida ao fiador, sobretudo porque tal disparidade de tratamento, ao contrário do que se verifica na locação de imóvel residencial, não se presta à promoção do próprio direito à moradia. 3. Premissas fáticas distintivas impedem a submissão do caso concreto, que envolve contrato de locação comercial, às mesmas balizas que orientaram a decisão proferida, por esta Suprema Corte, ao exame do tema nº 295 da repercussão geral, restrita aquela à análise da constitucionalidade da penhora do bem de família do fiador em contrato de locação residencial. 4. Recurso extraordinário conhecido e provido. (RE 605709, relator(a):  min. DIAS TOFFOLI, relator(a) p/ acórdão:  min. ROSA WEBER, primeira turma, julgado em 12/6/18, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-032 DIVULG 15/2/19 PUBLIC 18/2/19).”

Fato é que, o acórdão prevê, valendo-se de processo que trata da penhora do bem de família do fiador em contrato locatício comercial, a penhora do bem de família do fiador em contrato locatício para fins residenciais. Neste alinhavo, construído, data máxima vênia, erroneamente, por meio do sistema distinguish, poderá o bem de família do fiador ser penhorado quando da incidência da hipótese prevista no art. 3°, VII, da Lei 8009/90, notadamente, ou não, quando se tratar, ou não, de contrato locatício comercial. (VELOZO, Abílio de Araújo. 1ª turma do STF comete lamentável equívoco em julgamento sobre a possibilidade da penhora do bem de família do fiador na locação comercial. Pernambuco-PE).

Em que pese o acórdão ante mencionado apresentar notórios vícios fáticos, as instâncias judiciárias inferiores, em especial os Tribunais de Justiça dos Estados, brasileiros, têm dirimido e julgado conflitos desta matéria de modo a penhorar o bem de família do fiador, por entender ser o acórdão o amparo legal e vinculante, cabível para solucionar a controvérsia existente. Observa-se este entendimento em certos processos judiciais, em destaque: TJSC - AI 4013946-17.2018.8.24.0900; TJSP – AI 2192239-70.2018.8.26.000; TJPE – AI 0006433-11.2018.8.17.9000. (VELOZO, Abílio de Araújo. 1ª turma do STF comete lamentável equívoco em julgamento sobre a possibilidade da penhora do bem de família do fiador na locação comercial. Pernambuco-PE).

É importante frisar, para não resvalar em hipocrisia ou desentendimento futuro, que, o RE 605.709 não superou entendimento firmado no plenário da Suprema Corte no tema 295/STJ, fato esse que gerou, ainda, em Dezembro de 2018, quando do julgamento do ARE 1.128.251, caso análogo, entendimento semelhante e favorável, possibilitando, por seu turno, a penhora do bem de família do fiador em contrato locatício comercial.

Afora do conflito ora apresentado, mister se faz recordar que estamos diante de dois direitos fundamentais do cidadão: o direito fundamental social à moradia (art. 6°, CRFB/88) e o direito fundamental à propriedade (art. 5°, XXII, CRFB). Garantias essas que são corolários de um princípio do qual jamais podemos nos esquivar, sequer ignorar: o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (art. 1°, III, CRFB/88), princípio esse que constitui um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito e que, por sua vez, é inerente a República Federativa do Brasil, em qualquer que seja sua esfera, quer seja ela Federal, Estadual ou Municipal.

Vale deixar, aqui, consignado, pós análise, o pensamento da jurista Flávia Piovesan:

A dignidade da pessoa humana, (...) está erigida como princípio matriz da Constituição, imprimindo-lhe unidade de sentido, condicionando a interpretação das suas normas e revelando-se, ao lado dos Direitos e Garantias Fundamentais, como cânone constitucional que incorpora “as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro. (PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 4ed. São Paulo: Max Limonad, p. 54, 2000).

Eis que,

É no valor da dignidade da pessoa humana que a ordem jurídica encontra seu próprio sentido, sendo seu ponto de partida e seu ponto de chegada, na tarefa de interpretação normativa. Consagra-se, assim, dignidade da pessoa humana como verdadeiro super princípio a orientar o Direito Internacional e o Interno. (PIOVESAN, passim).

A título de um arremate fiel e acertado, têm-se o posicionamento do advogado Thomás Ubirajara Caldas de Arruda de que:

“O direito fundamental à moradia prevalece, ao menos em regra, sobre o direito ao crédito, sobre o direito à livre iniciativa, bem como sobre outros de caráter meramente patrimonial. O seu núcleo essencial reflete o espaço mínimo existencial destinado a assegurar uma subsistência digna ao indivíduo, motivo pelo qual não deverá ser sacrificado descriteriosamente sob o argumento de que o devedor se encontrava no pleno exercício da sua autonomia de vontade.” (ARRUDA, Thomas Ubirajara Caldas de. A impenhorabilidade do bem de família sob a ótica do Superior Tribunal de Justiça: Contornos sobre a flexibilização da impenhorabilidade por abuso de direito e violação ao princípio da boa-fé. Conteúdo Jurídico, Brasilia-DF: 18 out 2019).

 

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