ALGUNS APONTAMENTOS ACERCA DO PAPEL DO ESTUDANTE DE DIREITO E A NECESSÁRIA VISÃO JURÍDICA INTERDISCIPLINAR

08/07/2018

Algo que incomoda muitos operadores do direito diz respeito à estabilização do pensamento crítico acerca dos mais variados estudos jurídicos. Isto porque, para que deixe de existir essa chamada estabilização, é preciso que estudantes saiam da “zona de conforto” e efetivem a mudança e reconhecimento da doutrina brasileira em prol da sociedade brasileira, podendo servir de exemplo às outras nações.

Cabe destacar que a responsabilidade pela produção acadêmica de qualidade não é apenas das instituições de ensino. O próprio estudante de direito é responsável por sua boa formação e contribuição para o enriquecimento do debate de assuntos relevantes para a melhoria da vida em sociedade.

A partir de uma breve pesquisa empírica, chegar-se-á à conclusão de que muitos estudantes e instituições de ensino estão apenas preocupados com a aprovação em concursos públicos e no exame da Ordem dos Advogados do Brasil. Assim, é preciso que haja uma conscientização por parte da doutrina de que o estudo do direito não se resume às boas notas em provas e afins.

O direito só existe para que haja paz, equilíbrio, afastamento de injustiças nas sociedades. Porém, muitas vezes, é dada pouca importância a este fato e, por conseguinte, a real função do direito acaba sendo, por muitos, esquecida. Quando entendemos que o Direito é uma realidade e uma criação humana que tem como pressuposto valores, e tendo como objetivo maior a regulamentação da conduta social do homem, verificamos que existe um valor, um princípio ou ideal que constitui a razão fundamental do Direito, que é a Justiça. Portanto, esta perspectiva é fundamental para partir à análise das particularidades que o estudo do Direito oferece. (1)

Óbvio que a questão acerca das realizações profissionais é importantíssima, contudo, como já afirmado, não pode se resumir a isso. Assim, a visão crítica do direito por parte de todos os operadores do direito é elementar para que, desta forma, o direito cumpra com a sua função social. Ter a consciência de que o direito é apenas um meio para, entre outros, à pacificação social e garantia dos direitos fundamentais é essencial.

Sendo assim, conclui-se que a visão crítica do direito se inicia a partir do estudo interdisciplinar do direito. Isto porque, se faz necessário saber o porquê determinado dispositivo legal foi escrito de tal maneira e, sobretudo, a identificação do princípio intrínseco à norma e sua relação com todo o ordenamento jurídico. Por mais que o direito não seja uma ciência exata, é dotado de um certo grau de lógica. Assim, percebe-se que, a partir de uma visão interdisciplinar, diversas normas possuem o mesmo princípio intrínseco, causador da formulação da norma positiva. Exemplo trazido pelo eminente professor alemão Gerd Willi Rothmann, em palestra no XIII Simpósio Nacional de Direito Constitucional promovido pela Academia Brasileira de Direito Constitucional, ilustra muito bem isso, pois de acordo com seu entendimento, a função do Direito tributário nada mais é do que promover segurança ao contribuinte em face do estado. Assim, só há tributo se há prévia cominação legal, uma verdadeira limitação ao próprio Estado. Ora, por que não dizer que o princípio insculpido nesta afirmação é o mesmo contido na afirmação de que o direito penal existe para estabelecer os limites do poder punitivo estatal? Assim, fica constatada a lógica e a necessária visão dos marcos legais.

Ao contrário dos estudos teóricos dogmáticos e práticos, esta forma de reflexão não se ocupa das questões ligadas à decidibilidade de conflitos. Em caráter distinto, está vinculada com a ampliação crítica dos conhecimentos em torno do fenômeno jurídico, focando questões sociais, políticas, filosóficas e também estéticas. No entanto, esses enfoques acabam se relacionando, na medida em que não é possível desenvolver uma hermenêutica dogmática prática sem que haja uma visão do conhecimento de toda a complexidade que cerca o fenômeno jurídico. Daí a necessidade de valorizar um estudo interdisciplinar e crítico no seu campo temático. (2)

            Outrossim, cabe destacar o entendimento de Hilton Japiassu, que em sua obra clássica intitulada Interdiciplinaridade e patologia do saber, as relações interdisciplinares figuram como a primeira exigência interna das ciências humanas, como uma forma de aprimoramento da realidade que elas visam conhecer. (3)

Segundo suas palavras:

Deve-se ultrapassar a dissociação entre o domínio do pensamento teórico e da ação informada. Sua exigência revela, não o real progresso, mas o sintoma de uma situação patológica em que se encontra o saber. O número de especializações exageradas e a rapidez de fragmentação de cada uma culmina numa fragmentação do homem epistemológico. O saber foi esmigalhado, a inteligência se esfacelou, a razão perdeu a razão, desequilibrando a personalidade humana em seu conjunto. (4)

Pode-se citar vários autores que são favoráveis à propagação do estudo interdisciplinar do direito, dentre eles, Lenio Luiz Streck que, em obra magnífica intitulada Direito e Literatura, na qual o professor em parceria com renomados professores, trazem a importância da literatura para compreender melhor o direito e suas vicissitudes. No final, no seu Post escriptum, Streck fala acerca da dependência do direito citando passagens de grandes clássicos literários.

Em suas palavras:

 

Olhando a operacionalidade, a realidade não nos toca; as ficções, sim. Com isso, confundimos, de novo, as ficções da realidade com a realidade das ficções. Ficamos endurecidos. A literatura pode ser mais do que isso. Ela pode ser o canal de aprendizado do direito nas salas de aulas. Tenho feito essa experiência. Dias destes, fiz uma aula inaugural em uma faculdade de direito, em Belo Horizonte. Contei toda a história do positivismo jurídico a partir de Shakespeare. Peguei o Medida por medida e mostrei como o personagem ângelo representa as duas faces de uma mesma moeda. Ele vai do positivismo exegético ao positivismo axiologista-normativista. Em Portugal, tanto em Coimbra como em Lisboa, mostrei a trajetória dos direitos fundamentais fazendo um voo desde Antígona, onde ocorre a primeira objeção de consciência, até o maior romance do século XX, Der Mann ohne Eigenschaften (O homem sem qualidades), no qual se coloca o dilema do homem que caminha no limiar da mudança de paradigmas ocorrida no início do novecentos. (5)

Portanto, conclui-se que o estudo interdisciplinar do direito é conditio sine qua non para o desenvolvimento da teoria crítica do direito. Da mesma forma, sem esta percepção da realidade sobre o ordenamento jurídico em toda sua amplitude, realmente existirá cada vez mais do mesmo e a estabilização do estudo do direito com certeza será inevitável.

 

Notas e Referências

  • Silva, Ivan de Oliveira; Franzolin, Cláudio José; Cardoso, Roberta; Lições de Teoria Geral do Direito; Atlas; p. 180
  • FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação,4ª edição, São Paulo: Atlas, 2003, p. 21
  • Oliveira, Mara Regina; Shakespeare e o Direito; Gen; editora forense. O diálogo entre Shakespeare e a Teoria Crítica do Direito como estudo interdisciplinar; capítulo 1.
  • JAPIASSU, Hilton. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976, págs. 29 e 30
  • Streck, Lenio Luiz; Trindade, André Karam; Direito e Literatura – Da realidade da ficção à ficção da realidade; editora atlas; p. 228

 

 

 

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