Algumas notas sobre o equívoco do STF no uso do direito comparado no HC 126.292/SP [1]
Percalço notório na comunidade jurídica brasileira foi a trágica relativização sofrida pela presunção de inocência em 2016, na ocasião em que o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o HC 126.292/SP, entendeu, por maioria, ser possível antecipar a execução da pena após a confirmação de sentença condenatória em segundo grau, ou seja, julgou ser possível prender o acusado ainda antes de se atingir o trânsito em julgado, mitigando-se assim um dos principais basilares do Estado Democrático de Direito: a presunção de inocência.
O equívoco, que aqui se entende e se afirma como evidente, foi reiterado naquele mesmo ano quando do julgamento das liminares das ADCs 43 e 44, sendo mantida desde então, pelo menos até o presente momento, a orientação do Supremo que possibilita a execução antecipada da pena.
Diversos são os pontos que podem ser levantados como equivocados sobre esse entendimento, principalmente quando se faz a leitura da decisão do HC 126.292/SP[2] - principal do voto do Ministro Relator, Teori Zavascki. Sobram críticas cabíveis contra a inegável violação de um princípio basilar do sistema, o da presunção de inocência, uma vez que houve afronta contra texto expresso de norma constitucional (artigo 5.º, LVII da CF). Dentre todos os diversos apontamentos críticos possíveis, volta-se aqui especificamente para o mau uso do direito comparado que foi realizado quando do julgamento.
Em seu voto, Teori Zavascki evidenciou ter apresentado “razões suficientes para justificar a proposta de orientação [...] restaurando o tradicional entendimento desta Suprema Corte” no sentido de que “a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência”. Dentre essas tais “razões suficientes”, encontra-se o (mau) uso do direito comparado, uma vez que o Ministro fez uma análise comparativa entre diversos países no sentido de como funciona a “presunção de inocência”. Entretanto, essa análise foi precária, pois além de inexistir um objeto concreto para servir como parâmetro de análise, a comparação foi feita sem atender a qualquer critério mínimo de método.
Mencionou o Ministro que no cenário internacional existiriam diversos países que não procedem a suspensão dos efeitos de uma sentença condenatória enquanto se aguarda referendo da Corte Suprema, citando como exemplo a Inglaterra, os Estados Unidos, Canadá, Alemanha, França, Portugal, Espanha e Argentina.
Como pode ser facilmente observado pela leitura do voto, o argumento do direito comparado para justificar o posicionamento adotado no julgamento falha em pelo menos dois sentidos – conforme já se adiantou. A um, por não haver uma definição daquilo que estava a se comparar. O objeto comparado foi a noção de presunção de inocência? A possibilidade de execução antecipada da pena? Os efeitos conferidos a recursos de natureza extraordinária? Enfim, por mais que se tenha uma noção geral do que se buscou “comparar”, fato é que não ficou claro o objeto concreto do qual se buscou semelhanças ou diferenças em outros países. A dois, pela ausência de qualquer critério metodológico mínimo no exercício comparativo[3], uma vez que o voto se limitou a tecer breves comentários sobre cada país mencionado trataria sobre o tema.
Ao tratar do cenário internacional – sobre como lidam outros países com a execução de uma condenação, o Ministro Teori Zavascki faz referência a um “abrangente estudo realizado por Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, Mônica Nicida Garcia e Fábio Gusman”, passando a reproduzir trechos do mencionado estudo, limitando-se a algumas transcrições o seu uso do direito comprado.
Ao tratar da Inglaterra, o funcionamento todo da questão é explicado no voto através da transcrição de algo em três pequenos parágrafos. Os Estados Unidos recebem quatro parágrafos para que o funcionamento de seu sistema com relação a questão tratada no caso seja explanado. Não é diferente nos demais países mencionados: Canadá em dois parágrafos; Alemanha em dois parágrafos; França em dois parágrafos; Portugal em um parágrafo; Espanha em dois parágrafos; Argentina em dois parágrafos. Como se observa, nenhum país mencionado é estudado a fundo, ou pelo menos de maneira um pouco mais séria, a fim de poder se entender como válida a comparação realizada.
O uso do direito comparado no caso em questão é utilizado como mero argumento de autoridade. Um exercício de retórica que visa reforçar um tropeço insistido pelo Supremo Tribunal Federal (pelo menos com relação a maioria dos Ministros). Não há qualquer base mínima no voto para o uso comparativo entre países. Em momento algum se cuida com os aspectos peculiares de cada país “analisado”. Não se debruça sobre o sistema recursal dos países. Não se atenta para o sistema de cada um desses. Não se preocupa com previsões legais específicas acerca da matéria tratada. Nada. Simplesmente são citados países e a forma com a qual estes regulam o tema que supostamente reforçam a autoridade do voto, dando “caldo” para a tese que ali prevaleceu.
Ante a delicadeza do assunto, importante tecer, em vias de conclusão, uma breve análise crítica sobre o posicionamento da Suprema Corte diante da (re)interpretação do dispositivo constitucional ao institui a presunção de inocência.
Relativizar o direito do cidadão em ser presumido inocente até que a sentença transite em julgado em nome do fim da impunidade significa tentar remediar um problema institucional – falta de boa prestação de serviço público, como por exemplo: defasagem no sistema recursal; excesso de processos etc – causando um problema constitucional e, tais manobras devem ser completamente afastadas, prezando pelo Estado Democrático de Direito.
Ora, inequívoco que os ânimos andam aflorados, principalmente com a espetacularização criminal conduzida pelos meios de comunicação. Quando se escuta determinada notícia a respeito de algum denunciado que “responderá ao processo em liberdade”, por exemplo, é extremamente comum presenciar cenas de descontentamento e inquietação da população, os quais reclamam das “leis brandas” e pugnam por uma justiça mais severa, inclusive, muitas vezes com prisão perpetua ou pena de morte para os desertores.
Mas deve-se considerar, também, que aqueles que recebem tal notícia, na maioria das vezes, são pessoas sem instrução ou saber jurídico e não conhecem como funciona a lei penal, o processo penal, quiçá, o que são direitos e garantias fundamentais e que, inclusive, são titulares de tais direitos. Nesse diapasão, buscar resolver problemas com o encarceramento desenfreado mostra-se equivocado, tanto pela afronta à Constituição Federal e aos pactos aos quais o Brasil é signatário, tanto pela realidade do sistema carcerário nacional, o qual foi declarado, pelo próprio STF, como “Estado de Coisa Inconstitucional”:
“Estado de coisas inconstitucional”, diante da seguinte situação: violação generalizada e sistêmica de direitos fundamentais; inércia ou incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar a conjuntura; transgressões a exigir a atuação não apenas de um órgão, mas sim de uma pluralidade de autoridades.
[...]
O Plenário anotou que no sistema prisional brasileiro ocorreria violação generalizada de direitos fundamentais dos presos no tocante à dignidade, higidez física e integridade psíquica. As penas privativas de liberdade aplicadas nos presídios converter-se-iam em penas cruéis e desumanas.[4]
Se a própria Suprema Corte entende que o sistema prisional é desumano e degradante, inserir pessoas até então inocentes nesse ambiente seria um dissenso e uma flagrante violação aos direitos humanos. Inclusive, é para isso que servem direitos fundamentais e das minorias. São para proteger aqueles em situação vulnerável e que se encontram diante da possibilidade de terem seus direitos moldados de acordo com o interesse de um determinado grupo ou, como no caso, à rogo da maioria.
Isto posto, o que se conclui é que toda pessoa tem direito constitucionalmente albergado de não ser considerado culpada até o trânsito da sentença condenatória, independentemente das retóricas utilizadas, isso porque, o Direito não tem o condão de apenas castigar os culpados, mas, também, de absolver os inocentes e, se valer da utilização equivocada do direito comparado para fundamentar a relativização de um direito fundamental se revela, no mínimo, um atentado ao Estado Democrático de Direito.
Notas e Referências
[1] Produção fruto das pesquisas do grupo de estudos “Jurisdição Constitucional Comparada: método, modelos e diálogos” (UNINTER), sob orientação da professora Estefânia Maria de Queiroz Barboza
[2] Uma abordagem mais profunda nesse sentido pode ser buscada em INCOTT JR., Paulo Roberto; TAPOROSKY FILHO, Paulo Silas. Relativização da presunção de inocência: a decisão do STF no HC 126.292/S. In: COELHO, Luiz Fernando (coord.); KRIEGER, Olga Maria (org.); TAPOROSKY FILHO, Paulo Silas (org.). Hard Cases: argumentação jurídica em casos difíceis. Curitiba: Instituto Memória, 2018.
[3] Alguns apontamentos nesse sentido já foram aqui feitos: TAPOROSKY FILHO, Paulo Silas; TOMAZONI, Larissa. Direito comparado na jurisdição constitucional contemporânea. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/leitura/direito-comparado-na-jurisdicao-constitucional-contemporanea-por-larissa-tomazoni-e-paulo-silas-taporosky-filho>. ISSN: 2446-7405. Acesso em: 30/05/2018.
[4]Informativo STF. Disponível em http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo798.htm. Acesso em 02/05/2018.
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