Algumas considerações antropológicas sobre o documentário “Justiça”

28/12/2015

Por Maíra Marchi Gomes 

“A justiça é para a bondade como a castidade para a timidez sexual.”

Fernando Pessoa

Propõe-se, neste escrito, a analisar o documentário Justiça. Na contra-capa, explica-se que ele acompanha o cotidiano de alguns personagens no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, sendo eles os defensores públicos, juízes, promotores e réus. Na sua própria apresentação, ainda, parece haver um convite à análise fílmica, posto que é dito que “O desenho da sala, os corredores do fórum, a disposição das pessoas, o discurso, os códigos, as posturas – todos os detalhes visuais e sonoros ganham relevância”.

Xavier (2003, p.33), falando da preocupação com a autenticidade da imagem fotográfica/cinematográfica, explica que, em discussões sobre tal autenticidade, não está em questão a existência/visibilidade do que é dado ao olhar, mas sua significação/invisibilidade. No cinema, em particular, a relação entre o imediato e sua significação seria complexa, porque mais que legitimidade/autenticidade da imagem, procura-se que ela seja convincente ao ponto de instaurar um determinado mundo imaginário. “A sucessão de imagens criada pela montagem produz relações novas a todo instante e somos sempre levados a estabelecer ligações propriamente não existentes na tela. A montagem sugere, nós deduzimos. As significações engendram-se menos por força de isolamentos (...) e mais por força de contextualizações para as quais o cinema possui uma liberdade invejável”.

Pode-se concluir, portanto, que o autor propõe uma antropologia da emissão da imagem para se analisar a mensagem transmitida pelo cinema.

Um fato que contribui para tal interpretação é a noção, apresentada pelo mesmo autor, de que a abdicação da individualidade do receptor possui uma função para o próprio receptor. Ainda que a leitura da imagem, para Xavier (2003), seja permeada por aspectos relacionados não apenas ao olhar que a produz, mas também ao olhar que as recebe, “Há entre o aparato cinematográfico e o olho natural uma série de elementos e operações comuns que favorecem uma identificação do meu olhar com o da câmera, resultando daí um forte sentimento da presença do mundo emoldurado na tela, simultâneo ao meu saber de sua ausência (trata-se de imagens, e não das próprias coisas)” (Xavier, 2003, p.35). Em outros termos, há um olhar exterior e anterior ao receptor (o da câmera, dirigido ao objeto) que media a imagem apresentada ao seu olho. O espectador não encontra o objeto, mas o aparato de projeção.

O privilégio do espectador é o de acessar ao que, por outra via que não a da precisão, destreza e maior liberdade trazidas pelo cinema, ser-lhe-ia invisível. O privilégio de, identificado ao olhar da câmera, não ter uma presença reconhecida. Ter um olhar restrito ao “puro olhar”, sem corpo. E ele chega a falar do cinema como definidor do ponto de vista do espectador, fornecedor do corpo do simulacro e monitor do desejo do espectador.

Xavier (2003), entretanto, ao lado dos benefícios para o receptor desta “submissão” do próprio olhar, explica que, apesar de o cinema ter-nos garantido um olhar seguro (porque não-responsável, não-autor da leitura que faz da imagem), não se tem analisado o olhar do receptor.

É precisamente esta análise do olhar construído pelo cinema, emitido pela câmera por meio da escolha de determinados ângulos, planos, seqüências e discursos, que se procurará realizar no presente trabalho. Pode entender, a propósito, que um trabalho desta natureza é exemplar da Antropologia Visual, se considerar-se que “Toda leitura de imagem é produção de um ponto de vista: o do sujeito observador, não o da “objetividade” da imagem (...). O simulacro parece o que não é a partir de um ponto de vista; o sujeito está aí pressuposto (...). Num plano elementar, podemos tomar o cinema como modelo do processo” (Xavier, 2003, p.51).

Em outros termos, o cinema utiliza-se de linguagem própria, que faz com que os recursos a ele disponíveis tenham uma mensagem em si; entretanto, esta mensagem, para ser lida, pressupõe um determinado receptor. Neste sentido é que a recepção é imprescindível para que o cinema alcance seu propósito.

É pertinente dizer que procurar-se-á partir de nenhum juízo de valor, na análise de ângulos, planos, seqüências e discursos utilizados nos filmes mencionados, da relativa sobre-determinação da câmera em relação ao olhar do espectador. Far-se-á jus à seguinte noção apresentada por Xavier (2003, p.57):

Cercado de imagens, vejo-me inscrito pela media numa segunda natureza, num processo que implica um cotejo de pontos de vista muito peculiar, que me afasta, por exemplo, do enfrentamento do próprio da relação pessoal, intersubjetiva. Este se constitui pela devolução do olhar (...). Diante do aparato construtor de imagens, minha interação é de outra ordem: envolve um olho que não vejo e não me vê, que é olho porque substitui o meu, porque me conduz de bom grado ao seu lugar para eu enxergar mais...ou talvez menos (grifo meu)

Pode-se, ao lado disto, propor que a análise do olhar construído pela câmera permitirá um olhar mais acurado sobre as mensagens apresentadas nos filmes. Um olhar que detecta não apenas o visível, mas também o invisível. Um olhar que apreende melhor, por chegar mais perto, a verdade. Como diz Xavier (2003, p.57): “Dado inalienável de minha experiência, o olhar fabricado é constante oferta de pontos de vista. Enxergar efetivamente mais, sem recusá-lo, implica discutir os termos desse olhar. Observar com ele o mundo mas colocá-lo também em foco, recusando a condição de total identificação com o aparato. Enxergar mais é estar atento ao visível e também ao que, fora do campo, torna visível”.

Noção semelhante é encontrada na contra-capa do documentário em questão: “A câmera é utilizada como um instrumento que enxerga o teatro social, as estruturas de poder – ou seja, aquilo que, em geral, nos é invisível”. Há, já neste fato, um convite à análise do que há de implícito nas imagens deste documentário.

O primeiro aspecto que mercece ser enfatizado é a utilização de imagens de corredores. Praticamente todas as cenas iniciam com imagens dos corredores do Tribunal. Há um critério, entretanto, que parece diferenciar aquelas em que os corredores aparecem contendo a movimentação de inúmeras pessoas, e aquelas em que aparecem com apenas uma pessoa, cujo movimento é acompanhado pela câmera: estas imagens são aquelas em que a Defensora Pública, um processado ou seu familiar está-se dirigindo ou saindo de salas de audiência.

Indica-se que há uma particularidade na construção de diferentes campos e fora-de-campo quando a personagem em questão é a Defensora Pública, um reú ou seu familiar. Como explica Aumont (1995, p.25), o “fora do campo” é tão passível de análise fílmica, no sentido de também portar uma mensagem, como o conteúdo do quadro. Segundo ele, “campo e fora de campo pertencem ambos, de direito, a um mesmo espaço imaginário perfeitamente homogêneo, que vamos designar com o nome de espaço fílmico ou cena fílmica” (grifo do autor). O fora-de-campo, neste caso o corredor, parece ter por função situar o quadro que se delimitará em seguida: o da audiência. Mais precisamente, mostrar que o que estará em questão nas audiências é apenas o réu, seu familiar ou a Defensoria Pública, e não a postura do Juiz ou questões sociais que transcendem a individualidade do réu ou o ato criminoso por ele cometido.

Uma possível leitura é o de que esta particulariedade do uso do “fora de campo” revela que o Judiciário entende como sua função a condenção, posto que a criminalidade adviria de um meio que, tendo excluído livre e espontaneamente agir criminosamente, precisa ser excluído.

Esta resposta tipicamente punitiva, expiatória e com características de vingança dirigida ao autor de um crime e àqueles que se posicionam em sua defesa é apresentada, no documentário em questão, não apenas pelas pelo uso mencionado de imagens de corredores, mas também pelas imagens de algumas atitudes de autoria (ainda que por negligência, omissão) de Promotores, Magistrados e Defensores Públicos tão ilícitas e imorais como os atos criminosos ali julgados. Isto porque tais imagens denotam que tais agentes entendem-se como “irrepreensíveis”, que por sua vez, ao lado dos recursos de montagem que demonstram como entendem os réus como “inerentemente repreensíveis”, reafirmam a visão polarizada que possuem do mundo “deles – representantes da lei” e dos “outros – réus”. Exemplos:

1) imagens da super-lotação dos presídios, apresentadas entre imagens de audiências. A noção de que a sucessão de imagens, por si só, porta uma mensagem, é bem explicitada por Aumont (1995, p.55), que fala que “a montagem consiste em manipular planos com o intuito de constituir um outro objeto, o filme)” e que “as modalidades de ação da montagem são duas: ela organiza a sucessão das unidades de montagem que são os planos; e estabelece sua duração” (grifos do autor);

2) diversas menções dos processados sobre agressões físicas, desrespeito a direitos inerentes à situação de prisão em flagrante, chantagens, subornos e chacinas de autoria de Policiais aos Juízes e Defensores Públicos, posto que nenhuma delas recebe qualquer resposta. Da mesma forma são tratadas as menções de processados e testemunhas sobre o risco de vida que vivem em seu bairro, devido à violência de traficantes e Policiais;

3) a cena em que o réu, escutando o ditado que a Juíza faz ao escrivão de seu depoimento, pede que seja ratificado, e ela não o faz;

4) o questionamento, em certa audiência, de uma Juíza ao policial que testemunha a favor da acusação sobre as razões de a cocaína que ele alega haver encontrado junto ao processado no momento da prática do crime de furto não haver sido sequer mencionada nos autos. Ela também não obtém resposta;

5) a cena em que um condenado diz à Oficial de Justiça, após a leitura de sua condenação, que não quer recorrer porque acredita que o tempo que precisará aguardar preso fará com que não seja matematicamente compensatório o pedido da revisão da decisão. Ela não o explica que este tempo é computado como cumprimento de pena, ainda que pareça ter conhecimento deste dispositivo haja vista que o questiona em seguida sobre o tempo em que ele já se encontrava preso, e ainda projeta no condenado sua decisão: “se o senhor não quer recorrer...”;

6) a cena em que Defensora Pública justifica à mãe de um condenado a decisão judicial relatando que houve uma mudança de Magistrado que presidia o processo, que a Juíza anterior não instruiu o processo e que o novo Juiz não escutou nem um dos envolvidos.

As menções do documentário à burocracia inerente à persecução criminal também parecem ter como função principal ilustrar este mecanismo em que o Judiciário se autoriza a agir imoral e sarcasticamente (e, portanto, também ilicitamente) perante o processado.

Na primeira cena, por exemplo, o processado alega ao Juiz que não poderia haver pulado um muro para fugir de policiais (conforme alegação nos autos) porque utiliza cadeira de rodas há anos. O Juiz só escuta tal afirmativa na terceira vez que é verbalizada, quando surpreende-se com esta nova informação, mas em seguida delega à Defensoria Pública a consideração aos direitos que ela entender que devem ser garantidos ao processado. A propósito, o Juiz inicia esta delegação falando “os direitos que você merece”, mas ratifica para “os direitos que a Defensoria entender que você merece”, demarcando assim que os direitos não são garantidos ao réu por sua condição, mas pelo poder de decisão judicial. Na mesma cena, frente ao pedido do processado de mudança de prisão para que tenha condições para defecar e urinar (já que é paralítico), o Juiz diz que só pode removê-lo se houver uma solicitação médica dirigida a ele, e, mais uma vez, retifica sua fala de que seria necessária uma “determinação médica” para “solicitação médica”.

O filme parece propor, porém, que há a possibilidade de uma outra postura dos operadores do Direito perante a criminalidade. Mais especificamente, que há uma diferença de postura perante a criminalidade entre aqueles operadores do Direito que enxergam o réu como alguém que é algo mais que um autor de ato criminoso.

O maior representante desta segunda postura seria a Defensora Pública. O próprio ângulo da câmera muda: quando a Defensora Pública se encontra com réus e seus familiares a câmera os mostra na horizontal (um olhando para a direita e outro para a esquerda). Já nas audiências, o ângulo posiciona o réu no canto inferior da imagem e o Juiz e Promotoria no canto superior, com exceção das audiências presididas por um certo juiz.

Entretanto, um certo Juiz também parece representar a exceção. Sua função no filme já é prenunciada quando, em sua primeira aparição, aparece na rua justificando a um vendedor de jornal que lhe oferece seu produto que comprará de outro vendedor porque já havia se comprometido com ele. Parece que o “fora de campo” parece mostrar, neste caso, que ele é alguém que vive em outros ambientes e estabelece outras relações que não as exigidas no exercício de sua profissão. Assim, ele pode se relacionar de outra forma que não julgando.

Tal interpretação também faz sentido se se considerar outras cenas em que ele aparece: uma em que ele aparece ministrando aula em uma universidade (em que, a propósito, fala da dificuldade de se caracterizar os elementos subjetivos de um crime, determinante para tipificação e qualificação de crimes), outra em que está dirigindo em um engarrafamento e outra em que aparece jantando com a esposa e filha (nesta, aliás, ele indaga à filha sobre o árduo início da vida profissional). Os demais Juízes, aparecem apenas no TJ, e durante a audiência[1].

Esta proximidade com o “mundo da rua”, do qual até então pareciam como fazendo parte os processados, seus familiares e a Defensoria Pública, parece demarcada em dois dispositivos:

1) o nome do Juiz aparecer escrito em branco no meio da tela em preto antes de sua primeira aparição, posto que tal recurso só é utilizado com os processados e Defensora Pública no documentário;

2) ser ele o único magistrado a aparecer andando pelos corredores do TJ. Além dele, só aparecem na mesma condição os processados, familiares e Defensoria Pública.

A diferença de sua postura perante os réus, em comparação aos outros dois Juízes filmados no documentário é explicitada de algumas formas:

1) Inicialmente, ele os olha nos olhos. Diferente dos outros juízes, que lêem o processo enquanto o réu responde à pergunta que lhe foi dirigida, e talvez por isto inclusive façam algumas perguntas sobre pontos que sabe-se serem mencionados no processo (nome completo, profissão, grau de escolaridade, antecedentes criminais) – como em uma audiência - ou façam perguntas sobre dados já mencionados no discurso do réu – ilustrado em outra audiência.

Esta questão do olhar merece ser discutida com mais detalhes. Em todas as cenas de audiências, acompanha-se o movimento do olhar dos réus ou testemunhas e juízes. Entende-se tal dispositivo a partir do que diz Xavier (1984, p.25): “As direções de olhares das personagens serão fator importante para a construção de referenciais para o espectador, e vão desenvolver-se segundo uma aplicação sistemática de regras de coerência”. Indica-se, portanto, que a direção do olhar das personagens é um foco de análise deste documentário;

2) não faz uma confusão entre usos na primeira e terceira pessoa ao se referir ao relato do ato criminoso (em uma cena, a Juíza inicia falando “segundo a Polícia, o senhor foi...” e depois passa, sem demarcação, a ler os autos policiais, quando passa a dizer “o indiciado...”, “o encrepado...”). Aliás, antes de lê-la, este Juíz costuma dizer “o senhor ouviu a acusação: que...” ou “eu estou lendo aqui que...”, demarcando que a acusação é uma baseada em uma hipótese, e não em uma pretensa verdade sobre o sujeito. Ele chega a dizer, por exemplo, “na visão deles (dos policiais), o senhor...”;

3) registra e investiga as divergências de um réu perante as informações apresentadas pela Polícia, bem como investiga algumas afirmações suportadas em pré-concepções verbalizadas por Policiais prestando informações como testemunhas (“o que é atitude suspeita?”, “porque não se arrolaram testemunhas”, “então a arma não estava com eles, mas em um beco que o senhor supõe que eles frequentam”);

4) chega a agradecer a testemunhas por prestarem informações e a dizer a uma testemunha (tia de um réu) para ficar tranquila, procurando acalmá-la;

5) explica os procedimentos inerentes à persecução criminal aos réus e familiares;

6) nas cenas de audiências presididas por este Juiz, não se usa o recurso do shot/reaction-shot, demarcando que a relação estabelecida por ele com os réus e testemunhas não é polarizada. A câmera quase nunca deixa de enquadrar o réu e o juiz. Diferentemente das cenas de audiências com outros juízes, em que a câmera, quase sempre, ora foca o réu, ora o Juiz. Sobre short-reaction, diz Xavier (1984, p.26):

Um caso fundamental de combinação entre câmera subjetiva e shot/reaction-shot é o do chamado campo-contra-campo, procedimento chave num cinema dramático construído dentro dos princípios da identificação. Seu ponto de aplicação máxima se dá na filmagem de diálogos. Ora a câmera assume o ponto de vista de um, ora de outro dos interlocutores, fornecendo uma imagem da cena através da alternância de pontos de vista diametralmente opostos (daí a origem da denominação campo-contra-campo). Com este procedimento, o espectador é lançado para dentro do espaço do diálogo. Ele, ao mesmo tempo, intercepta e identifica-se com duas direções de olhares, num efeito que se multiplica pela sua percepção privilegiada das duas séries de reações expressas na fisionomia e nos gestos das personagens

O documentário acompanha com mais detalhes o processo de dois réus, com o que parece procurar ilustrar estas duas maneiras prático-ideológicas da Magistratura relacionar-se com as pessoas dos réus: um julgado pela Juíza já mencionada, e outro por este Juíz. O primeiro, é condenado à privação de liberdade, pautando-se (conforme relata a juíza ao proferir a sentença) na personalidade tendente ao crime e anti-social e sem mencionar o crime pelo qual respondeu (furto). O outro, à prestação de serviços à comunidade com o propósito de desenvolvimento de reflexão sobre repercussões sociais do crime que cometeu (porte de substâncias ilícitas), conforme relata o próprio juiz ao proferir sua sentença.

Um dado que vai de encontro com a noção de que o filme procura analisar as relações estabelecidas pela Magistratura com as pessoas dos réus é a frequência com que a câmera, em determinados momentos das audiências, deixa de enquadrar as duas personagens principais das mesmas (o Juiz e o réu) para tomar em primeiro plano a reação do Juiz ou do réu ao que lhe foi dito pelo seu interlocutor (réu ou Juiz). Xavier (1984, p.25), fala da continuidade resultante da substituição de imagens de plano conjunto a um primeiro plano. Segundo o autor,

"da própria ação representada, surge uma solicitação que é atendida justamente por esta mudança de plano. Contendo nova informação necessária ao andamento da história, precisando a reação de uma personagem particular diante dos fatos, denunciando alguma ação marginal imperceptível para o espectador nos planos anteriores, o novo plano é sempre bem vindo, e sua obediência às regras de equilíbrio e motivação o transforma no elemento que sustenta o efeito de continuidade, em vez de ser justamente a ruptura."

Há de se mencionar uma seqüência que sintetiza a mensagem do filme: uma cena de um culto religioso frequentado pela mãe de um réu, durante o qual o pastor enfatiza que “Deus dará um basta em sua vida, em seu sofrimento”, sucedida por outra em que, na posse da Juíza aqui referida como Desembargadora, é dito ao Presidente do Tribunal, como forma de legitimar o rigor de suas decisões, “basta de medo, de submissão ao terror dos criminosos, senhor Presidente”.

Estas cenas podem ser associadas a outras que relacionam as justiças terrestre e divina. Uma delas é aquela em que uma cela é fechada após ali se colocar um réu e a câmera foca a insígnia “Polícia” nas costas daquele que tranca a cela, de forma que a imagem da cela é substituída pelo close desta palavra. Em seguida, o policial sai de cena, e o que fica em primeiro plano é o quadro de Jesus, atrás da cela.

A Defensora Pública diz à mãe de um réu, ao contar-lhe da decisão judicial, “fica com Deus”, não sem antes dizer que há possibilidade de recorrência, que nem tudo acabou[2]. Esta mesma mãe já havia dito a esta mesma Defensora, ao relatar que enquanto o filho respondia por crime anterior porque não puderam pagar o suborno a eles pedido por Policial houve um assassinato por traficantes de amigos de seu filho, que o “Policial fez mal, mas Deus fez bem”.

A mensagem, implícita (porque a diretora não narra ou apresenta fatos) e talvez mais presente justamente por assim apresentar-se,  parece ser a de que não há quase ninguém a recorrer quando falha a justiça divina. Ou, de que não há Deus na terra.


Notas e Referências:

[1] Quando uma Juíza aparece fora da sala de audiência, aparece em seu gabinete, acertando os detalhes de sua promoção para Desembargadora e preocupada com retirada de quadros e local para guardar a antiga toga. Outros personagens que aparecem como possuindo estabelecendo outros papéis que não os relativos a um processo criminal são a Defensora Pública e familiares de um determinado réu: ir ao banheiro, buscar filhos no colégio, alimentar-se, consultar médico, cuidar de filhos, locomover-se com carro ou ônibus, assistindo TV.

[2] Ela sai, a mãe chora e, ao conter-se, anda só pelo corredor em direção à rua. Mais uma vez, o recurso da sucessibilidade de imagens enquanto portador de mensagem.

AUMONT, J. (1995). A estética do filme. Campinas: Papirus. (Coleção Ofício de Arte e Forma)

JUSTIÇA. (2004). Direção: Maria Augusta Ramos.Roteiro: Maria Augusta Ramos. Produção: Jan de Ruiter, Luís Vidal, Niek Koppen, Renée van der Grinten. Distribuição: Videofilmes.

XAVIER, I. (1984). O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 155p.

XAVIER, I. (2003). O olhar e a cena: Melodrama, Hollywood, Cinema Novo, Nelson Rodrigues. Cosac & Naify. 384p.


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Maíra Marchi Gomes é doutoranda em Psicologia, mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e Psicóloga da Polícia Civil de SC.  

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Imagem Ilustrativa do Post: Justice // Foto de: Bill Tyne // Com alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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