Por Tiago Gagliano Pinto Alberto – 28/04/2016
Olá a todos!!!
Na coluna dessa semana, examinarei o inciso I do §1º do artigo 489 do NCPC, que assim explicita: “§1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: I. se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida.”.
Como já tive a oportunidade de mencionar em outro momento nesta mesma coluna, o artigo 489 do NCPC trouxe ao direito positivo alguns critérios de argumentação racional a balizar a elaboração de provimentos decisórios no ambiente judicante. Como também já salientado, o artigo é bem imperfeito e incompleto, tanto em nível semântico, como na forma como propõe os critérios a serem expostos pelo juiz ao momento da decisão. De todo modo, contudo, o só fato de apresentar elementos de argumentação racional e exigi-los para fins de configuração da validade dos provimentos decisórios já representa algo de positivo na conformação da legitimidade argumentativa no campo de atuação do Poder Judiciário.
O inciso I do §1º, objeto da análise desta semana, proíbe que, para fins de justificação racional e válida da decisão, o juiz simplesmente indique a norma – seja lá o que isso quer dizer, algo deveras intrincado no campo jurídico –, a reproduza ou estabeleça uma paráfrase. Ou seja: não poderá simplesmente: i) fazer alusão a um artigo para fins de alcançar determinado posicionamento decisório; ii) repetir os critérios e elementos jurídicos já expostos no artigo; ou iii) salientar, por outro modo, o que o artigo já estabelece para fins de fundamentação da decisão proferida. Acaso assim proceda, ter-se-á um provimento decisório carente de legitimidade argumentativa e, por este motivo, absolutamente nulo.
A proibição estabelecida pelo inciso em comento trata da denominada fundamentação por remissão à lei. Esta é a que se encontra vedada a teor da literalidade do inciso e acaso o juiz incorra em algum dos comportamentos mencionados. Cuidado, porém, caro leitor, com duas figuras aproximadas, ambas também vedadas, mas não mencionadas no inciso.
A primeira é a fundamentação per relationem, que é admitida como forma de fundamentação válida preponderantemente no direito administrativo e na composição de atos administrativos complexos de conteúdo decisório. Cogite-se, por exemplo, de uma decisão tomada por um gestor público fundamentada em parecer opinativo elaborado pela procuradoria jurídica do ente público, aprovado por mais de uma secretaria com as suas respectivas razões e que transitou por diversos meandros administrativos até que finalmente chegasse em suas mãos para decisão. Esta decisão, ultimada pelo gestor, representa o momento final de um ato complexo de conteúdo decisório integrado por diversos agentes e setores, de sorte que, tratando-se de ato único, não há problema que o decisor final faça alusão à fundamentação por outrem elaborada para consecução do mesmo ato. Isso, contudo, não ocorre em terreno jurisdicional, em que o ato decisório não é complexo no sentido administrativo do termo e, por isso, não admite sua divisão em setores ou agentes para fins decisórios. Seria até bem estranho que o juiz adotasse, na íntegra, o parecer elaborado pela sua assessoria para decidir em determinado sentido.
A segunda, caro leitor, é a fundamentação por remissão às peças já constantes dos autos. Esta, conquanto não se encontre vedada a teor do inciso I do §1º do artigo 489 do NCPC, encontra-se igualmente proibida pelo mesmo Codex, desde que se empreenda uma interpretação sistemática do ente normativo processual. Para comprovar o que se afirma, basta verifica o §3º do artigo 1.021, que assim dispõe: “É vedado ao relator limitar-se à reprodução dos fundamentos da decisão agravada para julgar improcedente o agravo interno”. Ao que se pode perceber, encontra-se vedado que o relator faça remissão a sua própria decisão para julgar agravo interno, deixando de analisar as razões recursais que animaram a interposição. Esta é a base normativa para, de acordo com uma interpretação sistemática, compreender que também se encontra proibida a fundamentação por remissão às peças constantes dos autos, ou seja, material decisório anteriormente figurante no campo processual, ainda que proferido pelo mesmo órgão prolator. Cuidado, portanto, com o que o inciso I do §1º do artigo 489 não diz, mas está igualmente vedado por identidade de conteúdo semântico.
Curiosa, no entanto, é a forma que o juiz deverá operar para atender ao que exige o mencionado inciso, ou seja, explicar a relação do “ato normativo” com a causa ou a questão decidida.
O conceito de “ato normativo” não ajuda muito. Ao contrário, é semanticamente vago e impreciso. Superando, todavia, a questão e com a (boa)vontade de compreender o que diz a lei, é possível cogitar que o juiz deva se utilizar de um artigo/lei/dispositivo apenas na medida em que logre explicar a sua relação com a causa ou questão decidida.
Como então deverá proceder? Qual tipo de explicação deverá o juiz procurar?
Imaginemos uma causa em que um motorista de uma empresa colidiu o veículo de propriedade da mencionada pessoa jurídica com um automóvel de terceiro. Supondo que o dano foi de autoria e provocado pelo motorista, temos um exemplo em que a relação a ser explicada pelo juiz para aplicação dos dispositivos legais que tratam da responsabilidade civil deve ser explicitada de diversas maneiras.
No tocante ao motorista, a obrigação de indenizar será gerada pela sua conduta direta e frontal; afinal, foi ele quem perpetrou a conduta e, por isso, gerou o dano. A relação que deverá ser mencionada pelo juiz, para atender ao contido no inciso em debate, será, portanto, preponderantemente fática, causal. Diversa, contudo, será a relação que motivará a responsabilização da empresa. Esta não será causal, mas sim eminentemente jurídica, já que a empresa ostenta culpa in eligendo pela escolha do motorista que causou o acidente. Assim, em que pese o motorista tenha atuado a serviço da empresa que o contratou, esta deverá ser responsabilizada apenas na medida em que a relação que a atrela ao terceiro prejudicado se dá pelo intermédio da conduta levada a cabo pelo motorista e, portanto, a partir de um vínculo jurídico que os une. Dessa forma, prepondera a relação de natureza jurídica, que deverá ser explicitada pelo juiz para fins de aplicação do artigo que prevê a reponsabilidade indenizatória.
Finalmente, pode ser que, em alguns casos, as relações causais e jurídicas cedam passo aos raciocínios de ordem mais pragmática, em que, por exemplo, ao juiz importem elementos consequencialistas – mas não somente estes – para resolução de determinada problemática. É o que se pode depreender das situações em que os impactos da decisão representam situação de acentuada importância para o conflito e a própria efetividade da prestação jurisdicional. Neste campo temático, a relação deverá ser explicitada no ambiente dos impactos, isto é, em nível mais pragmático.
Assim, para fins da correta aplicação do inciso I do §1º do artigo 489 do NCPC, assim deverá agir o juiz:
1. Identificar o texto normativo que serve de descarga argumentativa para a solução de determinado caso, apresentando seus elementos jurídicos essenciais;
2. Identificar se prevalece, entre esse texto normativo e o caso ou questão controvertida uma relação de ordem i) fática; ii) jurídica; ou iii) pragmática;
3. Descrever a incidência do dispositivo e elucidar a relação na forma como entendeu prevalecente.
Agindo dessa forma, acredito que a decisão atenderá ao escopo do inciso ora tratado.
Um grande abraço a todos. Compartilhem a paz!
Tiago Gagliano é Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor da Escola da Magistratura do Estado do Paraná (EMAP). Professor da Escola da Magistratura Federal em Curitiba (ESMAFE). Coordenador da Pós-graduação em teoria da decisão judicial na Escola da Magistratura do Estado de Tocantins (ESMAT). Membro fundador do Instituto Latino-Americano de Argumentação Jurídica (ILAJJ). Juiz de Direito Titular da 2ª Vara de Fazenda Pública da Comarca de Curitiba.
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