Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan
Na infâme carta escrita para celebração do golpe militar do dia 31 de março de 1964, o Ministro da Defesa, General Braga Netto, classifica a violenta tomada do Estado brasileiro como o “movimento de 1964”, não um golpe, mas a conclamação do interesse do povo brasileiro - que ele diz ter sido exposto por lideranças políticas, das igrejas, do segmento empresarial, de diversos setores da sociedade organizada e das forças armadas. Entendemos esse rol amplo de legitimadores da iniciativa militar, por isso mesmo historiadores chamam de “ditadura civil-militar”, tendo em vista reconhecer a filiação escusa de setores da sociedade civil com a caserna. Também, tratou a necessidade do “movimento” como parte de um contexto de ascensão de ideais “totalitários” pelo mundo, sendo a resposta militar no Brasil a alternativa para pacificação social, inclusive clamando méritos pelos direitos individuais reconhecidos após o governo militar. Ele “esqueceu”, é claro, que esse “movimento” permaneceu 21 anos sobre o poder do Estado, promoveu perseguições políticas por meio de atos institucionais autoritários, que fecharam o Congresso Nacional e tornaram a censura pŕevia à imprensa um hábito.
O caráter ideológico das afirmações do Ministro é notável, todavia, não é novidade na memória recente. O revisionismo histórico acerca da ditadura militar imposta em 1964 saiu da profundezas das masmorras de debate de certa extrema direita e tornou-se um discurso comum e engajado, mas não graças à Jair Bolsonaro - deputado federal desde 1991, até tornar-se Presidente da República, tendo como pauta principal de sua política a repetição do discurso de ódio, entre eles, o do revisionismo sobre a ditadura militar -, mas potencializado pelo engajamento digital nas redes sociais - lá, seja no Facebook, Twitter, Youtube ou outros, discursos como o espectro permanente do “marxismo cultural” ou que uma figura torpe como Brilhante Ustra (ou Doutor Tibiriçá) seja um injustiçado e possa revelar uma “verdade sufocada”, tornam-se pautas relevantes, que aproximam pessoas e robôs - sendo os bots uma figura importante para a formação de discursos políticos onlines[1], explorando bias de confirmação e de repetição das pessoas, potencializando certos discursos e tornando-os massivos.
Os algoritmos que regulam e movimentam tais plataformas buscam promover engajamento, ou seja, o maior e mais frequente uso desses sistemas. Por isso, alguns discursos de extrema-direita e teorias da conspiração, ao apelar para certas emoções, geram maior engajamento, vinculam e conectam mais pessoas. Entretanto, para o cientista político italiano Giuliano da Empoli, em seu livro “Os engenheiros do caos”, isso não é um acaso, mas um projeto de dominação dos mecanismos das redes sociais, promovendo por meio da desinformação e a utilização de bots a disseminar ódio, medo e influenciar eleições - e todos os outros aspectos da política. No Brasil, esse fenômeno é notável no caso dos “disparos em massa” nas redes sociais, financiados por diversos agentes interessados, promovidos em favor do então candidato à presidência em 2018, que continuaram após sua eleição - como explica o livro de Patrícia Campos Mello, “A Máquina do Ódio”. É preciso, portanto, pensar de forma crítica acerca de algoritmos, desvendando arranjos sócio-técnicos, iluminando os discursos que eles favorecem ou se associam[2].
Na sociedade de consumo de massa, a generalização da figura cidadão-consumidor borra a linha que dividiria escolhas de cunho político daquelas de consumo, principalmente para essas plataformas digitais geridas por algoritmos - como explica Sarah Barns em “Platform Urbanism” -, promovendo personalizações da experiẽncia do usuário de acordo com suas pesquisas e costumes, ou seja, de toda informação produzida pelo uso das aplicações. O uso constante, portanto, a produção de dados digitais de forma ubíqua se transforma em um mecanismo valioso para as corporações que detém os meios de gestão e processamento de dados - algo que Shoshana Zuboff chama de “capitalismo de vigilância, ao compreender o mecanismo econômico de extração de uma mais-valia do comportamento dos usuários, que retorna somente como melhoria nos serviços utilizados, enquanto às empresas é um ativo lucrativo, principalmente ao promover segurança para o mercado publicitário. Portanto, o maior uso, a quantidade de tempo entregue a produção de dados, é uma necessidade para esse negócio, sendo o engajamento permanente uma estratégia das plataformas.
Pautas políticas que suscitam emoções exacerbadas, ligadas à radicalidade política, por exemplo, geram maior engajamento - como é o caso das fake news promovidas pela extrema direita, um exemplo de usuários engajados e pautas com aderência[3] -, não por acaso que o Youtube conduz os usuários a vídeos radicais da extrema direita[4], fenômeno chamado de “rabbit hole”, compreendendo a dimensão do fluxo de recomendações do algoritmo da plataforma, dando ao usuário infindáveis horas de conteúdo, seja da qualidade ou conteúdo questionáveis. A formação de “bolhas” potencializa esses sentimentos, promovendo cada vez mais a adesão de outros, ou seja, os algoritmos dessas plataformas inflam essas bolhas, generalizando sentimentos políticos em um ponto comum - normalmente ligado à teorias da conspiração e discursos de ódio. E esses discursos tendem a sair das redes e tomar as ruas, como aconteceu no caso da exposição Queermuseu em Porto Alegre[5], no qual o conservadorismo e a militância digital se transformou em movimento violento e atentatório à liberdade de expressão e de arte.
A”Marcha da Família com Deus pela Liberdade” em 1964 simbolizou, nas ruas, a manifestação dos interesses militares e de setores conservadores contra uma suposta “ameaça comunista”, dando aderência à narrativa forjada que sustentou o golpe militar. Todavia, um novo golpe, apreciado como ideal pelo Presidente da República, seus filhos e o rol de generais que compõem seu governo, pode surgir por uma nova marcha - causada pela desinformação e a propagação de ideias radicalizadas como o revisionismo histórico da ditadura militar - difundida pelas redes sociais. Os constantes ataques ao direito à memória das vítimas da ditadura militar pela revisão ideológica da história parece ser a receita para que um golpe se repita, dando notícia pública do flerte de parte da sociedade com o autoritarismo, potencializado pela falta de discernimento das redes sociais e a falta de accountability sobre seus algoritmos. Embora, conforme tenha dito Boris Fausto que “é impossível negar os fatos”[6] sobre o golpe militar, as narrativas criadas nas redes sociais provam que sim, é possível forjar uma memória baseada em mentiras, que mobiliza certo saudosismo de um passado glorioso que nunca existiu - o “passado mítico” que descreve Jason Stanley em “Como funciona o fascismo”.
O revisionismo histórico à brasileira, que até mesmo atinge o ponto de nossos motins em redes sociais promoverem aulas sobre o nazismo aos alemães[7], que parece não ter limites em promover absurdos - escrotices em geral - é um movimento em curso, todavia, é preciso que os mecanismos que o impulsionam, de forma intencional ou não, sejam responsabilizados. A abertura das caixas-pretas algorítmicas é fundamental para a promoção de accountability pelas corporações digitais, por meio de auditabilidade e transparência que demonstre, claramente e para um público educado e crítico no assunto, como os algoritmos funcionam, para que possam ser estudadas alternativas à propagação violenta de desinformação estratégica, principalmente ao identificar os financiadores dos “disparos em massa” ou dos bots que fingem ser usuário legítimos, para assim revelar verdadeiras vontades e estratégias políticas por trás do engajamento das redes sociais - da mesma forma do golpe de 1964, sendo revelada a intervenção e o interesse externo, como relata, entre outros Flávio Tavares em “1964: O golpe”.
Notas e Referências
BARNS, Sarah. Platform urbanism: negotiating platform ecosystems in connected cities. Londres: palgrave macmillan, 2020.
EMPOLI, Giuliano da. Os engenheiros do caos: Como as fake news, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições. Tradução: Arnaldo Bloch. São Paulo: Editora Vestígio, 2019.
FORNASIER, Mateus de Oliveira. Democracia e tecnologias de informação e comunicação: mídias sociais, bots, blockchain e inteligência artificial na opinião pública e na decisão política. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.
KITCHIN, Rob. Thinking critically about and researching algorithms. Information, communication and society, v. 20, n. 1, p. 14-29, 2017. Doi: http://dx.doi.org/10.1080/1369118X.2016.1154087
MELLO, Patrícia Campos. A Máquina do ódio: notas de uma repórter sobre fake news e violência digital. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
PAULA, Leandro de; DOMINGUES, João. Feitos da bolha: conservadorismo e militância digital no caso Queermuseu. Revista Mídia e Cotidiano, v. 14, n. 3, p. 76-96, 2020.
STANLEY, Jason. Como funciona o fascismo: a política do “nós” e “eles”. Porto Alegre: L&PM, 2018.
TAVARES, Flávio. 1964: o golpe. Porto Alegre: L&PM, 2014.
[1] Ver: Fornasier (2020, p. 57-62).
[2] Ver, Kitchin (2017, p. 25)
[3] Ver em: https://gizmodo.uol.com.br/conteudos-enganosos-extrema-direita-engajamento-facebook/
[4] Ver em: https://theintercept.com/2019/01/09/youtube-direita/?utm_source=The+Intercept+Brasil+Newsletter&utm_campaign=1491d7ae4d-EMAIL_CAMPAIGN_25martati&utm_medium=email&utm_term=0_96fc3bd6d5-1491d7ae4d-133901449
[5] Ver: PAULA e DOMINGUES (2020).
[6] Ver em: https://apublica.org/2019/03/boris-fausto-sobre-o-golpe-de-64-e-impossivel-negar-os-fatos/
[7] Ver em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/09/13/politica/1536853605_958656.html.
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