Por Beatriz Vargas Ramos e Camila Cardoso de Mello Prando - 27/04/2016
A correção do rito não garante a constitucionalidade do processo de impeachment. O papel da Corte Constitucional não termina com a correção do rito e a indicação da competência.
Rito é, numa palavra, o “como” fazer. Tem a ver com a forma, a ordem e a sequência dos atos processuais. É o procedimento, o conjunto de normas que regulam o caminho a ser percorrido desde o início até o fim do processo. O processo é “meio” e o procedimento é “modo”. Todos os processos que têm como objeto o crime começam com a apresentação de uma acusação (pretensão acusatória) perante o órgão julgador competente, e, em condições normais, se desenvolvem até a decisão final, condenatória ou absolutória. É, como nas palavras de Aury Lopes Jr., uma “dinâmica orientada ao futuro”. Há processos, no entanto, que não têm futuro – e nem podem ter. Existem acusações (pretensões acusatórias) que não estão aptas a gerar decisão final, nem condenatória e nem absolutória. Que fique claro desde já: este é o caso do processo de impedimento que tramita contra Dilma Rousseff.
Claro que o rito é importante e sua não observância pode gerar nulidade, mas a forma não é tudo. A razão de ser do processo não é a forma e sim o conteúdo. A forma está a serviço do conteúdo, da finalidade – cumprimento das garantias constitucionais. O impeachment em curso contra a Presidenta Dilma, podemos afirmar, é apenas “forma à procura de um conteúdo”. É simples forma e, por si mesma, não garante a constitucionalidade do processo, ainda que observadas as delimitações feitas pelo STF. Falta-lhe conteúdo que se enquadre nas categorias de crime de responsabilidade previstas na Constituição (art. 85, CRFB).
Os fatos alegados na segunda denúncia assinada por Reale Júnior (de 15/10/2015, com “desistência expressa” da primeira peça acusatória), atraso no repasse de recursos ao Banco do Brasil no âmbito do Plano Safra e seis decretos não numerados de créditos suplementares ratificados pela Lei nº 13.199/15, não correspondem a nenhuma imputação típica de crime de responsabilidade – ainda que os tipos de crime de responsabilidade previstos na Lei nº 1.079/50 sejam abertos, imprecisos e de péssima técnica legislativa, e ainda que a própria Lei devesse ela mesma ser reavaliada diante da ordem constitucional em vigor.
A questão central apresentada pelo Advogado Geral da União, e não respondida pelo julgamento de pré-admissibilidade da Câmara dos Deputados realizado no dia 17 de abril último, é a seguinte: os fatos alegados na denúncia oferecida contra a Presidenta Dilma e constantes da decisão de seu recebimento por Eduardo Cunha correspondem a crime de responsabilidade?
Isso não é pouco, ao contrário, é o indicativo mais exuberante da aberração processual que se instalou no Congresso Nacional a partir do acatamento da denúncia firmada por Miguel Reale Júnior – como se a assinatura de uma autoridade no campo jurídico fosse suficiente para converter uma acusação em condenação.
A matéria vem sendo tratada tão somente sob a ótica do conceito de mérito processual e, embora seja certo que guarde relação com o mérito, com ele não se confunde e nele não se esgota e, por isso, comporta uma análise distinta.
Numa decisão condenatória, mesmo que entregue ao âmbito de competência do Senado – como é o impeachment, o mérito diz respeito à interpretação do ato materialmente comprovado em relação aos elementos que constituem o crime. Essa interpretação deve atender à categoria do injusto culpável e é feita por fases que correspondem aos conceitos jurídicos de ação, tipicidade, ilicitude e culpabilidade.
Acontece que, na teoria processual, inteiramente válida para a ação de impeachment, não se pode passar à análise final do mérito sem a verificação prévia e indispensável do que se convenciona chamar de “aparência de crime”. Antes de provar o ato – ou mesmo diante da prova do ato – é preciso responder se ele pode ser interpretado validamente como uma das definições legais de crime de responsabilidade. E assim deve ser em obediência à própria exigência constitucional de que não é qualquer ato que se adequa à definição jurídica de atentado à Constituição. A interpretação de “aparência de crime” é uma condição sem a qual não se pode chegar a uma decisão de mérito.
Os processualistas conhecem essa categoria jurídica como condição da ação. Se o processo é o “meio” e o rito é o “modo”, a aparência de crime é o “porquê”. Ora, o Congresso Nacional é competente para julgar crime de responsabilidade, logo, se os fatos alegados na acusação, desde o ponto de vista de sua correspondência com a hipótese legal abstrata, não podem ser interpretados validamente como crimes de responsabilidade, a própria competência do Congresso tem de ser afastada.
Por tudo isso, é um erro supor que o Supremo Tribunal Federal deve se limitar à análise do rito do impedimento. O fetiche do rito parece dominar a cena jurídica de uma maneira inédita, sem precedentes, impulsionado pelo massacre político da oposição derrotada. Este é, aliás, sob todos os aspectos, um caso sem precedentes: é a primeira vez que as chamadas “pedaladas fiscais” são criminalizadas; é a primeira vez que são criminalizados programas sociais. Nunca se deu tanta importância à forma em detrimento do conteúdo. Golpe é forma, não é conteúdo. É simulacro de processo, não é processo legal.
Até o momento, o STF não realizou o controle prévio da condição da ação, quando é certo que pode e deve fazê-lo, nos limites de sua competência, sem invasão da esfera de outro Poder da República, já que, para tanto, não precisa entrar no mérito da ação e proferir julgamento de natureza fático-probatória. Consumada a primeira fase do rito, por meio da decisão da Câmara dos Deputados e do consequente encaminhamento do processo ao Senado, mais uma vez, o STF deve ser chamado a cumprir seu papel de controle da legalidade e da garantia do processo democrático.
No dia 17 de abril, a Câmara dos Deputados não proferiu o juízo de admissibilidade que lhe competia, deixando de atender à exigência de motivação adequada ao prosseguimento do processo. Assistimos, perplexas, envergonhadas e indignadas, ao patético espetáculo promovido pelos Srs. Deputados Federais pró-impeachment. Os sentidos familistas e de fundamento religioso dominaram os votos, revelando, mais do que um arremedo de ignorância, uma expressão do discurso de restrição de direitos promovido pela Câmara. E tudo isso com uma nota especial de apologia à tortura e invocação do próprio torturador da Presidenta Dilma Rousseff. Não houve julgamento de admissibilidade da acusação. O que aconteceu na Câmara dos Deputados foi um vale-tudo, um ritual de linchamento político promovido pelo ódio ideológico. Um ato, que para além dos vergonhosos motivos expostos em rede nacional, assemelhou-se mais a uma cerimônia parlamentarista de voto de desconfiança do que a alguma coisa produzida nos parâmetros do sistema político presidencialista previsto na Constituição.
Se há um consenso de que a Suprema Corte deve zelar pelo devido processo legal, então não existe nenhuma propriedade na afirmação de que o exame quanto à presença da condição da ação está a salvo da análise constitucional. A definição de devido processo legal aplicada ao processo de impeachment passa necessariamente pela resposta quanto à satisfação da condição da ação (aparência de crime de responsabilidade) que, a um só tempo, determina a razão de ser do processo e firma a competência do Congresso Nacional para se ocupar do julgamento de mérito. A única maneira de dispensar o STF dessa análise é admitir abertamente a possibilidade de depor um Presidente com base em julgamento político – o que equivale à violação mais escancarada do sistema presidencial de mandato fixo.
Se o golpe parlamentar, para ser vitorioso, tem de passar por dentro do campo do direito, é por dentro do campo do direito que se deve mostrar suas fragilidades e sua verdadeira natureza, a de simulacro de processo. Manifestações recentes de alguns Ministros, dentro e fora do plenário da Corte, revelam que o Supremo Tribunal teria esgotado sua missão no exame da ritualística do impeachment. Caso essa posição venha a se consolidar, não há dúvidas de que o mecanismo político de deposição de um Presidente da República triunfará sobre as legítimas expectativas de cumprimento do devido processo legal.
. . Beatriz Vargas Ramos é Professora de Direito Penal e Criminologia da Universidade de Brasília - UnB. . .
. . Camila Cardoso de Mello Prando é Bacharel em Direito (UFPR), Mestre e Doutora em Direito Penal (UFSC). Professora de Criminologia e Direito Penal da UnB. . .
Imagem Ilustrativa do Post: Stairs // Foto de: Arnaud B. // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/ephoz/8847663285
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode
O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.