ALERTA SOBRE O USO ESTRATÉGICO DO DIREITO POR JUÍZES, PROCURADORES E PROMOTORES DE JUSTIÇA. UM EXCELENTE TEXTO DO PROFESSOR LÊNIO STRECK.  

02/10/2018

 

Colocando, nesta coluna, um excelente texto deste grande jurista, eu tenho como escopo primeiro homenagear o antigo companheiro e colega do Ministério Público, LÊNIO STRECK, bem como dar maior publicidade a este estudo teórico, que eu gostaria de ter escrito.

Abstract: juízes e membros do Ministério Público não podem fazer agir estratégico, isto é, não podem usar o Direito com desvio de finalidade. Agir estratégico é similar à lawfare.

Os ministros do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes e Dias Toffoli deram importante recado aos juízes e membros do MP do país. Primeiro, o ministro Gilmar, ao revogar a prisão (aqui) do ex-governador Richa (no bojo da ADPF 444), coloca um basta no uso estratégico[1] do Direito por juízes e membros do ministério público, ao menos no que toca ao uso indevido da prisão temporária.

Como venho dizendo, na esteira de autores como Dworkin, o Direito deve ser aplicado (por juízes e membros do MP) por princípios e não por políticas (ver mais aqui). O Direito não pode servir para atender a juízos de ocasião, consequencialismos, soluções movidas por desejos de “melhorar” as coisas pensando apenas num dado momento, sem atentar para o Direito como um todo íntegro e coerente, atropelando a institucionalidade e os compromissos jurídicos inegociáveis.

Implicitamente, o ministro exigiu que o Estado se portasse no direito processual penal de acordo com seus próprios princípios constitutivos. E, por linhas transversas, Gilmar aplicou o princípio da não surpresa previsto no artigo 10 do CPC.

Explico. No âmbito da ADPF 444, ficou decidido que não poderia haver conduções coercitivas. Para que existam, deve o indiciado antes ser notificado para ser ouvido. Só na recusa é que pode haver condução. Como está no CPP, aliás (pena que a decisão do STF veio tarde, porque mais de 300 pessoas já haviam sido vitimadas).

Na ADPF ficou decidido — e isso pareceu claro — que condução coercitiva é uma forma de prisão, uma forma de retirar a liberdade de alguém. Logo, o judiciário não pode agir de forma disfarçada para driblar a proibição de condução coercitiva.

Ou seja, o cidadão deve poder ter confiança nas instituições. Na impessoalidade que as caracteriza não há (ou não pode haver, pelo menos), “surpresas”. Justamente por isso, ele, o cidadão, deve poder saber que, se não estiver em flagrante e não estiverem presentes os requisitos de prisão (temporária ou preventiva), não pode ser preso. Portanto, ninguém pode ser surpreendido por uma estratégia judicial, substituindo algo que já foi proibido por um outro modo de agir.

Esse agir estratégico presente no caso Richa fere os princípios institutivos do devido processo legal, além de esmagar o “fair play”. Fere as expectativas legítimas sobre o que deve ser a atuação de um Estado Democrático de Direito, sobretudo no âmbito do processo penal. Trata-se de uma artimanha perigosa, uma interpretação espúria do direito para aumentar o poder coercitivo do Estado sobre o cidadão. O Estado não pode driblar o direito que ele mesmo produziu. Também para isso existem os princípios: para controlar as razões substantivas no uso da maquinaria coercitiva estatal. A máquina não pode se voltar maliciosamente contra os administrados.

Pois bem. Tudo isso tem importância prática. Minha crítica à atuação estatal que não respeita os princípios jurídicos vale também para o caso do uso de denúncia criminal contra o réu em momentos políticos e pedidos de que o juiz leia nas entrelinhas da prova e que aja com seu subjetivismo (caso Haddad). Escrevi sobre a questão neste mesmo espaço na semana passada (aqui).

Minha crítica — e creio que também as decisões do STF aqui referidas — também serve para conteúdos de delações obtidas “com exclusividade” por veículos de comunicação. Lembremos o estrago da “operação” carne fraca. E a operação que resultou na morte do reitor Cancelier. Observo que o CNJ e o CNMP estão tomando providências contra os (ab)usos de usos estratégicos do Direito (algo como “fins justificam os meios), como se pode ver também no caso da denúncia contra o reitor da UFSC, Ubaldo Balthazar e seu chefe de gabinete, nitidamente vítimas disso que estou aqui comentando.

Sigo. O segundo recado (aqui) veio do ministro Dias Toffoli, que disse que o juiz Moro tentou burlar o entendimento do STF fixado em acordão. Segundo Toffoli, a conduta de Moro consistiu em encaminhar, “sob a roupagem de corrupção passiva os mesmos fatos que o STF entendeu que poderiam constituir crime eleitoral”. O que é que o ministro condenou? Implicitamente, alertou para o uso estratégico do Direito penal e processual penal. Esse (ab)uso constitui uma quebra principiológica, como no caso anterior detectado pelo ministro Gilmar. Trata-se do drible da vaca no processo. É o fator Mazurkiewicz. Aliás, em termos de uso estratégico do Direito, o juiz Moro é professor. A diferença é que, nesse caso, seu AE foi detectado.

Eis uma boa pauta para a doutrina, que parece estar um pouco ou muito anestesiada com tudo o que está acontecendo — tem-se pronunciado pouco ou quase nada sobre o que está ocorrendo e, mais grave, não tem se manifestado sobre o que passou e sobre o perigo do que vem por aí, como se fosse difícil detectar-perceber as fortes ameaças (explícitas e veladas) à própria institucionalidade da democracia no entremeio da disputa eleitoral, com um desdém total pela Constituição). Faço um chamamento à doutrina. Nada acontece de graça. Tudo está encadeado. Há um ovo da serpente gestado, quentinho... Os omissos ajudam a chocá-lo com mais força que os comissos.

Temos de denunciar esse ovo. Destapá-lo. Descascá-lo como um palimpsesto, até chegarmos no cerne. Processo não é instrumento. Processo não pode depender do solipsismo do promotor ou do juiz. Processo é, antes de tudo, garantia. É a instituição que rege o procedimento para a adequada fundamentação decisória. Se se atropela isso, com o traço na surpresa, nega-se a ampla defesa e tudo vira estratégia de dominação, o que espanca a processualidade democrática. Aliás, o direito processual é democrático ou totalitário?

Preferi não entrar aqui na questão espinhosa da “boa fé” processual (que pareceu arranhada em ambos os casos pelos agentes estatais). Aos juristas que quiserem trabalhar esse ponto, fica a oportunidade e o desafios colocados pela prática (não sou eu quem coloco): delimitar, justificar, controlar o arbítrio estatal sem apelar para categorias que podem abrir para mais arbítrio ainda.

Quero dizer, em poucas palavras, que advogados podem e devem fazer agir estratégico. É de sua função. Já juízes e membros do MP devem agir por princípios (o Direito é o fórum do princípio, diz Dworkin), porque são agentes políticos do Estado. Têm responsabilidade política. E devem acountabillity. Possuem garantias das mais variadas (sem similar no mundo) exatamente para que possam agir por princípios e não por políticas. Sim, porque se promotores podem agir como advogados, abrindo mão da imparcialidade, e os juízes podem se engajar nas causas (veja-se o perigo do ativismo), já não haverá agentes políticos estatais. Teremos uma privatização das relações processuais, enfim, uma babelização do processo. Eis a tempestade perfeita para o arbítrio.

Como registro final, sugiro que a doutrina e a operacionalidade fiquem atentas e utilizem esses dois entendimentos que asseguram, no modo como expliquei, a garantia da não surpresa institucional e da vedação do agir estratégico (tipo “os fins justificam os meios”). Denúncias criminais e decisões judiciais tomadas sem prognose surpreendem o indiciado-réu e o seu advogado. Mutatis, mutandis, isso é similar ao que Dworkin chama de leis de ocasião. No caso, as decisões fustigadas pelos dois ministros são exemplos de decisões de ocasião. Incompatíveis com o Estado Democrático, mesmo que alguém diga, nestes tempos duros e difíceis, que “direitos humanos são só para humanos direitos” e que “a terra é plana”.

Post scriptum: Ministros criticam juízes que decidem baseados na moralidade (ler aqui).

Por analogia, poderia ter falado também da aguda admoestação que o presidente do STJ fez ao TJ de São Paulo. O link da notícia está no titulo deste PS. Por que a admoestação? Mutatis, mutandis, tudo se encaixa nas duas decisões comentadas acima. O TJ-SP, ao não aplicar a jurisprudência do STJ no tocante aos habeas corpus, viola o artigo 926 do CPC e, assim agindo, faz uma espécie de agir estratégico, o que gerou o protesto de advogados e a interferência verbal do presidente do STJ. E a crítica com relação às decisões por moralidade? Sou suspeito. Há quantos anos denuncio isso? Moral não corrige o Direito. Vamos levar quanto tempo para entender isso? E agora a coisa está piorando. Dia a dia. Tem até general dizendo que.... Bom, deixa prá lá. Qualquer dúvida, lembrem-se do filme O Ovo da Serpente.

Por último, só mais uma coisinha: foi bom o puxão de orelha que o presidente do STJ deu no TJ-SP. Resta saber quem vai puxar as orelhas dos ministros do STJ quando descumprirem seus próprios precedentes! O que os leitores acham?

E, para não deixar de fora, parece que o que está escrito até aqui nesta coluna também se aplica à não pautação das ADCs 43, 44 e 54 pela ministra Cármen Lúcia, quando os autores das ações e centenas de advogados clamavam pro isso. O Regimento Interno não pode conceder poder absoluto. Deve ter alguns princípios que o sustentam. Não teria sido um indevido agir estratégico do Direito de sua parte? A história é que responderá.

 

Notas e Referências

[1] Aqui homenageio a teoria habermasiana, que prestou grandes contribuições ao debate sobre o direito no Brasil, sobretudo na área processual judicial.

 

Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados.

 

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