Ainda sobre o artigo 212 do Código de Processo Penal – Por Paulo Silas Taporosky Filho

26/02/2017

A Lei n.º 11.690/2008 alterou substancialmente parte estrutural do Código de Processo Penal. Dentre as mudanças (que já não são mais recentes), encontra-se a redação do artigo 212, o qual foi alterado passando a prever que “As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida”. Assim, sedimentado na Constituição de 1988, reafirmou-se o sistema acusatório como orientador do processo penal brasileiro.

A questão merece tratamento, tendo em vista o fato de que parte da doutrina e do cotidiano forense analisa que tal mudança reflete apenas consequências irrelevantes no e para o processo. Diz-se assim das correntes doutrinárias que não entendem existir prejuízo quando do desrespeito à forma prevista, ou dos julgados que observam com indiferença os casos em que o procedimento previsto em lei é desrespeitado nas audiências, formando-se assim uma cultura de nostalgia prática no processo penal.

Antes de se apontar para os conflitos de tais pensamentos, destaca-se que duas foram as relevantes mudanças na redação do artigo 212 do Código de Processo Penal: a alteração do sistema presidencialista de inquirição de testemunhas para o sistema inglês, sendo aquele em que as perguntas das partes são feitas diretamente às testemunhas, inexistindo intermediação pelo juiz, e a alteração na ordem da realização das perguntas, já que o artigo em comento passou a prever em seu parágrafo único que ao juiz caberão perguntas complementares.

Nova ordem e novo modo de formulação de perguntas para as testemunhas previstas no Código de Processo Penal. A redação do dispositivo é clara e evidencia a reafirmação de que o sistema acusatório é que deve orientar o processo penal.

No entanto, como mencionado, em que pese o período transcorrido desde o início da vigência da Lei n.º 11.690/2008 até o presente momento, as divergências que se instauraram com relação à leitura do mencionado dispositivo ainda permanecem como brasas incandescentes. De um lado, os que fazem uma leitura mais escorreita e fiel da já não mais tão nova redação do artigo 212 do Código de Processo Penal, defendendo que, sendo a forma uma garantia, o cumprimento do procedimento como previsto deve se dar de modo preciso, tal qual na exatidão do que consta no texto do dispositivo. De outro, os que sustentam que a modificação se deu apenas com relação ao sistema de perguntas para as testemunhas (do presidencialista para o inglês), ou ainda que não entendem que eventual descumprimento ao formalismo contido na norma ensejaria em nulidade. Cumpre aqui, portanto, analisar as linhas defendidas sobre tal celeuma.

Sobre o ponto da mudança na ordem da inquirição das testemunhas, NUCCI (2012, p. 510) explana que “quem começa a ouvir a testemunha é o juiz, como de praxe e agindo como presidente dos trabalhos de colheita de prova. Nada se alterou neste sentido. [...] absolutamente nenhuma modificação foi introduzida no tradicional método de inquirição, iniciado sempre pelo magistrado”. Deste modo, para o renomado autor, a modificação do artigo 312 do Código de Processo Penal não teria alterado a ordem de quem pergunta primeiro para a testemunha: ainda permaneceria sendo o juiz o primeiro a fazer as perguntas e, posteriormente, as partes.

Contrariando o entendimento de NUCCI, em sua coluna no Conjur, STRECK (2013) assevera que com a leitura do dispositivo em comento a conclusão é a de que “Ali claramente está escrito que o juiz só pode fazer perguntas complementares quando da oitiva das testemunhas. Ali está inscrito o sistema acusatório. Juiz não faz prova. As partes é que fazem. Não é porque eu quero que seja assim. Simplesmente “está na lei”. O legislador, ao votar a nova redação do CPP, disse: não haverá mais inquisitivismo. Simples, pois”. No texto em questão, o notável jurista critica pontualmente a exposição de NUCCI, deixando claro que a alteração na ordem das perguntas ocorreu com o advento da Lei n.º 11.690/2008.

Já sobre a questão do sistema adotado pelo Código de Processo Penal na inquirição das testemunhas, parece haver consenso no sentido de que é o presidencialista aquele previsto em lei, até porque a redação é mais que cristalina neste sentido. Entretanto, neste ponto é outro o problema residente, a saber, o descumprimento da formalidade prevista no artigo em questão, seja com relação à ordem ou forma na colheita de depoimento das testemunhas, acarreta ou não em nulidade?

OLIVEIRA (2014, p. 423) leciona que a formalidade constante no artigo 212 do Código de Processo Penal se trataria de mera pedagogia procedimental, de modo que o desrespeito ao cumprimento do procedimento ali previsto não ensejaria em nulidade quando não houvesse prejuízo tangível ou evidente parcialidade do julgador.

Em linha diametralmente oposta, a lição de LOPES JR. (2012, p. 651) ao comentar as consequências da não mais tão nova redação do artigo 212 do Código de Processo Penal: “A mudança foi muito importante e adequada, para conformar o CPP à estrutura acusatória desenhada na Constituição que [...] retira do juiz o papel de protagonista da instrução. Ao demarcar a separação das funções de acusar e julgar e, principalmente, atribuir a gestão da prova às partes, o modelo acusatório redesenha o papel do juiz no processo penal, não mais como juiz-ator (sistema inquisitório), mas sim de juiz-espectador.”. LOPES JR. (2012, p. 1130) aduz ainda que na hipótese de descumprimento de forma prevista em lei, o prejuízo seria evidente, ensejando em nulidade, defendendo que “no processo penal, forma é garantia. Se há um modelo ou uma forma prevista em lei, e que foi desrespeitado, o lógico é que tal atipicidade gere prejuízo, sob pena de se admitir que o legislador criou uma formalidade por puro amor à forma, despida de maior sentido. Nenhuma dúvida temos de que nas nulidades absolutas o prejuízo é evidente, sendo desnecessária qualquer demonstração de sua existência”. Assim, entendendo não merecer razão a distinção existente entre nulidades relativa e absoluta, o autor preceitua que o não cumprimento à formalidade prevista em lei gera nulidade – sempre absoluta.

Diante de toda a exposição, tem-se que ainda reina certa divergência em alguns pontos acerca do artigo 212 do Código de Processo Penal. Entretanto, a conclusão que se faz é que a leitura mais adequada do dispositivo em questão é aquela que se demonstra como mais garantidora: são as partes que iniciam com as perguntas, cabendo ao juiz a realização de questionamentos complementares sobre os pontos não esclarecidos. Não obstante, tais perguntas devem ser realizadas pelas partes diretamente às testemunhas, não havendo qualquer motivo (nem previsão legal) para que estas sejam feitas ao juiz, para que então este as refaça à testemunha. Tal modo poderia ser viável (por mais que inadequado, vez que ausente a filtragem constitucional) somente até antes do advento da Lei n.º 11.690/2008. A partir de então, não há que se falar em sistema presidencialista no processo penal, tão menos na prevalência de um ranço inquisitório que se traduz quando o juiz inicia a inquirição das testemunhas. A readequação do sistema prevalecente no processo penal, buscando estar de acordo com a Constituição atual e vigente, é medida necessária, a fim de superar paradigmas já há muito ultrapassados, mas que insistem em pairar em muitos discursos no meios jurídico. A efetivação do sistema acusatório se dá com a observância não apenas dos grandes, mas também dos pequenos detalhes, até porque ao permitir um procedimento em que o juiz diligencie, de ofício, a prova trazida pelas partes, dá-se guarida a um sistema que é fundado pelo princípio inquisitivo, e, nos dizeres de LOPES JR. (2015, p. 160), “é tudo o que não se quer no atual nível de evolução civilizatória do processo penal”.


Notas e Referências:

LOPES JR., Aury. Fundamentos do Processo Penal: Introdução Crítica. São Paulo: Saraiva, 2015

LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 9ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2012

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 18ª Ed. São Paulo, Atlas, 2014

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 12ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.

STRECK, Lenio Luiz. Por que tanto se descumpre a lei e ninguém faz nada? Em <http://www.conjur.com.br/2013-nov-14/senso-incomum-tanto-descumpre-lei-ninguem-faz-nada>. Acesso em: 24 de fevereiro de 2017


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