Prosseguindo de onde interrompemos a exposição na primeira parte deste texto, é invulgar a repercussão da classificação do fato imputado na defesa, com a amplitude que lhe assegura a Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, inc. LV.[1]
A reação defensiva, na lição de Antonio Scarance Fernandes, é uma das vertentes do direito de defesa e se manifesta, no processo penal condenatório, como reação à acusação. Ainda segundo o autor, pode o réu optar por diversas estratégias defensivas, reagindo ao mérito, direta ou indiretamente, atacando a ação, sob o argumento da ausência de alguma de suas condições, ou questionando o processo, inquinando-o de vício em sua constituição ou desenvolvimento. De qualquer modo, enfatiza o insigne processualista a insuficiência do tratamento da reação contra o enquadramento típico: “É mister redesenhar o quadro existente, centrado na preocupação quase exclusiva com a reação defensiva ao fato, não se cuidando da reação à sua qualificação jurídica e sem se dotar o acusado de instrumentos para influir na pena a ser aplicada. É como se ao réu só interessasse a defesa tendente à absolvição, não lhe importando a qualificação do fato, a pena e a sua posterior execução.”[2]
E, adiante, complementa: “Pode ele [o réu] suscitar questão que imponha ao juiz o exame incidental da classificação posta pela acusação e erigir, como obstáculo intransponível, a análise da classificação antes da sentença, é impedir que o juiz possa decidir a questão, dando-se continuidade a uma situação que pode ser altamente danosa ao acusado, como a manutenção de sua prisão. Aferrar-se na orientação de que o juiz sempre está impedido de avaliar a classificação é dar ao Ministério Público o poder de, por meio de uma tipificação falha ou abusiva, ser o senhor de todos aqueles assuntos examinados – competência, prisão cautelar, liberdade provisória, procedimento – , dando-lhes o entendimento que, sozinho, julgue adequado.”[3]
Na defesa de mérito, a tipificação ostenta clara relevância, tal qual preleciona Aury Lopes Jr.: “É elementar que o réu se defende do fato e, ao mesmo tempo, incumbe ao defensor, também debruçar-se sobre os limites semânticos do tipo, possíveis causas de exclusão da tipicidade, ilicitude, culpabilidade, e em toda imensa complexidade que envolve a teoria do injusto penal. É óbvio que a defesa trabalha – com maior ou menor intensidade, dependendo do delito – nos limites da imputação penal, considerando a tipificação como a pedra angular onde irá desenvolver suas teses.”[4]
Weber Martins Batista, por sua vez, assevera que “a classificação incorreta dada aos fatos pode acabar prejudicando a defesa, que no processo penal – não se pode esquecer – não é apenas defesa, simples defesa, mas ampla defesa.”[5]
Interessante ainda é a advertência de Benedito Roberto Garcia Pozzer, para quem a “ampla defesa, para ser exercida em toda plenitude, implica permitir ao acusado a livre escolha de seu defensor, podendo eleger aquele que crê mais especializado, na defesa técnica da infração, pela qual é acusado, por exemplo. A errônea capitulação, com possibilidade de condenação final, por conduta diversa daquela descrita na denúncia ou queixa, poderá causar prejuízo ao acusado, que não pode selecionar o defensor mais preparado. Mais grave ainda ocorre, quando a acusação, para determinado tipo penal, possibilita meios defensivos não previstos para aquele considerado ao final, na sentença. Assim ocorrerá, quando alguém é acusado do cometimento de injúria (art. 140, do Código Penal), segundo a classificação acusatória; para, depois da instrução, ser condenado pelo crime de calúnia ou difamação (artigos 138 e 139, do Código Penal), tanto que narrados. Ninguém poderá negar os danos causados pela simples corrigenda do magistrado na sentença. Ora, se correta fosse a classificação da denúncia ou queixa, imputando-se calúnia ou difamação, o acusado poderia valer-se da exceção da verdade, ou da retratação, previstas no Código Penal, artigo 138, § 3º.; artigo 139, parágrafo único; e artigo 143. E, demonstrada a verdade dos fatos imputados à vítima, resultaria na absolvição, ou, com a retratação, poderia alcançar a isenção de pena, que lhe foram impedidas pela capitulação equivocada, restando nulo o processo, por não permitir a ampla defesa.”[6]
Resta evidente, portanto, que o réu não se defende apenas do fato imputado, mas, no curso da fase pré-processual e de todo o processo de conhecimento condenatório, também de sua classificação, que deve ser submetida a debate incidental, antes da sentença, sempre que puder implicar o indevido cerceamento da liberdade ou de outros direitos ou oportunidades do acusado.
Por outro lado, a emendatio libelli há que ser analisada sob a perspectiva da garantia do contraditório, além daquela da ampla defesa, o que impõe as sempre necessárias e prévias manifestações das partes – ou seja, do acusador e do réu, por seu defensor – em relação a ela, na instância originária ou na recursal.
Como se adiantou na primeira parte deste texto, o contraditório, na moderna tendência doutrinária, passou a integrar a própria concepção de processo. Ademais, deixou de ser visto nas limitadas expressões de ciência bilateral dos termos e atos do processo e possibilidade de contrariá-los, como deixou legado Joaquim Canuto Mendes de Almeida, ou de informação necessária e reação possível, na síntese de Sergio La China[7], para ser contemplado como garantia de participação em simétrica paridade no procedimento. O contraditório ganha um significado sobretudo político, pois confere ao processo jurisdicional uma face democrática, legitimando-o como instrumento para o exercício do poder estatal sub specie jurisdictionis. E o processo jurisdicional é assumido, a partir dessa ótica, como um microcosmo da democracia participativa.[8]
Assevera Aroldo Plínio Gonçalves que a “ideia da participação, como elemento integrante do contraditório, já era antiga. Mas o conceito de contraditório desenvolveu-se em uma dimensão mais ampla. Já não é a mera participação, ou mesmo a participação efetiva das partes no processo. O contraditório é a garantia da participação das partes, em simétrica igualdade, no processo, e é garantia das partes porque o jogo da contradição é delas, os interesses divergentes são delas, são elas os ‘interessados e os contra-interessados’ na expressão de Fazzalari, enquanto, dentre todos os sujeitos do processo, são os únicos destinatários do provimento final, são os únicos sujeitos do processo que terão os efeitos do provimento atingindo a universalidade de seus direitos, ou seja, interferindo imperativamente em seu patrimônio.”[9]
Assim, em regra, deve o contraditório anteceder qualquer provimento judicial capaz de ensejar a alguma das partes um gravame em sua esfera jurídica, sendo porém tolerada a sua postergação sempre que circunstâncias especiais impuserem a adoção de providências urgentes, sob pena de perecimento do direito ou interesse em exame.
Quanto às questões de direito, e especificamente no que concerne à emendatio libelli, não se vislumbra razão jurídica séria e plausível para que deixem de ser submetidas ao contraditório prévio à prolação da sentença ou do acórdão e precisem ser aventadas somente perante a instância superior, na via recursal, se houver descontentamento de alguma das partes com seu conteúdo. O contraditório deve ser observado pelas partes e pelo próprio órgão julgador, do qual se exige que evite a causação de surpresa a elas, não só em relação ao substrato probatório introduzido no feito, mas também no que toca à matéria de direito debatida.[10]
Veja-se que o CPC/2015 avançou sobremaneira nessa temática, dispondo seu art. 10 que o juiz “não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.”
Ora, tanto a acusação quanto a defesa têm nítido interesse na discussão da classificação do fato imputado. Tratando-se do Ministério Público, na ação penal de iniciativa pública ou mesmo na de iniciativa privada, porque incumbido da missão de zelar pela integridade da ordem jurídica e pelos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127, caput, da CF/1988) e da tarefa de fiscalizar a execução da lei (art. 257, inc. II, do CPP/1941), que se traduzem basicamente, no processo penal condenatório, na busca da adequada reconstrução histórica do episódio ilícito e do justo exercício do jus puniendi. Tratando-se do querelante, na ação penal de iniciativa privada, porquanto se reconhece hodiernamente ao ofendido, na persecução criminal, além de um interesse civil, o interesse na justa punição do culpado. Em ambas as situações, o justo apenamento pressupõe o correto enquadramento legal, com as respectivas balizas repressivas mínima e máxima. A defesa, finalmente, em vista das muitas repercussões que a tipificação apresenta sobre a esfera jurídica do réu ou investigado, analisadas à saciedade anteriormente.
Acrescente-se que deve ser repelida a ingênua crença de que o magistrado, ao convocar as partes à manifestação sobre eventual desclassificação da conduta reportada na denúncia ou queixa, estaria prejulgando o mérito ou comprometendo sua imparcialidade, pois, se assim fosse, nunca poderia ele analisar incidentalmente a adequação típica para solucionar questões processuais, o que é admitido até pelas correntes doutrinária e jurisprudencial “ortodoxas”.[11]
As partes devem ter garantida a oportunidade de colaborar e influir, em igualdade de armas, na construção do provimento jurisdicional que incidirá imperativamente sobre suas esferas jurídicas, por se tratar de indeclinável exigência democrática. Ademais, forçoso reconhecer que, por vezes, se não lhes for assegurada a participação antes da prolação da decisão, carecerão elas de instrumentos idôneos para efetivamente reverter o julgamento desfavorável. Pense-se, por exemplo, na emendatio libelli levada a cabo na fase recursal ou em processo de competência originária de tribunal. Tal quadro é especialmente preocupante para a acusação, pública ou particular, que, para impugná-la, contaria em regra, quando muito, com os embargos de declaração (arts. 619 e 620 do CPP/1941) e com o recurso especial (art. 105, inc. III, alíneas a e c, da CF/1988). A defesa, além deles, poderia eventualmente se valer dos embargos infringentes (art. 609 do CPP/1941) e do recurso extraordinário (art. 102, inc. III, da CF/1988), bem como sempre teria à sua disposição o remédio heroico do habeas corpus (art. 5º, inc. LXVIII, da CF/1988 e arts. 647 e 648 do CPP/1941).
Registre-se que o contraditório prévio sobre a emendatio libelli já foi algumas vezes ensaiado no Brasil. Com efeito, foi tratado no art. 356, caput e § 1º, do Anteprojeto de Código de Processo Penal da lavra do Professor José Frederico Marques, no art. 415 do PL 663/1975 e no art. 356 do PL 1.655/1983, ambos elaborados aproveitando as contribuições do citado Anteprojeto[12], assim como no PL 4.207/2001, cada um com sua peculiar disciplina. Deles, apenas o último restou aprovado, com várias modificações, e se converteu na Lei 11.719/2008, a qual alterou parcialmente o CPP/1941, mas trouxe poucas mudanças ao art. 383, que se mantém silente no que tange à necessidade de manifestações das partes antes da correção da classificação do fato imputado operada na sentença condenatória.
Em acréscimo, o Código de Processo Penal Militar vigente (Decreto-lei 1.002/1969) estabelece em seu art. 437, alínea a, que o Conselho de Justiça poderá dar ao fato definição jurídica diversa da que constar da denúncia, ainda que, em consequência, tenha de aplicar pena mais grave, desde que aquela definição haja sido formulada pelo Ministério Público em alegações escritas e a outra parte tenha tido a oportunidade de respondê-la, mostrando-se salutar a sua aplicação analógica ao processo penal condenatório comum, pois exigida pela garantia do contraditório e expressamente autorizada pelo art. 3º do CPP/1941.[13]
Destarte, e em síntese, antes de retificar o enquadramento legal consignado na exordial acusatória, o órgão judicante, ainda em decisão interlocutória, há que revelar tal possibilidade para as partes, instando-as a se pronunciarem a respeito e a ofertarem seus argumentos, contra ou a favor da nova adequação típica. Dita cautela é dispensável se o próprio acusador, em qualquer fase do procedimento, v.g., por emenda à inicial, nas alegações finais ou em razões recursais, aventar a mudança, visto que a defesa dela terá ciência e poderá contrariá-la a contento nas suas oportunidades de manifestação.
O postulado jura novit curia, que alegadamente subjaz à emendatio libelli, não serve como óbice à necessidade desse contraditório prévio.
Impende ressaltar que o jura novit curia não parece ser um princípio, como usualmente referido pela doutrina e pela jurisprudência, mas sim um verdadeiro postulado normativo aplicativo, que, na lição de Humberto Ávila, consiste em uma norma imediatamente metódica que institui os critérios de aplicação de outras normas situadas no plano do objeto da aplicação, qualificando-se portanto como metanorma ou norma de segundo grau.[14]
Como norma sem envergadura constitucional que é, e dentro da compreensão escalonada do ordenamento jurídico, encontra-se subordinada aos ditames da Lei Maior, entre os quais se destaca, in casu, a garantia do contraditório (art. 5º, inc. LV), e deve por conseguinte receber interpretação conforme.
Outrossim, o jura novit curia não tem incidência absoluta e irrestrita. A título exemplificativo, frise-se que o Supremo Tribunal Federal exclui a sua aplicabilidade na instância extraordinária, autolimitando-se no que concerne à apreciação de questões não enfrentadas de modo expresso na decisão recorrida.
Não se olvide, também, que o jura novit curia parte de uma ficção jurídica, que não raro é “desmentida” empiricamente. Ora, o julgador é um ser humano, e portanto é falível. O sistema jurídico contemporâneo exibe enorme e inédita complexidade, inclusive no campo penal, não obstante os operadores do Direito devessem poder se guiar sem maiores dúvidas com espeque na garantia da legalidade penal (art. 5º, inc. XXXIX, da CF/1988; art. 1º do CP). A inflação legislativa e a profusão de tipos penais em branco ou estruturados com elementos normativos retiram em grande medida a certeza na aplicação do Direito e impõem, consequentemente, para remediar essa insegurança, um diálogo construtivo entre os sujeitos processuais.
Finalmente, a acrítica assimilação do postulado abre espaço para perigoso autoritarismo judicial, calcado no subjetivismo, no solipsismo e no voluntarismo do magistrado, e, numa postura desrespeitosa, faz tábula rasa dos conhecimentos, das qualificações técnico-jurídicas e das contribuições dos demais profissionais da área jurídica que atuam no processo.
Voltando os olhos ao PL 8.045/2010[15], que pretende instituir um novo Código de Processo Penal em nosso país, é de se notar que a disciplina da emendatio libelli não recebe qualquer avanço relativamente ao que hoje preceitua o art. 383 do CPP/1941. De fato, o art. 496 do aludido PL, que corresponde ao dispositivo vigente, reproduz quase literalmente o seu teor e, em consequência, não soluciona os problemas que cuidamos de apontar neste breve estudo.
À guisa de encerramento, deixamos aqui nossas observações com o desejo de contribuir para uma compreensão constitucionalmente adequada da emendatio libelli e para um possível aperfeiçoamento do seu regramento no quiçá vindouro CPP.
Notas e Referências
[1] A primeira parte deste texto foi publicada aqui no Empório do Direito em: data. Disponível em: link.
[2] FERNANDES, Antonio Scarance. A reação defensiva à imputação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 26, 29-30, 35.
[3] FERNANDES, Antonio Scarance. A reação defensiva à imputação, cit., p. 228-229.
[4] LOPES JR., Aury. Direito processual penal: e sua conformidade constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. v. 2. p. 380.
[5] BATISTA, Weber Martins. Direito penal e direito processual penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 163.
[6] POZZER, Benedito Roberto Garcia. Correlação entre acusação e sentença no processo penal brasileiro. São Paulo: IBCCRIM, 2001. p. 152-153.
[7] Apud BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Correlação entre acusação e sentença. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 29.
[8] Cf. ABREU, Pedro Manoel. O processo jurisdicional como um “locus” da democracia participativa e da cidadania inclusiva. 2008. 544 f. Tese (Doutorado em Direito) – Curso de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2008. p. 440.
[9] GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992. p. 127.
[10] Cf. BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Correlação entre acusação e sentença, cit., p. 32-33.
[11] FERNANDES, Antonio Scarance. A reação defensiva à imputação, cit., p. 234.
[12] Cf. TORNAGHI, Hélio. Instituições de processo penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1978. v. 4. p. 417; BATISTA, Weber Martins. Direito penal e direito processual penal, cit., p. 163; e BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Correlação entre acusação e sentença, cit., p. 213-215.
[13] Cf. FERNANDES, Antonio Scarance. A reação defensiva à imputação, cit., p. 234-235; e BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Correlação entre acusação e sentença, cit., p. 163.
[14] Cf. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 124.
[15] Para a elaboração deste trabalho, consultou-se a versão mais recente do Projeto de novo CPP, trazida no substitutivo apresentado em 26 de abril de 2021 pelo Deputado João Campos, relator da Comissão Especial criada na Câmara dos Deputados para proferir parecer sobre o PL 8.045/2010. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_pareceres_substitutivos_votos?idProposicao=490263. Acesso em: 31 jan. 2022.
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