Agosto Lilás e os efeitos da violência doméstica e familiar contra as mulheres na vida de crianças e adolescentes

09/08/2022

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

Desde 2016, o mês de agosto passou a ser denominado de “agosto lilás” em alusão ao aniversário da Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha. Maria da Penha, sofreu duas tentativas de feminicídio, praticadas pelo seu então companheiro. Na primeira tentativa, Maria levou um tiro que a deixou paraplégica e, na segunda, ele tentou eletrocutá-la. Os efeitos dessa violência são os mais diversos e perversos, inclusive porque Maria da Penha travou uma verdadeira batalha judicial para que o que aconteceu com ela fosse reconhecido, o que só aconteceu depois que o Brasil foi responsabilizado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em 1998, devido à omissão e morosidade processual, além de um conjunto de arbitrariedades cometidas.

A barbárie cometida contra ela – e consequentemente contra as suas filhas – não é um caso isolado. Todos os dias, mulheres são vítimas de violência (física, psicológica, sexual, patrimonial, moral) e muitas delas são praticadas por pessoas próximas: companheiros, ex-companheiros, pais, tios, irmãos, filhos. A violência doméstica e familiar contra as mulheres (VDFM) é considerada uma grave violação dos direitos humanos e muitas pesquisadoras/es tratam esse fenômeno como algo pandêmico, pois atinge todas as sociedades, adquirindo especificidades/particularidades em cada contexto.

Como enfrentamento a realidade e após a responsabilização do Brasil pela CIDH, surge a Lei Maria da Penha, que é uma legislação bastante elogiada, por entender que apenas a responsabilização do autor da violência não dá conta de alterar esse cenário. Portanto, a Lei estabelece uma série de medidas de proteção e assistência, consolidando uma rede de proteção e garantia de direitos, a partir de um trabalho intersetorial. Além disso, essa legislação tem contribuído para mudanças importantes, como o reconhecimento de que a violência doméstica não é um crime de baixo potencial ofensivo, que pode ser resolvido com o pagamento de multas e cestas básicas. Pelo contrário, a violência doméstica é fruto de uma estrutura machista/patriarcal que reafirma a posição inferior das mulheres em relação aos homens.

Para termos uma noção dessa problemática, vejamos alguns dados. O Datafolha junto ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) realizou a pesquisa “Visível e Invisível – a vitimização de mulheres no Brasil”, em 2019, e identificou que o número de mulheres tocadas ou agredidas fisicamente por motivos sexuais chega a mais de 4,6 milhões. Em 2018, os dados mostraram que, a cada hora, 536 mulheres sofreram agressão física. Já o relatório construído pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), vinculada à Organização das Nações Unidas (ONU), com base em dados de 2017, apontou que 40% de todos os assassinatos de mulheres registrados no Caribe e na América Latina ocorreram no Brasil, fazendo com que o Brasil ocupe o 5º lugar no ranking de violência contra as mulheres.

Recentemente o Fórum Brasileiro de Segurança Pública – FBSP (2022), publicou novo relatório apontando que somando os anos de 2020 e 2021, 2.695 mulheres foram mortas pela condição de serem mulheres. No que se refere às mortes, também não é novidade que as mulheres negras têm duas vezes mais chances de sofrer uma violência letal intencional (VLI) ou feminicídio, em contraposição às mulheres brancas: enquanto 37,5% das vítimas de feminicídio são brancas, 62% são negras; nas demais mortes violentas intencionais, 70,7% são negras e apenas 28,6% são brancas.

Esse dado, torna muito evidente a imbricação da raça/cor na violência contra as mulheres, isto é, a situação é ainda mais crítica e perversa com relação às mulheres negras, que estão mais expostas e vulneráveis a situações de violência, não só pela condição de gênero, mas também de raça/etnia e classe social. Por fim, quando analisamos os autores dessa violência, nos casos de feminicídio, o principal autor é o companheiro ou ex-companheiro da vítima (81,7%), seguido de parente (14,4%)[1].

Esse último dado, não é surpresa, mas é importante na nossa reflexão. Explico. Propomos uma reflexão sobre como a VDFM afeta a vida de crianças e adolescentes ao se depararem com essa violência dentro de casa, com a sua família. Nesse sentido, o papel da família entra em conflito com o que é esperado e construído socialmente, que é o lugar de proteção e cuidado aos seus membros. Esse conflito se reflete na forma como esses/as sujeitos/as vão internalizar o conteúdo socioafetivo e cognitivo sobre cuidado, amor, respeito, confiança, entre outros. Queremos afirmar que, não se trata de analisar o fenômeno da violência doméstica a partir de uma relação direta em que crianças e adolescentes que sofreram ou testemunharam violências ao longo dos seus desenvolvimentos vão automaticamente reproduzir essa experiência/comportamento, mas de lançar luz sobre os sentidos e significados construídos sobre violência, família, amor, cuidado, ao longo dessas trajetórias infantis.

Ou seja, além da situação preocupante de que mulheres são vítimas de violência e de feminicídio pelo “simples” fato de ser mulher, essa violência produz crianças e adolescentes órfãos. São as vítimas indiretas e, muitas vezes, invisíveis, pois não se fala sobre elas e não existe uma política pública que dê assistência e promova cuidado a esses/as sujeitos/as que estão em condição peculiar de desenvolvimento. De acordo com Saffioti (1999), a violência de gênero – incluindo a familiar e doméstica –, não ocorre aleatoriamente, mas deriva de uma organização social de gênero que privilegia o masculino.

A pesquisa sobre Condições Socioeconômicas e Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, realizada em 2016 pela Universidade Federal do Ceará (UFC) em parceria com o Instituto Maria da Penha, revelou que, em média, cada mulher vítima de feminicídio, em decorrência de violência doméstica, deixa dois órfãos, sendo que em 34% dos casos, o número de órfãos é maior ou igual a três. Já com relação às agressões físicas, 55,2% relataram que seus filhos/as testemunharam tais agressões, pelo menos uma vez, e 24,1% deste grupo de mulheres apontaram que os/as filhos/as também foram agredidos/as.

De acordo com Minayo (2001) e reafirmada por outras/os estudiosas/os, a violência contra crianças e adolescentes pode ser compreendida como “todo ato ou omissão cometidos por pais, parentes, outras pessoas e instituições, capazes de causar dano físico, sexual e/ou psicológico à vítima” (p. 92). Nesse sentido, a ação ou omissão pode ser praticada tanto por um adulto, principal cuidador, quanto pelo Estado e sociedade, que, ao não reconhecer crianças e adolescentes como sujeitos/as de direitos e em condição peculiar de desenvolvimento – como sinaliza o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) –, deixa de cumprir com sua função protetiva.

A violência está presente das mais diversas formas na vida de crianças e adolescentes, desde a violência estrutural – que incide sobre a condição de vida desses/as sujeitos/as, a partir de decisões histórico-econômicas e sociais, que os/as deixam mais expostos/as à violações de direitos e em situação de vulnerabilidade socioeconômica, afetando o crescimento e desenvolvimento (Minayo, 2001) – à violência intrafamiliar, passando por dispositivos que reproduzem, naturalizam e banalizam esse fenômeno, como a mídia, a polícia, e outras instituições.

Nesse sentido, pensar e agir para enfrentar a VDFM é urgente, para que se garanta a vida das mulheres e para que se impeça crianças e adolescentes de perderem suas principais referências. Essas mulheres são, muitas vezes, chefes de família, responsáveis pelo cuidado e renda da casa e, ao serem mortas, deixam desamparadas crianças e adolescentes. O poder público precisa avançar na criação de políticas públicas que deem suporte a esses/as sujeitos/as, considerados/as vítimas indiretas da violência que, em muitos casos, presenciou a perda da mãe e/ou as constantes violências sofridas por elas.

É inegável que esse fato gera repercussões e efeitos na vida de crianças e adolescentes, ainda que não seja nosso objetivo analisar essas questões, podemos refletir sobre alguns pontos. Como já mencionado, a perda da mãe devido ao feminicídio é um evento traumatizante, repleto de conflitos que se intensificam se o autor dessa violência for alguém do convívio desses sujeitos/as, como o pai, padrasto, namorado, ex-namorado, pois podem surgir emoções e sentimentos conflitantes, uma vez que a pessoa pela qual ele/a nutre afeto é a mesma pessoa que retirou a mãe da vida deles/as.

Jung e Campos (2019) citam uma pesquisa realizada por Almeida (2016) em que se aponta a dificuldade encontrada por crianças e adolescentes que ficaram órfãos de falar sobre a morte/perda da mãe. A autora também revela que é como se a experiência traumatizante fosse guardada em uma “caixinha” distante na memória, separada das demais experiências.

Precisamos entender a violência doméstica e familiar como estrutural, o que implica o reconhecimento de que existe uma base material, sustentada pelo machismo/patriarcado, capitalismo e racismo, que hierarquiza as relações de produção e reprodução da vida, sujeitando grupos específicos a uma vida/existência repleta de ausência, omissões, desigualdades. As instituições, ao reproduzir essa lógica desigual – do ponto de vista da classe, gênero e raça – também se tornam violentas para com esses grupos. Nesse sentido, superar a violência contra crianças e adolescentes e garantir o desenvolvimento pleno dessas/es sujeitos significa a superação de uma sociabilidade machista/patriarcal, racista e capitalista, pois de outro modo, é impossível ter essas garantias.

Agosto lilás precisa ser mais do que uma campanha para dar visibilidade ao tema da violência doméstica e familiar contra as mulheres. Todos os meses precisam ser “agosto lilás”, na medida em que precisamos falar sobre esse tema nos mais variados espaços e contextos: escola, família, instituições religiosas, câmaras municipais, assembleias legislativas, mídia e demais espaços de sociabilidade. Em um período de tantas incertezas, crises e instabilidades, precisamos construir respostas coletivas que enfrentem os discursos de ódio contra as mulheres, pessoas negras, pessoas LGBTQIA+, alardeados por representantes do poder público, possibilitando a viabilidade de outros horizontes, livre de violência contras as mulheres.

 

Notas e Referências

Almeida, K. (2016). Orfandade por violência doméstica contra a mulher. Uma pesquisa biográfica. Civitas, 16(1), p. 20-e35.

CEPAL: Al menos 2.795 mujeres fueron víctimas de feminicidio en 23 países de América Latina y el Caribe en 2017. Disponível em: . Acesso em 10mar.2019.

Jung, V. F.; Campos, C. H. (2019). Órfãos do feminicídio: vítimas indiretas da violência contra a mulher. Revista de Criminologias e Políticas Criminais, 5(1), 79-96.

Lei n.º 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília, 13 de julho de 1990.

Minayo, M. C. S. (2001). Violência contra crianças e adolescentes: questão social, questão de saúde. Revista Brasileira de Saúde Materno-Infantil, 1920, 91-102.

SAFFIOTI, Heleieth I. B. Já se mete a colher em briga de marido e mulher. São Paulo em perspectiva, v. 13, n. 4, p. 82-91, 1999.

[1]  Aqui vale lembrar que, de acordo com a Lei nº 13.104/2015, é considerado feminicídio quando o crime ocorre em razão da condição de sexo feminino – o inciso 2 aponta que: considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: violência doméstica e familiar; e menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

 

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