Reconhecendo que em um Estado Constitucional a liberdade é a regra, o constituinte originário estabeleceu que “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança” (CF, art. 5º, inc. LXVI). Desse modo, nenhuma autoridade poderá prender (recolher à prisão) ou manter preso um cidadão quando a liberdade provisória for possível.
Diante dessa regra, o legislador da recente reforma das medidas cautelares no Processo Penal pátrio tratou da matéria, inclusive indo além da regulamentação originária do Código de Processo Penal.
Com efeito, a fiança, antes da Lei nº 12.403/2011, era essencialmente uma medida de contracautela, cuja finalidade era restaurar a liberdade de locomoção de alguém preso em flagrante (art. 310, caput, inc III; art. 322, caput e par. único, todos do CPP).
Além disso, a competência (administrativa e jurisdicional) para arbitrá-la era estabelecida a partir da natureza da pena do crime que ensejou a prisão em flagrante. Se a pena fosse de detenção, a autoridade poderia estabelecê-la. Se de reclusão, somente ao juiz caberia arbitrá-la.
Com a reforma, além de sua originária natureza contracautelar, a fiança passou a ter também natureza de medida cautelar autônoma, alternativa à prisão, nos termos do novel art. 319, inc. VIII, do CPP.
Está com a razão, pois, Gustavo Badaró, ao afirmar que, “com a sistemática instituída pela Lei nº 12.403/2011, a fiança passou a ter natureza híbrida, podendo ser tanto uma medida cautelar autônoma, quanto uma contracautela à prisão”1.
Outra mudança que importa aqui destacar diz respeito ao novo critério diferenciador da competência para arbitrar a fiança, que deixou de ser a qualidade da pena e passou a ser a quantidade de pena.
Com efeito, a redação anterior do art. 322 do CPP previa que a autoridade policial poderia arbitrar a fiança nos crimes punidos com detenção ou prisão simples. Por outro lado, de acordo com a nova redação do art. 322 do CPP, “A autoridade policial somente poderá conceder fiança nos casos de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 4 (quatro) anos. Parágrafo único. Nos demais casos, a fiança será requerida ao juiz, que decidirá em 48 (quarenta e oito) horas”.
A primeira ressonância da nova regulamentação, na atividade do delegado de polícia, foi a ampliação do leque de crimes afiançáveis pela autoridade policial, já que a grande maioria dos crimes punidos com detenção possuem pena máxima em abstrato de até 3 (três) anos. No Código Penal, por exemplo, apenas um crime é punido com pena de detenção maior que 4 (quatro) anos, que é o infanticídio (art. 123), cuja pena máxima em abstrato é de 6 (seis) anos de detenção. Neste caso, o delegado de polícia não mais poderá arbitrar a fiança.
A Lei nº 12.403/2011 resolveu elencar os crimes inafiançáveis, os mesmos já previstos na Constituição Federal, agora de forma sistemática.
Assim, nos termos do art. 323, são inafiançáveis os seguintes crimes: a) racismo; b) tortura; c) tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins; d) terrorismo; e) crimes hediondos; f) crimes cometidos por grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático. Nestas hipóteses, a inafiançabilidade é absoluta, por ser em razão da natureza do crime.
Além dessas hipóteses, o legislador descreveu outras que, embora se tratando de crimes afiançáveis, algumas circunstâncias o tornam inafiançáveis. São hipóteses que poderíamos chamar de inafiançabilidade relativa ou circunstâncias de inafiançabilidade.
Tais circunstâncias estão previstas no art. 324 do CPP, a saber: a) quebra, no mesmo processo, da fiança anteriormente concedida; b) descumprimento, sem justo motivo, de qualquer das obrigações previstas nos arts. 327 e 328 do CPP; c) nos casos de prisão civil ou militar; e d) quando estiverem presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva.
Excluídas as hipóteses de inafiançabilidade anteriormente referidas, e sendo o crime punido com pena máxima em abstrato de até 4 (quatro) anos, o delegado de polícia, após a lavratura do respectivo auto de prisão em flagrante, arbitrará a fiança ao autuado, desde de que, por óbvio, não estejam presentes os motivos que justificam a prisão preventiva (art. 324, inc. IV, do CPP).
O valor da fiança arbitrada pela autoridade policial poderá variar de 1 (um) a 100 (cem) salários mínimos, nos termos do art. 325, inc. I, do CPP.
Para determinar o valor exato a ser arbitrado, o delegado de polícia levará em consideração, segundo o que dispõe o art. 326, do CPP: a) a natureza da infração; b) as condições pessoais de fortuna e vida pregressa do autuado; c) as circunstâncias indicativas de sua periculosidade; e d) o provável valor das custas processuais.
A depender das condições econômicas do autuado, o delegado de polícia poderá, nos termos do art. 325, § 1º, do CPP: a) reduzir a fiança até o máximo de 2/3 (dois terços); aumenta-la até 1000 (mil) vezes; ou c) dispensá-la.
Sobre a dispensa da fiança, é importante destacar que a disciplina do art. 326, § 1º, inc. I, do CPP, faz expressa referência ao art. 350 do CPP, o qual, por sua vez, refere-se apenas ao juiz, e não ao delegado de polícia, como autoridade que pode dispensar a fiança. Diante disso, questiona-se: afinal, pode a autoridade policial dispensar a fiança, quando as condições econômicas do autuado assim recomendarem?
A doutrina diverge sobre o tema. Vidal Gomes (2011, p. 467), por exemplo, entende que somente o juiz pode dispensar a fiança. Assim, nas palavras desse autor, “quanto à dispensa da fiança na hipótese prevista no art. 350 do Código de Processo Penal, a competência para sua concessão neste caso é apenas do juiz, conforme expressamente disposto”2.
Outro não é o entendimento de Estulano Garcia e Estulano Pimenta (2009, p. 107). Segundo estes doutrinadores, “afiançável o crime, se o réu não tiver condições de pagar a fiança, por ser juridicamente pobre, poderá ser concedida liberdade provisória sem fiança, mas com as vinculações próprias da fiança. Mas somente o juiz poderá conceder a liberdade provisória”3.
Não obstante o magistério de tão significativos doutrinadores do direito policial, pensamos de modo diverso. Entendemos que o art. 350 do CPP deve ser aplicado, por analogia, como autorizado pelo art. 3º do mesmo código, tudo com o fim de dar maior eficácia aos direitos fundamentais do imputado.
O respeito aos direitos fundamentais do cidadão é dever de toda autoridade e seus agentes, não havendo espaço imune a suas ressonâncias. Partindo dessa premissa, não haveria qualquer razão, lógica ou jurídica, para que o delegado de polícia fosse impedido de dispensar a fiança, quando a situação econômica do autuado assim recomendasse, mas estivesse autorizado a aumentá-la e reduzi-la. Pensar de outro modo seria reforçar, ilegitimamente, a já institucionalizada seletividade penal, onde quem pode pagar, livra-se solto, e quem não pode, permanece preso, embora seja possível a concessão de liberdade provisória, independente de fiança, e até mesmo mediante a aplicação de outras medidas cautelares alternativas ao cárcere. De todo modo, a hipossuficiência do autuado não pode ser soterrada, mormente quando evidente a desnecessidade da manutenção de sua prisão.
Na mesma linha, Flaviane Barros e Felipe Machado (2011, p. 72-73) 4, assim se manifestarem sobre o tema: “Tendo em vista a compreensão de que o juiz não é o único intérprete autorizado do direito (HÄBERLE, 1997), bem como o fato de a interpretação acerca da privação da liberdade do cidadão deve ser sempre mais favorável à conservação do status libertatis, tem-se que a autoridade policial poderia conceder liberdade provisória, com a respectiva dispensa da fiança, nos termos do art. 350 do CPP. Ademais, tem-se que a miserabilidade do cidadão não pode impingir-lhe a prisão por mais tempo do que ocorreria em se tratando de um cidadão rico”.
Para André Nicolitt (2014, p. 797-798): “A prisão em flagrante destina-se à sua conversão em prisão preventiva. Em caso de pena não superior a 4 anos, o juiz não poderia decretar a prisão, não sendo razoável recolher o indiciado ao cárcere até que o juiz o isente do recolhimento, nos termos do art. 350 do CPP. Por tal razão, sustentamos que a própria autoridade policial poderá dispensar a fiança e colocar o réu em liberdade”.
Assim, o delegado de polícia poderá dispensar a fiança e conceder liberdade provisória ao autuado, se assim recomendar sua condição econômica, devendo fazê-lo em despacho fundamentado. Entretanto, ao fazer isso, a autoridade policial imporá ao autuado as obrigações previstas nos arts. 327 e 328 do CPP (MARCÃO, p. 749-750)5.
Atendo a esse entendimento, o 1º Congresso Jurídico dos Delegados da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, realizado nos dias 17 e 18 de novembro de 2014, editou o Enunciado nº 6, com o seguinte teor: “o delegado de polícia poderá, mediante decisão fundamentada, dispensar a fiança do preso, para não recolhimento ao cárcere do indiciado pobre”.
Na hipótese de a autoridade policial se recusar ou retardar a conceder a fiança, haverá constrangimento ilegal, podendo o autuado, ou alguém em seu lugar, prestá-la, por simples petição, junto ao juiz competente, o qual terá o prazo de 48 (quarenta e oito) horas para decidir, nos termos do art. 335 do CPP. O momento ideal para essa decisão é a audiência de custódia.
Notas e Referências:
1 BADARÓ, Gustavo Henrique. Medidas cautelares alternativas à prisão preventiva: comentários aos artigos 319-350 do CPP, na redação da Lei 12.403/2011. In: FERNANDES, Og. Medidas cautelares no processo penal: prisões e suas alternativas. São Paulo: RT, 2011, p. 258. Para NICOLITT, André. Manual de processo penal. São Paulo: RT, 2014, p. 794, a fiança concedida pelo Delegado de polícia não possui natureza de medida cautelar ou contracautelar, mas de garantia real, ou seja, natureza civil/administrativa.
2 GOMES, Amintas Vidal. Manual do delegado: teoria e prática. 6. ed. Revista e atualizada por Rodolfo Queiroz Laterza. Rio de Janeiro: Forense, 2011.
3 GARCIA, Ismar Estulano; PIMENTA, Breno Estulano. Procedimento policial: inquérito policial e termo circunstanciado. Goiânia: AB, 2009.
4 BARROS, Flaviane de Magalhães; MACHADO, Felipe Daniel Amorim. Prisão e medidas cautelares. Belo Horizonte: Del Rey, 2011.
5 MARCÃO, Renato. Curso de processo penal. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 749-750, entende não ser possível a aplicação das condições dos arts. 327 e 328 do CPP quando a fiança for dispensada por hipossuficiência econômica do autuado, já que a liberdade provisória sem fiança do abastardo não se vincula a tais condições. Segundo o autor, devem ser aplicadas as medidas cautelares dos arts. 319 e 320 do CPP que forem adequadas e necessárias..
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