Afinal, pode o adolescente ser responsabilizado quando o imputável, nas mesmas circunstâncias, não o seria? (Parte 2)

29/07/2017

Por Bruno Taufner Zanotti e Cleopas Isaías Santos – 29/07/2017

Leia também: Parte 1Parte 3

1 Considerações iniciais

Conforme dissemos na última coluna, as Diretrizes de Riad devem servir de norte hermenêutico do Direito Infracional, seja no âmbito material, seja no processual, não sendo admissível nem legítimo que um adolescente seja punido quando, nas mesmas circunstâncias, o imputável não o seja. Neste particular, portanto, deve haver um tratamento isonômico.

As consequências da não responsabilização do adolescente a quem se atribui a autoria de ato infracional quando, nas mesmas circunstâncias, um imputável não seria responsabilizado, seja por razões de direito penal material (excludentes de tipicidade, de ilicitude ou culpabilidade; prescrição, p. ex.,), seja por razões processuais penais (representação da vítima, p. ex.,), ou ainda, por questões de política-criminal, são as mais variadas.

Nesta oportunidade, contudo, iniciaremos a abordagem dos aspectos processuais mais próximos à atividade do Delegado de Polícia.

2 Exercício do direito de queixa ou de representação pela vítima

A primeira grande consequência desse tratamento isonômico é o reconhecimento, também no âmbito infracional, do direito de queixa e de representação da vítima de um ato infracional.

Ora, sabe-se que, em alguns casos, o Estado deixou a cargo do ofendido a decisão de dar início, ou mesmo proceder diretamente, à responsabilização do autor de um fato criminoso, através dos institutos jurídicos conhecidos como direito de queixa ou de representação, respectivamente nos crimes de ação penal privada e pública condicionada à representação (arts. 24 a 39 do CPP e arts. 100 a 104 do CP).

Contudo, o ECA não tratou sobre a ação penal nos atos infracionais. Somente o fez em relação aos crimes praticados contra crianças e adolescentes (art. 227), no seguintes termos: “os crimes definidos nesta Lei são de ação pública incondicionada.”

Não obstante tal omissão, devemos entender que o direito de queixa e de representação pertence à vítima de uma conduta prevista como crime, independente do nome que se lhe atribua: se crime ou ato infracional.

Portanto, também nos casos de atos infracionais análogos a crimes de ação penal privada ou pública condicionada à representação, caberá exclusivamente à vítima manifestar a vontade de dar início à responsabilização do respectivo autor. Desse modo, a autoridade policial somente poderá agir, formalizando algum procedimento, após o requerimento ou a representação da vítima.

Do contrário, teríamos que admitir a irracional solução jurídica para a hipótese da prática de uma conduta descrita como crime de ação penal privada ou pública condicionada à representação, praticada em coautoria por um imputável e um adolescente. Caso a vítima não desejasse que os autores fossem responsabilizados, ainda assim o adolescente o seria, enquanto que o imputável seria beneficiado por esta medida de política criminal.

É nesse sentido a doutrina, coerente e acertada, de Nereu Giacomolli, para quem, nos procedimentos apuratórios de atos infracionais, “não podem ser alijadas as soluções consensuais contidas na Lei 9.099/95 (composição civil, diálogo acerca da medida a ser aplicada e suspensão condicional do procedimento) e na legislação especial que determina a aplicação específica dessas medidas (Lei Antidrogas, por exemplo), sempre que a punição à criança ou ao adolescente for pior que o adulto, em iguais condições, receberia”[1].

Na mesma senda é o magistério de Saraiva, que assim se manifesta: “Ora, se a Lei 9.099/95 estabelece certas condições de procedibilidade que implicam que certas condutas não serão punidas se praticadas por adulto (a reconciliação, em uma construção restaurativa, ou a ausência de interesse em processar o agente causador do dana, vg.) evidentemente que tais preceitos devem ser estendidos ao adolescente, sob pena de se o (sic) o tratar de forma mais desfavorável que o adulto”[2].

Por fim, para limitarmo-nos apenas a poucos, importa destacar o entendimento de Morais da Rosa e Maria Christina Lopes, os quais, depois de exaustivamente demonstrarem que o direito da infância e da juventude, na sua versão mais alienada, está indissociavelmente ligada à doutrina da Escola Positivista, asserem que, “Para ela (Escola Positivista), pouco importava, por exemplo, a manifestação da vítima nos casos de ações penais privadas ou condicionadas à representação porque queriam repreender a todos, na linha do Direito Infracional Máximo. [...] Entretanto, conforme a regra prevista no Código Penal (art. 100), necessária a manifestação expressa da vítima e/ou de seu representante para que somente então o Ministério Público congregue legitimidade”[3].

Infelizmente não é este o entendimento predominante no discurso do Judiciário, sendo ainda raras as decisões que corajosamente contrariam o entendimento majoritário. Vale a pena conferir a seguinte ementa, da lavra do então Des. Geraldo Prado, do TJRJ: “EMENTA: APELAÇÃO. LEI 8.069/90. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. ATO INFRACIONAL ANÁLOGO AO CRIME DE LESÃO CORPORAL SIMPLES. RETRATAÇÃO DA VÍTIMA, QUE PERDOOU O OFENDIDO (sic) E EXPRESSAMENTE INFORMOU SEU DESEJO DE NÃO PROSSEGUIR COM O PROCESSO. REPRESENTAÇÃO CARENE DE UMA CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE. NULIDADE DO PROCESSO DESDE O RECEBIMENTO DA REPRESENTAÇÃO”[4].

Por outro lado, lamentavelmente, ainda temos o entendimento jurisprudencial predominante no sentido de que a ação sócio-educativa é de natureza pública incondicionada, podendo o Ministério Público, portanto, promovê-la independente da manifestação de vontade da vítima. Este entendimento jurisprudencial baseia-se exclusivamente no texto do ECA, sem qualquer esforço hermenêutico.

Nesse sentido, manifestou-se reiteradamente o STJ: “EMENTA: HABEAS CORPUS. ECA. ATO INFRACIONAL EQUIPARADO AO CRIME DE AMEAÇA. DESNECESSIDADE DE REPRESENTAÇÃO DA VÍTIMA. APLICAÇÃO DA MEDIDA DE INTERNAÇÃO POR PRAZO INDETERMINADO. REITERAÇÃO INFRACIONAL. INDICAÇÃO DE SETE ATOS ANTERIORES. ART. 122, II, DO ECA. HIPÓTESE AUTORIZATIVA. ILEGALIDADE NÃO CONFIGURADA. ORDEM DENEGADA. 1. O Estatuto da Criança e do Adolescente, nos artigos 171 e seguintes, que tratam da apuração de ato infracional atribuído a adolescente, não impõe a necessidade de representação da vítima como condição de procedibilidade da ação, registrando somente que, apresentado o menor a quem se atribua a autoria de ato infracional, caberá ao Ministério Público promover o arquivamento dos autos, conceder a remissão ou representar à autoridade judiciária para a aplicação de medida socioeducativa (arts. 180, 182 e 201, II). 2. Portanto, o procedimento de apuração de ato infracional é sempre de iniciativa exclusiva do Ministério Público, a quem cabe decidir acerca da propositura da ação sócio-educativa, independentemente da manifestação do ofendido. […]”[5]

Podemos notar, sem dificuldades, que esse entendimento mostra-se claramente prejudicial ao adolescente, o qual acaba por sofrer a censura estatal quando um adulto, nas mesmas circunstâncias, não sofreria. Urge, assim, uma mudança dessa ideologia punitivista infracional! Enquanto isso não acontece, a conta fica a cargo dos adolescentes, “sem defensores, sem direitos e vilipendiados constantemente pelos democratas de fachada”[6].

3 Ato infracional de menor potencial ofensivo

Outra consequência inarredável daquele tratamento isonômico é a redefinição dos atos infracionais, à semelhança do que já existe em relação aos crimes, tendo como parâmetro não mais a existência de violência ou grave ameaça à pessoa, como é feito pelo próprio legislador do ECA (art. 173), mas o seu potencial ofensivo. A permanecer como está, necessariamente esbarraríamos em incontornável ofensa aos direitos fundamentais do adolescente, que estaria sendo punido quando o imputável não o seria. Vejamos uma hipótese.

Imaginemos, outra vez, a situação da prática de uma lesão corporal leve por três jovens, dos quais, um é adolescente. Ao serem pegos em situação flagrancial, são todos levados até a delegacia de polícia, onde são devidamente reconhecidos pela vítima, a qual manifesta o desejo de que se proceda à apuração daquele fato.

Diante disso, o delegado responsável pelo caso depara-se com a seguinte solução legal: em relação aos dois imputáveis, deverá lavrar um termo circunstanciado e liberá-los em seguida, já que se trata de um crime de menor potencial ofensivo. Em relação ao adolescente, contudo, deverá lavrar um auto de apreensão em flagrante de ato infracional, vez que praticado mediante violência. Embora legal, não parece a solução jurídica mais adequada.

Propomos, diante disso, que o critério adotado pela Lei nº 9.099/1995 para distinguir as infrações penais de menor potencial ofensivo seja utilizado também para o Direito Infracional.

Desse modo, deve ser considerado ato infracional de menor potencial ofensivo a conduta descrita como crime com pena máxima não superior a 2 (dois) anos ou contravenção penal.

Este mesmo critério deverá ser adotado para a definição do procedimento a ser formalizado, inclusive na esfera policial. Assim, a partir do critério aqui sugerido, na situação hipotética acima descrita, a participação do adolescente seria apurada por meio de um boletim de ocorrência circunstanciado, e não por meio de um auto de apreensão em flagrante de ato infracional, como sugere o ECA.

4 Internação cautelar de adolescente

Como já mencionado, o adolescente autor de um ato infracional só poderá ter sua liberdade restringida em duas hipóteses: ou em apreensão em flagrante ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente. Este, aliás, é o teor do art. 106 do ECA: “Nenhum adolescente será privado de sua liberdade senão em flagrante de ato infracional ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente”.

A restrição da liberdade do adolescente, por ordem judicial, pode decorrer ou de uma sentença definitiva, através da qual se lhe é aplicada uma medida socioeducativa restritiva de liberdade, ou de forma cautelar.

Segundo a sistemática do ECA, para que o adolescente seja apreendido cautelarmente, é necessário que fique demonstrado na decisão o fumus comissi actus infracional (prova da materialidade e indícios suficientes de autoria) e a imperiosa necessidade. Com efeito, de acordo com o art. 108, caput, a “internação, antes da sentença, pode ser determinada pelo prazo máximo de quarenta e cinco dias”. E o parágrafo único do mesmo artigo dispõe que “a decisão deverá ser fundamentada e basear-se em indícios suficientes de autoria e materialidade, demonstrada a necessidade imperiosa da medida”.

Entendemos, porém, que, além do fumus comissi actus infracional, a medida cautelar restritiva da liberdade do adolescente só poderá ser decretada nas hipóteses que legitimam a prisão preventiva[7]. Ou seja, devem ser levados em conta os mesmos pressupostos, finalidades e hipóteses de cabimento da preventiva.

Além disso, a imperiosa necessidade deve ter como parâmetro o não cabimento de outra(s) medida(s) cautelar(es) alternativas ao cárcere, previstas no art. 319 do CPP.

Por fim, mesmo que seja decretada a internação cautelar do adolescente infrator, entendemos que o juiz deverá substituí-la pela internação domiciliar sempre que o adolescente infrator encontrar-se em alguma das hipóteses dos incisos II, III e IV do art. 318 do CPP, ou seja, quando o adolescente for: a) extremamente debilitado por motivo de doença grave; b) imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade ou com deficiência; c) gestante a partir do 7o (sétimo) mês de gravidez ou sendo esta de alto risco.

Do contrário, estar-se-ia admitindo a restrição de um direito fundamental tão importante como é a liberdade do adolescente quando o adulto, nas mesmas circunstâncias, não a teria.

De todo modo, o prazo máximo da internação provisória do adolescente será de 45 (quarenta e cinco) dias. O descumprimento injustificado desse prazo configura crime, tipificado nos arts. 234 e 235 do ECA.


Notas e Referências: 

[1] GIACOMOLLI, Nereu José. Juizados especiais criminais: lei 9.099/95. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 239.

[2] SARAIVA, João Batista Costa. Compêndio de direito penal juvenil: adolescente e ato infracional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 231.

[3] ROSA, Alexandre Morais da; LOPES, Ana Christina Brito. Introdução crítica ao ato infracional: princípios e garantias constitucionais. Rio de Janeiro: Lumens Juris, 2011, p. 209, p. 254.

[4] TJRJ, 5ª CCr, AP. 2008.100.00174, Rel. Des. Geraldo Prado, julgamento em 24.07.2008.

[5] STJ, 5ª Turma, HC nº 160292/MG, Rel. Min. Jorge Mussi, DJe de 02/06/2011. No mesmo sentido: STJ, 6ª Turma, RHC 15617/GO, Rel. Min. Paulo Medina, DJ 20 de 20/06/2005;

[6] ROSA, Alexandre Morais da; LOPES, Ana Christina Brito, op. cit., p. 258.

[7] No mesmo sentido, por todos, cf. SARAIVA, João Batista Costa, op. cit., p. 102; e Salomão. Sistema de garantias e o direito penal juvenil. São Paulo: RT, 2008, p. 175.


Bruno Taufner ZanottiBruno Taufner Zanotti é Doutorando e Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Pós-graduado em Direito Público pela FDV. Professor do curso de pós-graduação Lato Sensu em Direito Público da Associação Espírito-Santense do Ministério Público. Professor de cursos preparatórios para concurso público nas áreas de direito constitucional, penal e processo penal. Diretor Jurídico da ADEPOL-ES e SINDEPES. Delegado da Polícia Civil do Estado do Espírito Santo. Coordenador pedagógico do Projeto Delegado (www.projetodelegado.com.br). 


Cleopas Isaías Santos. Cleopas Isaías Santos é Mestre e Doutorando em Ciências Criminais pela PUCRS. Professor de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB. Professor de Pós-Graduação latu sensu em diversas instituições. Pesquisador da Fundação de Amparo à Pesquisa e Desenvolvimento Científico do Maranhão – FAPEMA. Delegado de Polícia.


Imagem Ilustrativa do Post: We’re all a bad guy somehow // Foto de: Ahmad Hammoud // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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