Afinal, pode o adolescente ser responsabilizado quando o imputável, nas mesmas circunstâncias, não o seria? (Parte 1)

26/07/2017

Por Bruno Taufner Zanotti e Cleopas Isaías Santos – 26/07/2017

Leia também: Parte 2, Parte 3

1 Considerações iniciais

Apesar de parecer óbvia a resposta à pergunta formulada, a análise de algumas situações práticas podem revelar certa complexidade por trás dessa questão, merecendo, portanto, uma atenção por parte dos aplicadores do direito, em especial, do delegado de polícia, por ser o que primeiro toma contato com o adolescente a quem se atribui a prática de um ato infracional.

Comecemos por evidenciar uma diretriz (é verdadeiramente apenas uma diretriz, sem força normativa!) estabelecida pela Resolução 45/112, de 14.12.1990, das Nações Unidas – Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinquência Juvenil, que ficou conhecida como Diretrizes de Riad. Em seu art. 54, temos a seguinte orientação político-infracional: Com o objetivo de impedir que se prossiga à estigmatização, à vitimização e à incriminação dos jovens, deverá ser promulgada uma legislação pela qual seja garantido que todo o ato que não seja considerado um delito, nem seja punido quando cometido por um adulto, também não deverá ser considerado delito, nem ser objeto de punição quando for cometido por um jovem.

Este dispositivo deve ser considerado, segundo nosso entendimento, o fio condutor e norte para uma séria reestruturação da dogmática e da política infracional, com todas as consequências que dele possam ser extraídas, seja no âmbito material, seja no processual.

De forma direta e breve, a resposta à pergunta inicial deve ser não, sob pena de afronta a diversos direitos fundamentais do adolescente, amalgamados ora em normas princípios ora em normas regras.

Definitivamente, “a criança e o adolescente não podem ser tratados pelo Estado em situação de inferioridade à resposta dada ao maior de 18 anos”[1], na feliz conclusão de Nereu Giacomolli. Ou, de outro modo, “um adolescente somente pode ser acusado, processado e sancionado por fatos que ensejariam, de igual forma, o funcionamento do sistema penal de adultos”[2] E acrescentaríamos: igualmente só poderão ser investigados quando os adultos imputáveis, nas mesmas circunstâncias, também o seriam.

Mas esta opção exige invariavelmente uma reestruturação do modo como o Direito Infracional é hoje aplicado. Por absoluta impossibilidade de desenvolver o tema de uma só vez, por razões que extrapolam os limites desta coluna, dividiremos a abordagem, iniciando pelos aspectos materiais.

2 Estrutura dogmática do ato infracional: tipicidade, antijuridicidade e censurabilidade

O próprio legislador do Estatuto resolveu dizer o que se deve considerar ato infracional, fazendo-o de forma referida. Assim, nos termos do art. 103, considera-se ato infracional toda conduta descrita como crime ou contravenção penal.

Apesar de o texto expresso do citado artigo referir-se a conduta descrita, o que pode levar a uma apressada interpretação de que é suficiente a mera tipicidade da conduta, assim não deve ser. Ao contrário, entendemos que a conduta, para ser considerada ato infracional, além de típica, deve ser antijurídica e censurável, como explicaremos a seguir.

A estrutura dogmática do conceito de ato infracional deve ser análoga à do conceito analítico de crime, não havendo qualquer razão lógica para que seja diverso, sob pena de se estar responsabilizando um adolescente por uma conduta que, se praticada por um adulto, este não o seria. Desse modo, a conduta praticada pelo adolescente deve ser típica, antijurídica e censurável.

A tipicidade deve ser entendida com todo o potencial garantista que se lhe reserva, ou seja, a partir da compreensão de que uma conduta somente poderá ser assim considerada quando descrita expressa e previamente em lei estrita, escrita, certa e com clareza, quando for antinormativa e ofensiva a um bem jurídico-penal digno e necessitado[3] de tutela penal do Estado.

Desse modo, condutas bagatelares ou insignificantes; condutas fomentadas ou exigidas pelo Direito, como as traduzidas pelo exercício regular de direito ou pelo estrito cumprimento de um dever legal; condutas que afetem exclusivamente valores morais, etc., não podem ser consideradas como legítimos atos infracionais, nem tampouco merecem a guarida estatal. Incidem, portanto, as mesmas excludentes da tipicidade dos crimes. Somente assim poder-se-á falar em um Direito Infracional Mínimo ou de ultima ratio, como sugerem Morais da Rosa e Ana Christina[4] na esteira de Ferrajoli.

Sobre o tema, aliás, a Segunda Turma do STF assim se manifestou: SEGUNDA TURMA. Ato infracional e princípio da insignificância. A Turma deferiu habeas corpus em que se pretendia a extinção de procedimento judicial de aplicação de medida sócio-educativa a menor inimputável, instaurado em razão da prática de ato infracional equiparado ao crime de furto. Salientou-se, de início, que, embora a impetração se insurgisse contra decisão monocrática proferida por Ministro do STJ que indeferira o pleito liminar aduzido perante aquela Corte, fazia-se necessária a superação da Súmula 691/STF, ponderadas as particularidades do writ. Em seguida, considerou-se incidir, no caso, o princípio da insignificância, uma vez que a conduta imputada ao paciente, de que lhe resultara a imposição de medida sócio-educativa de internação, caracterizaria ato infracional equivalente ao delito de furto de objeto avaliado em quinze reais. Esse elemento, aliado às demais circunstâncias em torno do ato, afastaria a tipicidade da conduta, o que evidenciaria a ausência de justa causa do procedimento instaurado contra o paciente, à luz do referido princípio. HC 102655/RS, rel. Min. Celso de Mello, 22.6.2010. (HC-102655).

Além de típica, para ser considerada ato infracional, a conduta deve ser ainda antijurídica, ou seja, contrária ao Direito. Desse modo, as mesmas excludentes da antijuridicidade previstas no art. 23 do CP (legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento de um dever legal e exercício regular de direito), além das supralegais, aplicáveis ao crime, deverão ser levadas em conta em relação ao ato infracional.

Por fim, a culpabilidade, como último elemento do conceito analítico de crime, deve ser compreendida no contexto do ato infracional como censurabilidade[5], já que aquela pressupõe a imputabilidade do autor, ao passo que esta exige, ao contrário, sua inimputabilidade cronológica ou etária.

A censurabilidade infracional pressupõe, desse modo, os seguintes requisitos: a) inimputabilidade cronológica ou etária; b) exigibilidade de conduta diversa; e c) potencial consciência da ilicitude da conduta infracional.

Somente se presentes esses três elementos, estaremos diante de um ato infracional merecedor de responsabilização estatal. Ausente algum deles, a intervenção estatal será ilegítima.

Por fim, vale lembrar que se estiverem presentes as outras formas de inimputabilidade, ou seja, diversas da cronológica (doença mental; desenvolvimento mental incompleto ou retardado; embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou força maior[6]), desde que retirem inteiramente a capacidade de o adolescente compreender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento, deverá haver isenção de medida sócio-educativa.


Notas e Referências:

[1] GIACOMOLLI, Nereu José. Juizados especiais criminais: lei 9.099/95. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 239.

[2] SPOSATO, Karyna Batista. Direito penal de adolescentes: elementos para uma teoria garantista. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 143.

[3] Os princípios politico-criminais da dignidade e necessidade de pena são densificados em: SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de. Bem jurídico-penal e engenharia genética humana. São Paulo: RT, 2004. p. 137-162; SANTOS, Cleopas Isaías. Mandado expresso de criminalização e função positiva do bem jurídico-penal: encilhando o Leviatã. In: FRANÇA, Leandro Ayres (Org.). Tipo: inimigo. Curitiba: FAE, 2011, p. 301-316.

[4] ROSA, Alexandre Morais da; LOPES, Ana Christina Brito. Introdução crítica ao ato infracional: princípios e garantias constitucionais. Rio de Janeiro: Lumens Juris, 2011, p. 209 e ss.

[5] ROSA, Alexandre Morais da; LOPES, Ana Christina Brito, op. cit., p. 342, usam a expressão culpabilidade infracional para referirem-se ao mesmo elemento. De igual modo, SARAIVA, João Batista Costa, op. cit., p. 84, prefere a expressão culpabilidade, compreendida como reprovabilidade da conduta.

[6] Referindo-se especificamente à embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou força maior, cf, SHECAIRA, Sérgio Salomão. Sistema de garantias e o direito penal juvenil. São Paulo: RT, 2008, p. 157-158.


Bruno Taufner ZanottiBruno Taufner Zanotti é Doutorando e Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Pós-graduado em Direito Público pela FDV. Professor do curso de pós-graduação Lato Sensu em Direito Público da Associação Espírito-Santense do Ministério Público. Professor de cursos preparatórios para concurso público nas áreas de direito constitucional, penal e processo penal. Diretor Jurídico da ADEPOL-ES e SINDEPES. Delegado da Polícia Civil do Estado do Espírito Santo. Coordenador pedagógico do Projeto Delegado (www.projetodelegado.com.br). 


Cleopas Isaías Santos. Cleopas Isaías Santos é Mestre e Doutorando em Ciências Criminais pela PUCRS. Professor de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB. Professor de Pós-Graduação latu sensu em diversas instituições. Pesquisador da Fundação de Amparo à Pesquisa e Desenvolvimento Científico do Maranhão – FAPEMA. Delegado de Polícia.


Imagem Ilustrativa do Post: We’re all a bad guy somehow // Foto de: Ahmad Hammoud // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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