AFINAL, O FLAMENGO É HEPTA?

06/12/2019

Coluna Isso Posto / Coordenadores Ana Paula Couto e Marco Couto

A partir de hoje, a coluna Isso Posto, trará além do artigo escrito, o texto em formato de áudio. O propósito disso é de incluir as pessoas que tem dificuldades em ler e até mesmo quem não tem tempo de parar pra ler ou gosta de coisas no estilo podcast! Para ouvir o artigo de hoje, clique aqui! 

Após o Flamengo sagrar-se, no mesmo final de semana, bicampeão da Copa Libertadores da América e heptacampeão brasileiro, passamos a receber mensagens em grupos de whatsapp que garantiam que, na verdade, o Sport foi o campeão brasileiro de 1987 e que, por isso, não há heptacampeonato rubro-negro, mas sim hexacampeonato rubro-negro.

O futebol mexe com os brasileiros de uma maneira muito significativa. Para chegar-se a essa conclusão, basta verificar a audiência que atingem os jogos na TV, os comentários que são feitos nos dias de jogos e o investimento que as empresas fazem em atletas e produtos esportivos.

Tudo isso faz girar cifras milionárias. Mas, ainda que não fosse uma atividade financeira tão intensa, ao menos no Brasil, o futebol não seria menos querido, menos comentado, menos amado. Mesmo quando os tempos eram outros, nossos pais e avós gostavam, acompanhavam e torciam pelos seus times. Portanto, não é somente o marketing que nos envolve no futebol, muito embora ele, inegavelmente, contribua para isso.

Ao recebermos as mensagens questionando o heptacampeonato brasileiro, ficamos com vontade de desenvolver este texto, o que certamente não seria compreendido nos diversos grupos de whatsapp dos quais participamos. A paixão – e não a falta de conhecimento jurídico – dos nossos interlocutores impediria a sua compreensão. Wathsapp, instagram e facebook são ótimas ferramentas para distração e até mesmo para pesquisa, mas não são propriamente o local indicado para desabafos jurídicos.

Esta coluna não pretende defender juridicamente o Flamengo, até porque ele tem Advogados competentes para isso, os quais certamente atuaram ou ainda atuam para discutir todas as questões relacionadas ao tema, inclusive o controvertido título do campeonato brasileiro de 1987. Logo, esta coluna não pretende questionar quem foi o verdadeiro campeão brasileiro daquele ano, ou seja, se o foi o Flamengo ou se foi o Sport.

Esse questionamento nos fez lembrar que o Direito tem várias percepções no mundo e que, de uma maneira geral, os autores dividem o mundo em duas grandes famílias: uma família é relacionada ao sistema civil law (o Brasil integra tal família, dentre muitos outros países), enquanto a outra família é relacionada ao sistema common law (a Inglaterra integra tal família, dentre muitos outros países). É claro que este texto não objetiva destacar as características de tais sistemas, o que exigiria um espaço próprio.

Como o mundo não é uniforme a ponto de poder ser dividido em apenas dois grandes grupos, existem países que compõem uma terceira família que se pode chamar de socialista, cujo berço foi a Revolução Russa de 1917.

Além disso, existem países cujas características não se adaptam às famílias civil law, common law e socialista. Aliás, existem países que não conferem ao Direito qualquer importância maior, como bem destaca René David[1], o qual afirma o seguinte: Os princípios aos quais as pessoas se reportam, nas sociedades não ocidentais, são de duas ordens. Algumas vezes é atribuído ao direito um valor eminente, mas este é concebido de um modo diferente do ocidental; outras vezes, pelo contrário, a própria noção de direito é rejeitada, e é fora do direito que se procuram regular as relações sociais. O primeiro modo de ver predomina no direito muçulmano, no direito hindu e no direito judaico; o segundo é o do Extremo Oriente e também o da África e de Madagascar.

Registre-se que, enquanto para alguns o Direito é o conjunto de regras a serem observadas e cuja aplicação é feita pelos tribunais, para as realidades muçulmana, hindu e judaica, o Direito está relacionado a uma religião ou pode corresponder a um certo modo de conceber a ordem social, não se negando, contudo, a sua importância.

De outro lado, nos países do Extremo Oriente, o Direito é repudiado, sendo visto como instrumento de arbítrio e um fator de desordem, prevalecendo, na China e no Japão, por exemplo, o entendimento segundo o qual os conflitos devem ser dirimidos longe dos tribunais, através de métodos conciliatórios.

Na mesma medida, na África subsaariana[2] e em Madagascar, o Direito tem pouca importância, uma vez que prevalece a cultura segundo a qual a manutenção ou a restauração da harmonia tem mais importância do que propriamente a observância das regras impostas.

Diante do questionamento quanto ao título do campeonato brasileiro de 1987, duas ideias vieram à nossa mente: a primeira questão relaciona-se ao fato de muitas pessoas gostarem de submeter todas as questões da vida ao Direito e aos tribunais, enquanto a segunda questão se relaciona ao fato de existirem países que não conferem qualquer importância ao Direito e aos tribunais.

Temos explicado isso aos nossos alunos. O Direito e os tribunais, ao menos na nossa realidade brasileira, têm grande importância. O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, tem dado claras lições no sentido de entender que as suas decisões são capazes de transformar o preto no branco, o azul no amarelo ou o verde no vermelho. Mas não é bem assim que as coisas funcionam.

A vida existe por si, e não pelo Direito. As decisões dos tribunais não conseguem – necessariamente – mudar a realidade fática. Nas varas de família, por exemplo, pouco importariam decisões que obrigassem os pais a amarem os seus filhos. Seriam apenas palavras subscritas por um Juiz em um papel sem qualquer valor.

Há um limite para o Direito. Nem tudo pode ser mudado através do Direito. Nas varas criminais, por exemplo, é possível condenar alguém e é possível prender alguém, mas não se pode garantir que, ao final do cumprimento da pena, o condenado passe a ter essa ou aquela virtude ou passe a ter esse ou aquele defeito.

É uma ilusão achar que os Juízes e as suas decisões podem alterar toda a realidade, sobretudo quando se trata de sentimentos. É possível condenar, por exemplo, um pai a pagar certa indenização porque não deu a atenção devida ao seu filho. É possível executar tal sentença e, de fato, transferir o patrimônio do pai para o filho, a fim de compensar o sofrimento que este teve em razão da irresponsabilidade daquele. Mas não é possível, através de uma sentença, forçar um pai a amar o seu filho. Isso não é possível.

Por tais fatores, em resposta às mensagens que recebemos nos grupos de whatsapp – já que não tivemos a coragem de respondê-las, nestes termos, através de mensagens –, é preciso consignar o nosso entendimento segundo o qual este é o tipo de assunto que nos leva a refletir sobre a importância do Direito.

No nossa avaliação, sob o ponto de vista financeiro, é possível que eventual decisão judicial – qualquer que seja o seu teor – tenha repercussão, seja no Clube de Regatas do Flamengo, seja no Sport Club do Recife. Mas, no coração dos torcedores, a questão já está resolvida. Afinal de contas, é muito difícil encontrar algum flamenguista que diga que o Flamengo é hexacampeão brasileiro, e não heptacampeão brasileiro.

 

Notas e Referências 

[1] DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 29.

[2] Para que se possa compreender a sua abrangência, cabe registrar que a África subsaariana, também chamada de África negra, corresponde à parte do continente africano situada ao sul do Deserto do Saara, sendo constituída por nada menos do que 48 países, quais sejam, Angola, Burundi, República Democrática do Congo, Camarões, República Centro-Africana, Chade, República do Congo, Guiné Equatorial, Gabão, Kenya, Nigéria, Rwanda, São Tomé e Príncipe, Tanzânia, Uganda, Sudão, Sudão do Sul, Djibouti, Eritreia, Etiópia, Somália, Botswana, Comores, Lesoto, Madagascar, Malawi, Maurícia, Moçambique, Namibia, Seychelles, África do Sul, Suazilândia, Zâmbia, Zimbabwe, Benim, Mali, Burkina Faso, Cabo Verde, Costa do Marfim, Gâmbia, Gana, Guiné, Guiné-Bissau, Libéria, Mauritânia, Niger, Senegal, Serra Leoa e Togo.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Flamengo vs Palmeiras at Maracana Stadium Rio de Janeiro // Foto de: Christian Haugen // Sem alterações

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