AFINAL, A DECISÃO JUDICIAL QUE HOMOLOGA A PROMOÇÃO DE ARQUIVAMENTO REQUERIDA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO FAZ APENAS COISA JULGADA FORMAL OU COISA JULGADA FORMAL E MATERIAL?

10/05/2019

Coluna Vozes-Mulheres / Coordenadora Paola Dumont

De acordo com o art. 10, §1º do CPP, o inquérito policial deverá ser concluído com a elaboração, por parte da autoridade policial, de minucioso relatório do que tiver sido apurado no curso das investigações, e após, os autos do inquérito deverão ser encaminhados ao poder judiciário. Quando se tratar de apuração de crime de ação penal pública, serão os autos remetidos na sequência ao Ministério Público (que é o titular da ação penal pública).

Com os autos do inquérito em mãos, o órgão ministerial poderá: (a) oferecer denúncia se houver materialidade e indícios suficientes de autoria, (b) requisitar novas diligências se entender necessário (art. 16, CPP), (c) declinar a competência quando entender que o juízo perante o qual atua não é dotado de competência para o julgamento do feito e, por fim (d) requerer o arquivamento autos do inquérito policial.

Renato Brasileiro discorre em seu Manual de Processo Penal[1] que apesar do CPP não trazer expressamente as hipóteses que autorizam o arquivamento do inquérito policial, “é possível à aplicação, por analogia, das hipóteses de rejeição da peça acusatória e de absolvição sumária, previstas nos arts. 395 e 397 do CPP, respectivamente. Em outras palavras, se é caso de rejeição da peça acusatória, ou se está presente uma das hipóteses que autorizam a absolvição sumária, é porque o Promotor de Justiça não deveria ter oferecido a denúncia em tais hipóteses”.

Assim, os autos de inquérito poderão ser arquivados quando houver (1) ausência de pressuposto processual ou de condição para o exercício da ação penal, (2) falta de justa causa para o exercício da ação penal, (3) quando o fato investigado evidentemente não constituir crime (atipicidade), (4) quando houver a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade, salvo a inimputabilidade, (5) quando houver a existência de causa extintiva da punibilidade, e por ultimo, (5) quando houver existência manifesta de causa excludente da ilicitude (art. 23 e 128 do, CP; art. 42 do CPM).

Abordaremos aqui a hipótese de arquivamento dos autos do inquérito ante a existência de causa excludente de ilicitude em virtude do estrito cumprimento do dever legal (art. 42, III, CPM).

A título de exemplo, suponha-se que Tício é abordado em flagrante delito pela policia militar e para evitar sua prisão, sai correndo em direção oposta a dos militares. Caio, policial militar, corre em direção a Tício e em dado momento, puxa-o pela blusa, derrubando- o ao chão. Caio inicia então o ato de algemação de Tício, tendo Tício reagido à prisão e, consequentemente, entrado em embate físico com o policial Caio. Após alguns instantes de luta corporal, Caio obtém sucesso na algemação de Tício e ambos são conduzidos ao Posto de Saúde para atendimento médico (vez que ambos se lesionaram durante o processo de algemação de Tício).

Considerando que Tício sofreu lesões corporais, é instaurado Inquérito Policial Militar para apurar a conduta de Caio. O inquérito é concluído pela autoridade competente e após, remetido à autoridade judiciária, que o encaminha ao órgão ministerial para as devidas providências.

Diante dos elementos colhidos no inquérito, o Promotor de Justiça conclui que a ação do Policial Caio foi executada de maneira moderada, não havendo, portanto, que se falar na pratica do delito de lesão corporal, eis que a conduta praticada pelo Militar estaria amparada pela excludente do estrito cumprimento do dever legal (art. 42, III, CPM), seja dizer, o militar usou da força necessária para conter e algemar Tício.  

Diante deste cenário, o Promotor de Justiça requer à autoridade judiciária o arquivamento dos autos. O Magistrado, por sua vez, concorda com o pleito ministerial e determina o arquivamento do feito.

Surge então o questionamento: decisão judicial que homologa a promoção de arquivamento requerida pelo Ministério Público faz apenas coisa julgada formal ou coisa julgada formal e material?

Inicialmente faz-se necessário distinguir rapidamente a coisa julgada formal da material. A coisa julgada forma é o que Aury Lopes Jr[2] denomina, por questões didáticas, de “primeiro degrau da escada”, ocorre quando a decisão é irrecorrível ou torna-se preclusa, não havendo aqui a análise e julgamento do mérito do caso penal. Já a coisa julgada material seria o “segundo degrau da escada”, vez que pressupõe a formal com o plus da realização do julgamento de mérito, impedindo assim, novos processos sobre o mesmo fato.

É imperioso admitir que a decisão que reconhece uma causa de excludente de ilicitude, precisa, necessariamente, enfrentar o mérito dos fatos, em outras palavras, é necessário que os atos de investigação[3] colhidos durante o inquérito sejam analisados e sopesados de modo a conduzir à conclusão da inexistência de crime.

Seja dizer, para que o arquivamento se dê com base em causa excludente da ilicitude, há necessidade de um juízo de certeza quanto a sua presença, posto que na dúvida, incumbiria ao órgão do Ministério Público oferecer denúncia, a fim de que a controvérsia fosse dirimida em juízo, após ampla produção probatória.

Assim, quando o juiz, a pedido do Ministério Público decide pelo arquivamento do inquérito com base em excludente de ilicitude, ele esta na verdade, fazendo um pronunciamento de mérito (coisa julgada formal e material) anterior ao próprio oferecimento da denúncia, vez que considerou que o fato apurado no inquérito não constituiu fato criminoso.

Diz-se, portanto, que o arquivamento do inquérito fundado em causa de excludente de ilicitude, produz coisa julgada formal e material, e, por conseguinte, impede a rediscussão do caso penal, seja através do desarquivamento do inquérito, seja por oferecimento de denúncia em virtude de provas novas, ou em decorrência de nova capitulação jurídica dos mesmos fatos apurados no inquérito já arquivado.

Desta forma é que o desarquivado em face de novas provas somente se mostraria cabível quando o arquivamento houvesse sido determinado por falta de elementos suficientes à deflagração da ação penal (inexistência de indícios de autoria e certeza de materialidade).

Renato Brasileiro[4] destaca ainda em seu Manual de Processo Penal que “se o arquivamento com base na atipicidade do fato faz coisa julgada formal e material, há de se aplicar o mesmo raciocínio às hipóteses em que o arquivamento se dá com base no reconhecimento de uma causa justificante, haja vista que, em ambas as hipóteses, ocorre uma manifestação a respeito da matéria de mérito. A nosso sentir, não há diferença ontológica entre a decisão que arquiva o inquérito, quando comprovada a atipicidade do fato, e aquela que o faz, quando reconhecida a licitude da conduta do agente, porquanto ambas estariam fundadas na inexistência de crime e não na mera ausência ou insuficiência de provas para oferecimento de denúncia. Assim, da mesma forma que não seria admissível o desarquivamento do inquérito policial pelo surgimento de provas novas que revelassem a tipicidade de fato anteriormente considerado atípico pelas provas existentes, também seria inviável o desarquivamento na hipótese de fato julgado lícito com apoio em provas sobejamente colhidas”.

Logo, o desarquivamento do inquérito com fundamento no disposto no artigo 18 do CPP[5], e na Súmula 524 do STF[6], bem como a instauração de novo inquérito com fundamento no art. 25 do CPPM[7], seria possível apenas nas hipóteses em que o arquivamento se desse por falta de provas, ou seja, por falta de suporte probatório mínimo (repita-se: inexistência de indícios de autoria e certeza de materialidade)[8].

Contudo, em que pese toda construção teórica exposta, surge problemática no âmbito do Supremo Tribunal Federal, que tem posicionamento diverso. Para o Supremo, o arquivamento do inquérito fundado em excludente de ilicitude não produz coisa julgada material, sendo permitido, portanto, o desarquivamento quando fundado em novos elementos de prova[9].

 

Notas e Referências

[1] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único .  4 ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: JusPodivm, 2016. P. 183.

[2] LOPES Jr., Aury. Direito penal processual. 13 ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 938

[3] De acordo com Aury Lopes Jr, os atos de investigação estão destinados a demonstrar a probabilidade do fumus commissi delicti para justificar recebimento da ação penal ou o seu arquivamento (LOPES Jr., Aury. Direito penal processual. 13 ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 160.

[4] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único .  4 ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: JusPodivm, 2016. P. 186.

[5] Art. 18, CPP.  Depois de ordenado o arquivamento do inquérito pela autoridade judiciária, por falta de base para a denúncia, a autoridade policial poderá proceder a novas pesquisas, se de outras provas tiver notícia.

[6] Súmula 524:Arquivado o inquérito policial, por despacho do juiz, a requerimento do promotor de justiça, não pode a ação penal ser iniciada, sem novas provas.

[7] Art 25, CPPM. O arquivamento de inquérito não obsta a instauração de outro, se novas provas aparecerem em relação ao fato, ao indiciado ou a terceira pessoa, ressalvados o caso julgado e os casos de extinção da punibilidade.

[8] Precedente do STJ. 6ª Turma. REsp 791.471/RJ, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 25/11/2014.

[9] STF, HC 87.395 /PR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 23.3.2017, DJe 13/03/2018.

 

 

 

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