Adultos não são invisíveis: Considerações psicanalíticas sobre ato infracional

07/09/2015

Por Maíra Marchi Gomes - 07/09/2015

A maldade do tempo fez eu me afastar de você. Giuseppe Anastasi

Neste escrito, discorrer-se-á breve sobre uma possibilidade de leitura psicanalítica da prática infracional, iniciando por definições psicanalíticas a propósito do que há de patológico e normalidade na adolescência envolta em atos delinquenciais.

Osório (1982, p.79) propõe o conceito de “síndrome delinquencial”, ressaltando a importância de, antes de considerar a delinqüência uma patologia, analisá-la como um sintoma (que, por sua vez, pode ser patológico ou não). O autor referencia-se à comparação de Blos do ato infracional à febre, no sentido de que apenas este dado (febre ou ato infracional) não nos permite delimitar uma causa específica, nem mesmo caracterizar uma determinada entidade nosológica. Ele explica:

"Entendemos a conduta impulsiva típica do adolescente como vinculada intrinsecamente às vicissitudes de sua crise de identidade. Como sabemos, o processo puberal provoca uma situação de caos intrapsíquico, transitório e reversível, mas que marca indelevelmente o comportamento do indivíduo nesta fase do desenvolvimento. De um lado, o pressionam as pulsões instintivas[1] exacerbadas e, de outro, as exigências familiares quanto a um novo e desconhecido posicionamento social, sem que ele conte ainda com um equipamento cognoscitivo e um patrimônio afetivo capaz de ajudá-lo a absorver efetivamente essa dupla tempestade endo e exopsíquica que o atormenta. 

O adolescente, então, atua. E, atuando, delinqüe"

Este autor inclusive compreende a delinqüência como uma tentativa de reconstrução do mundo interno quando o mesmo encontra-se ameaçado pelo caos psíquico. Logo, como algo tanto esperado para a fase de desenvolvimento, como saudável. Ele vai dizer, comparando o adolescente que comete atos delinqüentes com os psicóticos, que ele "tenta impedir a difusão de uma identidade ainda fluida e imprecisa através da atividade delinquencial, de conteúdos igualmente maníacos. Apelam desta forma para os núcleos narcisísticos mais primitivos para negar as limitações percebidas ou pressentidas, na esperança de reinstalar onipotentemente a ordem intrapsíquica perdida."

"Na delinqüência basicamente o que se busca é substituir o conflito entre o self e o mundo externo. Como decorrência, o adolescente procura transformar o ambiente em lugar de transformar-se" (Osório, 1982, p.79) (grifo do autor)

Osório (1982, p.80), portanto, é bastante rigoroso em sua definição do que seja “síndrome delinquencial”. Esta seria:

"um quadro polissintomático peculiar ao grupo etário adolescente e que se caracteriza por perturbações na área comportamental (conduta), de tipo delitivo (ou seja, com transgressão das normas de convívio social). Identifica-se clinicamente pela presença de algumas ou várias das seguintes manifestações sintomáticas: antecedentes ou comemorativos atuais de mitomania e cleptomania (geralmente associadas); piromania; hábito de gazear aulas; fugas de domicílio; evasão de compromissos ou tarefas familiares compartidas; descumprimento de obrigações escolares ou profissionais assumidas; conduta sexual promíscua ou perversa; aparente ou manifesta ausência de qualquer sentido ético; agressividade impulsiva; uso esporádico ou sistemático de drogas (tóxicos); predação à natureza e/ou à propriedade alheia; desrespeito a qualquer forma de autoridade que não seja a emanada dos líderes de seu grupo de iguais"

As concepções deste mesmo autor também merecem ser lembradas agora em um outro aspecto: a influência das respostas sociais no desenvolvimento da tendência delinquencial em adolescentes. Assim, não seria apenas no sujeito que se encontraria a explicação para a atuação infracional e, portanto, antes de se tecer reprovações sobre as manifestações sintomáticas acima referidas, seria necessário considerar a função que as mesmas possuem para o contexto social onde o adolescente está inserido.

Neste sentido, Osório (1982, p.81) compreende que os fatores sócio-familiares seriam os mais relacionados à duração e intensidade do quadro. Em suas palavras:

"a duração e intensidade dos sintomas estão inúmeras vezes menos relacionadas com a predisposição constitucional do que com fatores meramente circunstanciais. Assim, a maior ou menor gravidade do quadro dependerá muitas vezes de como o ambiente sócio-familiar sirva de continente para os distúrbios de conduta que apresente o adolescente".

Levisky (2000, p.21-22), por sua vez, é bastante didático ao fundamentar porque a prática delinquencial (e outras ações reprovadas socialmente) só pode ser entendida a partir de algumas características de nossa cultura contemporânea. Em seus termos:

"a sociedade contemporânea, com suas conquistas tecnológicas e de maior liberdade social, é também facilitadora de situações que levam a prolongar a adolescência como estado da mente, até mesmo perpetuá-la, favorecendo a ambivalência, as cisões, a tendência à passagem ao ato e baixos teores de responsabilidade.

Em outros termos, aquilo que é tolerável durante a adolescência normal, tem se hipertrofiado no próprio adolescente, mas não só nele, e está se transformando num padrão de comportamento social, caracterizado por um estado de conformismo, apatia, impotência, rebeldia, desfaçatez, indiferença, chegando às raias do radicalismo.

O vandalismo, a delinqüência, a prostituição, a perda de respeito pelo privativo, pelos bens comuns da sociedade, a má qualidade das relações humanas, tornam-se modelos de auto-afirmação e de contestação, conseqüentes de um lado à incorporação de objetos caóticos de identificação, e de outro, num grito de desespero, numa tentativa inconsciente de recuperar algo que foi perdido ou não adquirido durante o processo evolutivo, e que necessita, na adolescência, ser resgatado, se não pela família, através da sociedade".

O autor faz, inclusive, algumas considerações histórico-culturais bastante diretas ao caso brasileiro, exemplificando como, em nosso país, apresentam-se algumas características sociais lesivas particularmente aos adolescentes. Em suas palavras:

"Na cultura brasileira está institucionalizada a “Lei de Gerson”, de levar vantagem, do jeitinho, com o aniquilamento do sentido de existência do próximo. A cultura moderna tem favorecido a liberação de impulsos agressivos e sexuais de maneira direta e nem sempre sublimada. Caminha-se da conquista da individuação para o individualismo. Os limites entre o privativo e o público estão esmaecidos, confusos.

[...] a sociedade brasileira tem vivido um tipo de violência passiva, fruto da repressão, da submissão e da castração cujas origens datam de épocas coloniais [...].

Esta violência passiva se expressa pela negligência, pela desfaçatez, pela corrupção, pela indiferença, pelo fenômeno de fazer vista grossa que são reveladores de um clima de conivência refletora de uma violência estrutural de nossa organização social e psicológica, com profunda desvalorização das relações humanas, do ser e do viver" (Levisky, 2000, p.26-28)

Em seguida, e complementando esta análise, este autor elenca os elementos da herança do que denomina caráter nacional, que teriam sido herdados com a vinda da Corte para o Brasil. Tais elementos seriam: “despreparo, comodismo, egocentrismo, improvisação, quebra-galho, conluios patológicos, submissão e subserviência, interesses imediatos e fraqueza de espírito” (Levisky, 2000, p.28).

Nos momentos em que Levisky (2000, p.30-31) refere-se mais diretamente aos efeitos destas características da cultura nacional sobre a adolescência, encontra-se, por exemplo, menção explícita à influência sobre atos violentos:

"A falta de perspectivas que campeia a vida de muitos adolescentes é outro ingrediente para o incremento da violência como reação a um estado frustrante e contraditório insuportáveis. Preparam-se durante anos para encontrar um caminho na vida adulta, respeitar e preservar uma série de valores, mas deparam-se com elevadas doses de desesperanças (falta de emprego, salários aviltados, dificuldades para constituir e assumir uma família). Essa situação gera o prolongamento da condição adolescente, que adquire um caráter de mecanismo defensivo. Hoje é necessário desenvolver um número maior de recursos pessoais para alcançar um grau significativo de autonomia. Seu futuro é pouco promissor quanto às possibilidades de realizações consistentes e duradouras. As gratificações tendem a ser imediatas e efêmeras dificultando os processos de sublimação de seus desejos agressivos e sexuais.

[...] Através da violência existente no ato delinquencial, o jovem ou o grupo ao qual ele pertence pode buscar se diferenciar do “stablishment” usando elementos similares aos utilizados pelos representantes do poder (político, econômico, artístico), que por serem públicos, tornam-se modelos de identificação".

Em obra anterior organizada pelo autor (Levisky, 1998), o ponto em comum entre os artigos que a compõem é justamente discorrer a respeito de aspectos históricos, culturais e sociais relacionados com algumas manifestações da adolescência contemporânea no Brasil. Portanto, esta obra sustenta-se na noção de que não há como se falar de uma manifestação adolescente se não a contextualizarmos espaço-temporalmente. E é precisamente o organizador do livro que começa falando disto, quando diz da seguinte maneira sobre a violência apresentada por adolescentes:

"Vigor, sexualidade, potência, destemor, violência, impulsividade, prepotência, desafio são qualidades psicossociais do adolescente do presente e do passado. São inerentes ao complexo de perdas, de desinvestimentos e novos investimentos em relação ao próprio corpo, à auto-imagem e na relação com os pais da infância. Vive o conflito entre construir e se integrar à nova identidade resultante de experimentos e descobertas de suas potencialidades afetivas, intelectuais, sociais e físicas. Paralelamente, deseja preservar os privilégios da vida infantil.

Há nesse processo uma violência construtiva que abre canais através dos quais o adolescente dá vazão e expressão a sua criatividade e inserção social. Quando a sociedade lhe oferece meios socialmente adequados para suas manifestações de auto-afirmação, o processo, apesar de turbulento, pleno de paixões, edifica a personalidade e a auto-estima.

Porém, numa sociedade vazia de valores, de solidariedade, de espírito de amizade, que fomenta excessos de violência, banaliza o sexo e a agressão, o que podemos esperar de nossos jovens? Que eles retomem a revolução cultural? Quem pratica atos de vandalismo, rachas, pichações, usa drogas, despreza os bens comuns, representa, pelo menos em parte, os instrumentos disponíveis substitutivos das armas de outros tempos" (Levisky, 1998, p.25)

Conte (1997, p.254), na mesma direção, vai dizer a propósito dos efeitos de alguns aspectos nacionais sobre o psiquismo de adolescentes:

"O convite à delinqüência se encontra no discurso da impunidade, do “jeitinho”, do paraíso fiscal, da má distribuição de renda, das chacinas, do narcotráfico governamental, dos aplausos ao Pareja, da incompetência do Sistema Penal, entre outros. São discursos que “fazem curva” à castração, colocando cada um de nós na possibilidade de sermos exceção à lei e, portanto, de fazermos exceção à tradição que nos fundou, sem devermos nada a ninguém.

Em inúmeros indicadores sociais, os adolescentes aparecem como protagonistas, tais como nos índices de suicídios, de soropositividade pelo HIV, no uso de drogas, nas overdoses, nas mortes por tráfico de crack, na exploração sexual, entre outros.

Através desses fenômenos sociais, os adolescentes nos dizem que, para agüentar a pretensão à exceção e para serem reconhecidos como diferentes, precisam apelar para um agir cada vez mais real, de alto risco. Perguntar-nos-íamos por que eles precisariam ir tão longe. Penso que eles só reconheceriam que não precisariam ir tão longe se não percebessem no fundo do olhar do espectador e na mudez dos adultos o fascínio que esse agir provoca" (grifo da autora).

É pertinente discorrer ainda mais sobre o posicionamento de Conte (1997, p.252), posto que, como já se vislumbra na passagem acima, ela não apenas segue a mesma linha dos autores supra-citados em termos de reconhecer como fundamental a análise de aspectos sociais envolvidos no cometimento por adolescentes de atos delinqüentes, como compreende que o adolescente é submetido a um mandato social para que aja desta maneira. Ela chega a falar em “convite”, mas há o momento em que é mais direta. Senão vejamos:

"Os fenômenos da toxicomania e da delinqüência podem ser considerados psicopatologias dominantes, porque são respostas diretas aos apelos implícitos no discurso social, que transformam os nossos ideais sociais em mandatos imperativos que devem ser obedecidos a qualquer custo.

Uma das questões que surge é: se a exceção é o ideal, que maneiras o adolescente está encontrando para fazer-se exceção?

É na adolescência, momento de construção e luto, que as condições subjetivas encontram-se frágeis para responder aos apelos dos ideais sociais, de tudo o que concerne ao lugar do adolescente na família, no mercado de trabalho, quanto a sua identidade sexual, seus desejos futuros, seu estilo, entre outros.

Tornar-se grande, na nossa cultura, ocorre sem ritualização e é esperado da autonomia do sujeito. É uma empreitada na qual o adolescente se vê desamparado e solitário, convidado a dar um salto no escuro. Terá que fazer o esforço de sustentar um nome e de se fazer reconhecer pela via dos objetos a consumir. A particularidade da sociedade de consumo é que, cada vez, mais buscamos nos significar através dos objetos. Eu sou o que consumo e me identifico com aquelas pessoas que usam as mesmas marcas".

Na continuidade, a autora explica muito bem, e/talvez porque em poucas palavras, como o apelo à exceção, para alguém (o adolescente) que está se estruturando como sujeito, leva ao encontro da insígnia que via de regra é a única presente: a do delinqüente. Ela diz que “o delinqüente responde ao imperativo FAÇA-SE” (Conte, 1997, p.253), e, em seguida, que “O delinqüente é seu ato” (Conte, 1997, p.253).

Pode-se também pensar, ainda seguindo as idéias desta autora, que tal concepção faz com que caia por terra aquela associação da adolescência à transgressão, rebeldia. Ela propõe que a transgressão é, apenas em alguns casos, dependendo principalmente do ambiente, um referencial para a estruturação psíquica de adolescentes.

"Sair do senso comum sobre a adolescência contestadora e que escolhe sempre o contrário daquilo que os pais querem é reconhecer que os adolescentes estão norteados pela pergunta: “o que os pais querem para mim?”. No entanto, se eles lêem preferencialmente o que está nas entrelinhas, podemos dizer que os adolescentes são obedientes e acolhem a mensagem implícita.

[...] Sabemos que, para se ter uma imagem de si, é necessário sempre supor um olhar no Outro. Uma característica própria do sujeito adolescente moderno é que, para ele, o olhar que encontra refletido no Outro está esvaecido, vazio, o que não lhe situa um lugar" (Conte, 1997, p.256).

Levisky (1998, p.30-31) terá suas noções retomadas agora por um ponto. Ele inclui, em termos de influência sobre o psiquismo do adolescente, a família e o contexto social maior em uma série (assim como outros autores acima referidos). Porém, em sua abordagem da etiologia da delinquência, ele não apenas integra aspectos que poderíamos chamar de micro e macro sociais, mas ressalta o componente social (ou macro-social, se quisermos ser mais didáticos), entendendo que, perante uma subjetividade já precariamente constituída, o ambiente social pode ser a única alternativa. Alternativa que pode minimizar ou maximizar os danos já existentes advindos de outros fatores (basicamente, familiares).

"Os conceitos psicológicos de moral e democracia vêm do berço. Isto é, vêm da qualidade das primeiras relações afetivas entre o bebê e seus pais, associadas a condições dignas de vida. A qualidade dos vínculos iniciais é fundamental na formação das primeiras identidades e do superego. Mas, se a este processo afluem patologias que deturpam estas relações como estados de miséria, violência, perda de continuidade, transformações bruscas dos valores éticos e morais, o indivíduo organiza seu eu de forma insegura, carência do sentimento de confiança básica. A delinqüência é, em muitos casos, o sintoma de resgate de algo que foi perdido na tenra infância (Levisky, 1997a; Winnicott, 1956). Um grito de socorro à sociedade como um último apelo antes da desagregação total. Mas, é preciso que haja uma sociedade que queira ouvir estes apelos e promover recursos para a reintegração interna e social dos indivíduos. Existem alguns, infelizmente, irrecuperáveis que necessitam ser retirados da sociedade. Outros necessitam responder por suas transgressões e muitos se cristalizam nos seus desvios por falta de oportunidades, e pelo desejo inconsciente que a sociedade tem, de que esses jovens problemáticos morram. É uma forma de se livrar dos problemas, da culpa e da reelaboração existencial".

Como se percebe, os componentes micro e macro-social são significativamente presentes na etiologia da delinquência; e o componente macro-social sê-lo-ia ainda mais, no que tange as perspectivas de recuperação. Talvez porque o contato destes sujeitos com o universo social mais amplo já seja buscado em uma via de reparação; num primeiro momento, daquilo que falhou no ambiente micro-social. Deduz-se daí a importância das respostas jurídicas a estes atos.

A importância atribuía por este autor ao componente social (macro-social, particularmente) da violência cometida por adolescentes é tão significativa a ponto de o mesmo estar presente na própria definição de “violência cometida por adolescentes” em que se sustenta a obra que organizou. Ele fala, na passagem abaixo, que ele e os demais autores daquela obra compreendem por violência cometida por adolescentes aquela cujo significado é o de pedido de ajuda perante um desamparo e, o que é ainda mais importante ressaltar, como uma forma de construção do eu proposta pela sociedade àqueles que se encontram em uma fase de desenvolvimento peculiarmente influenciável.

"Enfocamos, não a violência salutar do adolescente, revelada pela rebeldia inovadora e criativa, mas aquela cujos limites muitas vezes se confundem com uma violência desagregadora, grito de socorro, fruto do desamparo ou mesmo uma forma de auto-afirmação proposta pela cultura vigente.

Ênfase maior foi dada á adolescência por ser esta uma fase da vida altamente influenciável, possuidora de inestimável potencial, porém menos cuidada pela sociedade, fato que já representa uma violência"(Levisky, 1998, p.32-33).

Figueiredo (1998, p.62-63), ao discorrer sobre como é próprio à cultura brasileira as contradições entre discurso e prática, entre legal e legítimo, propõe que o adolescente funciona como um porta-voz de ambivalências no campo da ética, transmitindo e potencializando a violência social.

"[...] gostaria de retomar alguns pensamentos de Donald Winnicott. Em particular, gostaria de tomar pé na sua consideração do valor da imaturidade tanto para o indivíduo em crescimento – o que sempre envolve alguma agressividade – como para a coletividade que deve ser capaz de preservar um espaço de tolerância e de confronto com a imaturidade e seus rebentos, ou seja, que deve ser capaz de conter e valorizar seus opositores internos como uma fonte salutar de energia e criatividade.

[...] poderíamos imaginar quanto é difícil para o mundo adulto marcado pelas impropriedades responder de forma continente, estável e segura aos desafios que o adolescente lhe endereça. O enfrentamento da imaturidade adolescente é sempre problemático em qualquer sociedade. Como as dificuldades devem crescer quando toda a cultura, quando o regime de sociabilidade dominante está ele mesmo às voltas com suas próprias impropriedades, dilacerado pelas múltiplas violências [...]. Poderíamos daí extrair a hipótese de que há um sofrimento adolescente no Brasil, maior do que seria o esperado em culturas menos cindidas e constitutivas de subjetividades menos dissociadas" (grifos do autor)

Outro autor que bem descreve o processo adolescente é Ranna (1998). Ele também destaca, como outros autores já citados, os percalços nesta fase de desenvolvimento que levam a comportamentos violentos, bem como os aspectos ambientais envolvidos nestes percalços. Ou seja, dos aspectos que transcendem o intrapsíquico.

"A adolescência pode ser considerada um trauma, na medida em que o amadurecimento psicossexual vai colocar em questão toda “organização pulsional” adquirida até então. As mudanças biopsíquicas da puberdade criam uma nova situação subjetiva para os adolescentes, deslocando toda estrutura representativa existente até então. Pelo menos três processos psíquicos podem ser identificados: 1) mudanças nas representações; 2) novas demandas pulsionais; 3) desafio e revivência de falhas na estrutura constituída ao longo dos anos anteriores [...].

Os adolescentes de risco para somatizações, drogadicções, comportamentos impulsivos e violentos têm antecedentes de perdas e instabilidades nas relações objetais, durante os primeiros anos, e apresentam várias doenças, tais como: infecções recorrentes, asma e distúrbios alimentares. Apresentam comportamento hiperativo, distúrbios de sono (pesadelos, sonambulismos). Revelam deficiência no processo de simbolização, com facilidade para sofrer acidentes, e com freqüência envolvem-se em conflitos violentos. Nesse sentido, a adolescência assemelha-se ao 1º ano de vida, quando existe grande vulnerabilidade para somatizações, pois o bebê associa sensibilidade, dependência e falta de recursos mentais para absorver e representar a violência instintiva ou ambiental. O infante é o que não fala e por não falar somatiza de forma mortífera.  

O adolescente funciona da mesma forma, e o que encontramos, ou reencontramos, são os antigos bebês hiperativos, insones, agressivos e doentes nos ambulatórios com os mesmos problemas, após um tempo de calma pulsional da latência" (Ranna, 1998, p.69-70).

Em momento seguinte, o mesmo autor vai tocar em componentes que podem ser entendidos como macro-sociais, posto não dizerem respeito a questões familiares. Tratando a adolescência na contemporaneidade, ele demonstra como a delinquência não se pode explicar a partir da carência objetiva. Para ele, o que está em jogo é essencialmente a impossibilidade de ser criativo; e para isto pode-se partir de um ambiente que não apresenta falta, ou de outro, que não apresenta perspectiva de superá-la por qualquer via. Em suas palavras:

"Hoje vemos uma certa báscula das formações psicopatológicas para as somatizações, comportamentos de risco, condutas agressivas e violentas, psicopatias e drogadicções, todos apontando para uma pobreza imaginária e distúrbios em etapas pré-edipianas e primitivas da constituição do sujeito.

Associado a esse quadro vemos a ploriferação de uma estética realista, marcada pela excitação violenta e concreta. Na produção científica, uma hegemonia dos métodos cartesianos. O imaginário e o simbólico causam estranheza. Existe uma certa desmentalização em todos esses campos. Hoje vivemos uma hegemonia da ação sobre a reflexão e a velocidade das satisfações eliminaram a vivência da falta.

Parece que estamos vivendo uma regressão de estruturas neuróticas para estruturas psicossomáticas, por conta de um empobrecimento da subjetividade imaginária e das realizações alucinatórias, frutos da falta, da ausência, da castração. A realidade social, com uma enorme, profunda e perversa desigualdade econômica deve fazer pano de fundo para tudo isso, sendo que temos duas situações: a dos sujeitos que vivem a falta da falta: tudo se tem, tudo se pode, nada é preciso desejar alucinatoriamente; e a dos sujeitos onde a falta é radical. Os meios de comunicação mostram um mundo onde se tem tudo e na realidade o sujeito não tem nada" (Ranna, 1998, p.72-73).

Pode-se entender que o autor bem desmistifica a noção “senso-comum” de que a violência cometida por adolescentes têm, por etiologia, um componente intra-psíquico (quando muito, micro social; qual seja: familiar). E, principalmente, de que este componente etiológico seria sempre “falta de limites”. Ranna (1998), além de destacar aspectos macro-sociais, coloca, ao lado da precária inscrição da falta, a inscrição exagerada (porque massacrante, inibidora, violenta) da falta.

Birman (2011, p.25-26) também auxilia a compreender a adolescência contemporânea, resgatando historicamente a função social do adolescente. No intuito de compreender como a condição jovem caracteriza-se por uma suspensão no espaço social, independente da cultura (porque diz respeito a um certo tempo do desenvolvimento), ele lembra:

"a possibilidade de experimentação foi o que passou a caracterizar a condição da adolescência no Ocidente, desde o final do século 18, quando as idades da vida foram construídas em conjunção com a família nuclear burguesa, em decorrência da emergência histórica da biopolítica.

Nesse contexto, a adolescência foi delimitada como o tempo de passagem entre a infância e a idade adulta, na qual o jovem podia empreender experiências nos registros do amor e das escolhas profissionais, até que pudesse se inserir no mercado de trabalho e se casar, para reproduzir efetivamente as linhas de força da família nuclear burguesa.

[...]. Desde os anos 1980, no entanto, essa figuração da adolescência entrou em franco processo de desconstrução, por diversas razões. Antes de mais nada, pela revolução feminista dos anos 1960 e 70, com a qual as mulheres foram em busca de outras formas sociais de existência, além da condição materna.

[...] Em seguida, porque o deslocamento das mulheres da posição exclusivamente materna foi o primeiro combate decisivo contra o patriarcado, que forjou nossa tradição desde a Antiguidade. Os posteriores movimentos gay e transexual vieram nos rastros do movimento feminista, inscrevendo-se nas linhas de fuga da crítica do patriarcado.  

[...] Finalmente, a construção do modelo neoliberal da economia internacional, em conjunção com seu processo de globalização, teve o poder de incidir preferencialmente em dois segmentos da população, no que tange ao mercado de trabalho. De fato, foram os jovens e os trabalhadores da faixa etária dos 50 anos os segmentos sociais mais afetados pela voragem neoliberal.

Com isso, se os primeiros passaram a se inserir mais tardiamente no dito mercado, os segundos passaram a ser descartados para ser substituídos por trabalhadores jovens e mais baratos, pela precariedade que foi então estabelecida no mercado de trabalho".

Como se percebe, o autor desnaturaliza a adolescência, entendendo-a, antes de tudo, como uma produção social. Uma produção que, justamente por ser de ordem eminentemente social, estrutura os sujeitos, posto incidir justamente no que os constitui em essência: seu inconsciente. No caso da violência adolescente, a produção não é diferente. Daí ele dizer: "graças à ausência de inserção no mercado de trabalho, a juventude foi destituída de reconhecimento social e simbólico, prolongando-se efetivamente, não tendo mais qualquer limite tangível para seu término."

"Despossuídos que foram de qualquer reconhecimento social e simbólico, aos jovens restaram apenas o corpo e a força física. É por essa trilha que podemos interpretar devidamente a emergência e multiplicação das formas de violência entre os jovens na contemporaneidade.

Esse processo ocorre não apenas no Brasil e na América Latina, mas também em escala internacional. Pode-se depreender aqui a constituição de uma cultura agonística na juventude de hoje.

Contudo, essa cultura de combate é apenas a face de uma problemática mais abrangente, na qual o verso é a presença aterrorizante do desamparo, que marca o campo da juventude na contemporaneidade, em que o medo do futuro e a insegurança do existir se perfilam efetivamente como espectros.

[...]. Vale dizer que, em conseqüência das novas condições precárias do mercado de trabalho, regulado pelo ideário neoliberal, as classes médias e as elites passaram a se defrontar com os mesmos impasses, nos registros do reconhecimento social e simbólico, que marcaram outrora apenas as classes populares.

Assim, a violência juvenil transformou-se em delinqüência, inserindo-se efetivamente no registro da criminalidade "(Birman, 2011, p.26) (grifo do autor)

Interessante demarcar que o componente social na delinquência é aqui analisado pelo autor de forma a explicar como a passagem da violência juvenil à delinquência propriamente dita tem-se dado de forma mais presente em classes médias e altas. Diferente, segundo ele, de outras épocas, quando apenas os jovens de classes populares deparavam-se tão marcadamente com os impasses do acesso ao mercado de trabalho. Duas questões restam: 1) a responsabilidade pelos atos infracionais é apenas do adolescente? 2) a resposta jurídica aos adolescentes de classes populares é a mesma dada aos adolescentes de classes mais favorecidas?

Talvez as respostas a estes questionamentos façam-nos pensar que o adolescente pouco tem sido o protagonista de sua história, principalmente quando atravessada por práticas anti-sociais.


Notas e Referências:

[1] A psicanálise nunca utilizou o conceito de instinto. Com a noção de pulsão, propôs-se justamente a demarcar uma concepção de corpo humano como completamente diferente do corpo animal. Nossa biologia nunca está desacompanhada do psiquismo, para Freud. Porém, algumas traduções da obra do próprio fundador deste campo do saber utilizam como sinônimos “instinto” e “pulsão”. E, além disto, alguns psicanalistas fazem o mesmo, sabendo (ou não) do quão fundamental é tal diferenciação.

Birman, Joel. Ser ou não ser. In: Cult, São Paulo, an.14, n.157, p.25-27, mai.2011.

Conte, Marta. Ser herói já era: seja famoso, seja toxicômano, seja marginal!. In: ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE. Adolescência entre o passado e o futuro. Porto alegre: Artes e Ofícios, 1997. p.249-257.

Figueiredo, Luís Cláudio M. Adolescência e violência: considerações sobre o caso brasileiro. In: LEVISKY, David Léo (Org.). Adolescência pelos caminhos da violência: a psicanálise na prática social. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998. p.53-64.

Levisky, David Léo. Adolescência e violência: a psicanálise na prática social. In: _____ (Org.). Adolescência pelos caminhos da violência: a psicanálise na prática social. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998. p.21-43.

_____. Aspectos do processo de identificação do adolescente na sociedade contemporânea e suas relações com a violência. In: LEVISKY, David Léo (Org.). Adolescência e violência: conseqüências da realidade brasileira. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000. p.19-34.

Osório, Luiz Carlos. Síndrome delinquencial: um estudo sobre a psicopatologia do adolescente. In: OUTEIRAL, José Ottoni e col. Infância e adolescência: psicologia do desenvolvimento, psicopatologia e tratamento. Porto Alegre: Artes Médicas, 1982. p.74-86.

Ranna, Wagner. Violência no corpo – violência na mente. In: LEVISKY, David Léo (Org.). Adolescência pelos caminhos da violência: a psicanálise na prática social. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998. p.65-74.


Maíra Marchi Gomes é doutoranda em Psicologia, mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e Psicóloga da Polícia Civil de SC.  

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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