Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese
O que hoje chamamos de adultocentrismo precisa ser compreendido a partir da perspectiva história, uma vez que as práticas discursivas e sociais construídas a partir do interesse do adulto foram construídas tendo em vista diferentes espaços e tempos. Mas, como podemos perceber o adultocentrismo no cotidiano? Como esta prática social e cultural se materializa na macropolítica e no microcosmo social? Essas perguntas devem nortear este artigo, que objetiva mobilizar o debate acerca do conceito de adultocentrismo e como ele impacta no Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente. Contudo, registro desde já que tais questões não se esgotam em si, mas, possuem a finalidade de abrir janelas de possibilidades para debates mais densos.
Inicialmente, recorro à História para responder as questões norteadoras. Como afirmou o historiador francês Marc Bloch, ela “deve prestar contas do passado” e percebo que não há como entender o adultocentrismo sem olhar para trás e perceber como tal cultura se estruturou na formação da nossa sociedade. Defendo a ideia de que ao se (re)produzir de forma tentacular, o adultocentrismo construiu diferentes faces e, no Brasil, emergiu desde o projeto colonial, quando meninos e meninas já nasciam com destinos traçados pelos interesses políticos e econômicos do colonizador, interferindo diretamente no universo familiar, social e educacional.
A historiografia registra que desde o Brasil Colônia, o lugar da criança era previamente definido nas famílias patriarcais. Ele operava na casa grande e na senzala, reproduzindo sua lógica a partir das suas estratégias de dominação. Foi no seio das famílias que as crianças iniciavam o seu processo de se tornar o “futuro adulto”. O filho do senhor era o senhorzinho e do negro escravizado, a futura peça de venda ou troca.
Vejo que ao criar regras de convivência comunitárias, o adultocentrismo patriarcal direcionou o lugar da criança a partir da lógica disciplinar punitiva. Nas comunidades escolares, por exemplo, a educação deveria torná-las doceis e úteis, quando o aluno – a página em branco ou o ser sem luz -, deveria atender as pedagogias que buscavam adestrar corpos e mentes.
Na produção econômica, ele também atuava de forma mais perversa em relação as crianças negras e indígenas escravizadas, que já nasciam objetificadas, tratadas como peças de venda ou troca, atendendo aos interesses dos “seus senhores”. Para a pesquisadora Maria Walburga dos Santos, o modelo colonial foi responsável por criar relações sociais “pautada nos binômios perversos como homem (forte)/mulher (frágil); adulto (que sabe) /criança(ignorante)” e buscava nesse processo silenciar vozes, buscando consolidar visões hegemônicas sobre “etnia, gênero, raça, corpo, sexualidade” (Santos, 2018, p. 147)
E assim o projeto colonial ditava os modelos de infâncias, disseminando uma forma de pensar e agir, tornando as crianças objetos do interesse adulto. Vou chamar este processo de um adultocentrismo patriarcal e esta perspectiva não representa um “arroubo criativo” e sim fruto de estudos e debates entre colegas, estudantes e orientandos/as. Aproveito para chamar atenção que o adultocentrismo patriarcal precisa ser estudado como mais esta face do adultocentrismo, uma vez que faz parte de uma prática do passado que insiste em permanecer no nosso presente. É neste processo que se constituiu uma pedagogia da servidão, como afirma Mário Maestri (2008), fundamentada a partir da disseminação do medo e da disciplina coercitiva.
Para os meninos brancos, as escolas de qualidade. Para os meninos e meninas negras, indígenas ou advindas de grupos étnicos subjugados, o ensinamento das atividades braçais. O dualismo na educação brasileira - ou a invenção de projetos educacionais para os filhos e filhas da população economicamente privilegiada e para os filhos e filhas dos trabalhadores e das trabalhadoras -, em si é resultado deste adultocentrismo patriarcal, que fez projetar sistemas de educação voltados para as crianças e suas diferentes classes sociais.
Mas, com a falência do sistema colonial assistimos os desafios de uma país que se projetava nação, as relações de poder foram se tornando mais complexas, possibilitando a emergência de dispositivos de controle sobre as infâncias. As novas “artes de governar” contaram com a participação de religiosos, pedagogos, médicos e juristas que passaram a estabelecer legislações e políticas das novas demandas sociais.
Foi nesse cenário, que assistimos já no Brasil Império o surgimento de novas preocupações em relação as crianças negras escravizada, as abandonadas e que viviam em situação de orfandade. Leis, decretos, manuais pedagógicos e socioassistenciais destinadas aos meninos e às meninas, que passaram a ser tuteladas pelo Estado. Foi neste período que as primeiras colônias orfanológicas e unidades de recolhimentos foram implantadas em diferentes províncias.
Mas, é no século XX – que não merece ser chamado de “perdido” -, que observamos a prática adultocentrica ganhar mais força, uma vez que aquela sociedade passava a viver o aumento populacional nas grandes cidades, o crescimento dos espaços comerciais e o aparecimento das periferias, traziam consigo cenas de pobreza, abandono, mendicância e criminalidade. Essas cenas eram protagonizadas por meninos e meninas, cabendo ao Estado criar mais um dispositivo legal: o Código de Menores.
Na década de 1920 fez surgir outro projeto social, fortemente baseado na cultura adultocentrica patriarcal, no qual podemos aqui denominá-lo de menorismo, ou, adultocentrismo menorista. É aí que o adultocentrismo cria mais um tentáculo, agora sustentado pelo viés da jurisprudência. O olhar menorista em si é fundado no adultocentrismo que pensa o problema das crianças em situação de risco a partir do viés adulto que deseja controlar setores da sociedade que se apresentavam como um problema social e que deveriam ser vigiadas e punidas à luz do novo Código.
O adultocentrismo menorista se funda da necessidade de “salvar” a sociedade brasileira do atraso econômico, sendo construído sob a égide da “ordem e do progresso”. Assim, juristas, filantropos, médicos e pedagogos passaram a criar normativas sobre as famílias pobres, estabelecendo o Juizado de Menores e seu juiz como responsáveis pelo destino de meninos e meninas, que passaram a ser classificados como “menores”.
O menorismo invisibilizava a cor, gênero, sexo e até as dimensões etárias e geracionais, pois partia da lógica generalistas que todos eram menores. E a partir de sua lógica criava uma proposta de classificação: “menor carente”, “menor delinquente”, “menor abandonado”. Foi assim que ele foi atuando de forma estrutural no Sistema de Justiça.
Contudo, é importante ressaltar que costumo pintar com cores fortes a ideia de que o menorismo estrutural influenciava não só o universo da Justiça, mas permeavam as políticas de assistência social, educação, saúde e principalmente segurança pública, haja vista o caráter policialesco de sua abordagem. Penso que há propostas pedagógicas e da assistência fundamentalmente menoristas.
Mas, preciso compartilhar com você leitora e leitor, que não podemos olhar para a História de forma linear, uma vez que a emergência do adultocentrismo menorista não aboliu o tentáculo patriarcal, ambos podem conviver em muitas práticas discursivas e sociais. Assim como o projeto colonizador, o menorismo também reproduziu relações “pautada nos binômios perversos como homem (forte)/mulher (frágil); adulto (que sabe) /criança(ignorante)”, como nos afirma Santos (2018). Daí a defesa que o adultocentrismo em si é estrutural e estruturante, por nortear as relações sociais, econômicas e políticas nas suas mais diferentes dimensões.
Assim como o patriarcado elaborou um modelo de família (de homem e de mulher) e uma ideia de criança, o menorismo também produziu uma família na qual buscou atuar de forma mais incisiva (as famílias pobres) e criou uma ideia de criança que negava a sua condição de infância e buscava classificá-la como “menor”. Penso que podemos entender o adultocentrismo no plural, uma vez que ele se manifesta a partir de diversas faces e se inventa e reinventa em diferentes espaços e tempos históricos.
Notas e Referências
BLOCH, Marc. Apologia da História ou o Ofício de Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2001.
MAESTRI, Mário. A pedagogia do medo: disciplina, aprendizado e trabalho mna escravidão brasileira. In: STEPHANOU, Maria e BASTOS, Maria Helena. (orgs) Histórias e Memórias da Educação no Brasil – Volume 1. Petropolis: Vozes, 2008. P. 192-210
SANTOS. Maria Walburga dos. Colonizações cotidianas: crianças e educação. In: SANTOS, Solange Estamnislau dos .[et al]. Maceió: Edufal, 2018. P. 147-163
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