Adoro Hermenêutica, Simone e Simaria - Por Luiz Fernando Cortelini Meister

09/12/2017

A análise hermenêutica de canções[1] é algo que compraz o jurista afeito às artes. Aos professores de hermenêutica, então, duplamente, pois há uma satisfação pessoal-profissional e pessoal-acadêmica. Transferir aos acadêmicos essa ideia de que há Direito em tudo, até nas canções aparentemente simples, como a proposição aqui desenhada: “meu violão e o nosso cachorro”[2], da sensação sertaneja Simone e Simaria, é um caminho sem volta, não ouvirão o rádio sem se aperceberem das lides jurídicas em cada música. O objetivo do presente, contudo, parte do ponto de vista da curiosidade acadêmica e análise hermenêutica, não aprofundando cada um dos institutos jurídicos que foram sobrelevados.

Ponto inaugural de exame é a admissão de abandono de lar no trecho “pode ficar aqui, sou eu quem vai partir”. Sendo um conceito atípico, conforme CAETANO[3], pode ser delimitado como “um ato voluntário de um dos cônjuges ou conviventes, possuindo a intenção de não retornar ao lar e sem que haja justo motivo”. Neste ponto é de se destacar parte futura da letra que diz: “Se amanhã a gente se acertar, tudo bem” e “Depois decidimos o final, espero que seja um final feliz” – pois que teríamos uma pseudo-intenção de volta e reconciliação, uma porta aberta. De qualquer modo, o ato é voluntário e presume-se o casamento ou a convivência. Também pode se dizer que não há justo motivo, ou não claramente, pelo menos.

Quanto aos efeitos do abandono e da possibilidade do abandonado permanecer no local de convivência, de se atentar para o Artigo 1.240-A do Código Civil, em que se estipula a possibilidade de domínio integral da propriedade.[4]

Continuando a balada sertaneja-romântica encontra-se uma renúncia expressa aos bens do casal: “Se o nosso amor se acabar eu de você não quero nada / Pode ficar com a casa inteira e o nosso carro / Por você eu vivo e morro / Mas dessa casa eu só vou levar / Meu violão e o nosso cachorro”. O adágio permite digressões mais.

Gize-se que há indício de incredulidade quanto à máxima do compositor Peninha[5] “que seja eterno enquanto dure esse amor”, creditando-se às coleguinhas a ideia de que terminado o amor não haverá forma de se manter a relação. Elas não creem numa relação eterna ou, pelo menos, cantam que não.

Vê-se, também, uma renúncia de bens. Para tanto seria preciso conectar se a união se dá por casamento civil e qual seu regime, ou convivência. De qualquer modo, renuncia-se a um direito. Quanto à casa também é preciso verificar se há quitação total do imóvel e a propriedade do mesmo, se conjunta ou se de um parceiro somente. Se propriedade dos dois, o renunciante teria de realizar doação da sua parte a outrem, o que enseja tributação específica. Ademais, se houver contrato de locação e o abandonado também quiser deixar o imóvel que ainda se encontre em prazo de multa rescisória, aquele que está deixando o imóvel não poderá se eximir de compartilhar tais custos. Também de se verificar se algum dano há no imóvel por ocasião da vistoria de saída. Se comprado conjuntamente e pendente financiamento, as partes precisam considerar as cotas do financiamento de cada um e o quantum de responsabilidade respectiva do débito ainda vigente.

O fato de deixar o carro, também deve ser interpretado como renúncia à sua propriedade e segue as linhas acima postas.

Por fim, quem está abandonando o lar ainda deixa claro que levará consigo o violão – de sua propriedade, pelo uso do pronome possessivo “meu” –, e o cachorro que é de ambos. Prioritariamente de se destacar que a propriedade do violão também deve ser comprovada, verificando-se data de aquisição, regime da união, nota fiscal de compra e outros dados importantes.

É necessário o equilíbrio dos bens na separação para a análise da incidência dos tributos de transmissão e doação.

Por exemplo, embora romanesco, deixar o carro e levar o violão pode ser financeiramente vantajoso. Um VW Polo 2004 tem preço FIPE tabelado em R$16.354,00[6]. Um violão Elétrico Aço Folk Takamine P7NC N, com desconto, é vendido por R$19.075,29[7].

O pet é reconhecidamente de ambos, e neste sentido é preciso cuidar da recente jurisprudência que permite a guarda compartilhada de animais de estimação[8].

Simone e Simaria nos criaram um problema jurídico. A complexa análise nos remete a torcer pelo casal, para que, amanhã mesmo, se acertem e fique tudo bem. Que seja um final feliz.

 

[1] No processo de ensino-aprendizagem de Hermenêutica Jurídica buscamos demonstrar aos acadêmicos, neófitos do Direito (segunda fase do curso de Direito da Universidade do Contestado – Campus Mafra, Turmas 1 e 2), noções básicas de hermenêutica, desde os estudos bíblicos, passando pela hermenêutica filosófica até chegarmos à digressão específica ante um panorama jurídico. Repisa-se, são acadêmicos jovens e recém adentrados à universidade. Por isso utilizamo-nos de uma metodologia complementar de exame hermenêutico de canções. Em dois casos tratamos sobre “Cálice” de Gilberto Gil e Chico Buarque e sobre “Despejo na favela” de Adoniran Barbosa. Durante as explanações sobre as regras de análise dos trabalhos a serem desenvolvidos (métodos de interpretação de Savigny, em especial, a partir de perguntas postas aos acadêmicos), lançamos mão de outras músicas recentes e conhecidas do público acadêmico, como a aqui debatida. Este texto pode ser referenciado como notas taquigráficas de parte do processo de ensino-aprendizagem proposto, e não o exaurimento científico hermenêutico. Aos colegas Professores de Hermenêutica Jurídica uma importante consideração: nossas aulas não foram marcadas tão somente por isso. Nas duas turmas vencemos o conteúdo programático a partir da proposição de método de estudo elaborada pelo Sumo Jurista Lênio Streck, a quem devo satisfação em todo final de aula, mesmo que espiritualmente.

[2] Meu violão e o nosso cachorro. Simone e Simaria. Disponível em: https://www.clickgratis.com.br/letras-de-musicas/simone-simaria-as-coleguinhas/meu-violao-e-o-nosso-cachorro.html

[3] CAETANO, Fabiano. Abandono de lar: Como ocorre e quais são as suas consequências? Disponível em https://fabianocaetano.jusbrasil.com.br/artigos/373088306/abandono-de-lar-como-ocorre-e-quais-sao-as-suas-consequencias

[4] Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. (Incluído pela Lei nº 12.424, de 2011) – Comentários tidos em CAETANO (2016), artigo que se indica a leitura: https://fabianocaetano.jusbrasil.com.br/artigos/373088306/abandono-de-lar-como-ocorre-e-quais-sao-as-suas-consequencias

[5] PENINHA. Que seja eterno enquanto dure esse amor. Disponível em: https://www.letras.mus.br/peninha/259649/

[6] Polo 1.6 Mi/ S.Ouro 1.6Mi 101cv 8V 5p. Em quarta-feira, 29 de novembro de 2017 10:32.

[7] https://www.americanas.com.br/produto/23195929/violao-eletrico-aco-folk-takamine-p7nc-n?epar=buscape&hl=lower&opn=YYNKZB&s_term=YYNKZB

[8] Justiça de SP determina guarda compartilhada de animal de estimação durante processo de divórcio. “A Segunda Vara de Família e Sucessões de Jacareí (SP) estabeleceu a guarda alternada de um cão entre ex-cônjuges. O juiz Fernando Henrique Pinto, membro do IBDFAM, reconheceu que os animais são sujeitos de direito nas ações referentes às desagregações familiares.

Conforme o juiz, o cão não pode ser vendido, para que a renda seja dividida entre o antigo casal. Além disso, o juiz afirmou que por se tratar de um ser vivo, a sentença deve levar em conta critérios éticos e cabe analogia com a guarda de humano incapaz. O magistrado citou alguns estudos científicos sobre o comportamento de animais e leis relacionadas ao tema e afirmou que diante da realidade científica, normativa e jurisprudencial, não se pode resolver a partilha de um animal (não humano) doméstico, por exemplo, por alienação judicial e posterior divisão do produto da venda, porque ele não é uma “coisa”.” Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/noticias/5905/Justi%C3%A7a+de+SP+determina+guarda+compartilhada+de+animal+de+estima%C3%A7%C3%A3o+durante+processo+de+div%C3%B3rcio

 

Imagem Ilustrativa do Post: Music (12) // Foto de: Peter Pham // Sem alterações

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