Adolescentes e exploração do trabalho no tráfico: sujeitos de direitos ou objetos de repressão?

08/09/2020

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Vivian Degann

O exercício do trabalho por crianças e adolescentes gera polêmica na opinião pública. Estudiosos e especialistas na área da infância e adolescência defendem que as atividades laborais prejudicam estes sujeitos não só do ponto de vista do desenvolvimento, mas também os expõem a diversas formas de violência e à adultização precoce. Além disso, é uma atividade que contribui para a estagnação social de milhares de famílias em todo o país porque, com estas crianças fora da escola, torna-se cada vez mais difícil a ascensão social das novas gerações.

Por outro lado, há grupos na sociedade que defendem o trabalho como uma ocupação positiva para crianças e adolescentes oriundos das classes empobrecidas pelo modo de produção capitalista, pois estes sujeitos contribuem com o sustento de seus lares. Além disso, este ponto de vista é revestido pelo mito de que o trabalho afastaria estas crianças e adolescentes do uso de drogas e da prática de atos infracionais. O que está implícito nesta discussão é que, em ambos os casos, estamos nos referindo exclusivamente às crianças e adolescentes filhos da classe trabalhadora, residentes nas zonas periféricas das grandes, médias e pequenas cidades, empobrecidos pelo sistema econômico vigente.

Nesta edição da coluna, vamos refletir sobre o exercício do tráfico de drogas como atividade de trabalho por adolescentes e como o Estado age diante deste fato social. Nesse sentido, aprofundaremos sobre este tema, compreendendo o tráfico como categoria de análise comum que se situa entre duas perspectivas, ora sendo concebido como trabalho infantil, ora sendo considerado ato infracional análogo a crime previsto no Código Penal (BRASIL, 1940). Deste modo, vamos problematizar sobre este tema, aprofundando nosso entendimento sobre o tráfico como elemento de análise que circunda entre estas duas categorias.

O Estado tem formas específicas de atuar diante dos problemas sociais que se materializam na sociedade. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lei que se situa sob o manto da Doutrina da Proteção Integral e considera este segmento populacional como sujeitos de direitos, preconiza que é dever do Estado, da família e da sociedade civil proteger os direitos deste público de forma integralizada (BRASIL, 1990). Para tanto, apresenta diferentes especificidades quanto a sua incidência, dependendo da materialidade dos fatos que se apresentam na sociedade. Uma parte deste documento faz referência às Medidas de Proteção, que incidem sobre crianças e adolescentes que se encontram sob vulnerabilidade e risco social, com direitos violados e vínculos familiares fragilizados ou rompidos. E o outro corresponde às Medidas Socioeducativas, direcionadas exclusivamente para adolescentes autores de atos infracionais, ou seja, pessoas entre 12 e 18 anos incompletos que praticam atos análogos a crimes previstos do Código Penal.

Registros históricos indicam que a procura por mão de obra infantil para o trabalho, no Brasil, data desde o regime da escravista, acentuando-se consideravelmente depois da abolição da escravatura (FARIAS, 2003). Nesta época, a concepção de trabalho exercido por estes sujeitos não era considerada como uma violação de seus direitos; era, inclusive, visto com bons olhos, o menino que, desde cedo, assumia a labuta diária por sua sobrevivência.

O Estatuto defende, no seu Art. 60, capítulo V, sobre o direito à profissionalização e à proteção nas tarefas laborais que “é proibido qualquer trabalho a menores de quatorze anos de idade, salvo na condição de aprendiz” (BRASIL, 1990). A Doutrina da Proteção Integral alicerça-se na garantia de que o adolescente necessita de proteção especial em razão de sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento e da prioridade absoluta de ações por parte da família, da sociedade e do Estado (LINS, 2004). É no contexto desta doutrina jurídica que as temáticas sobre erradicação do trabalho infantil e proteção ao adolescente trabalhador passam a ser consideradas com vistas à garantia de direitos desta população.

A Organização Internacional do Trabalho (OIT), órgão deliberativo que se reúne anualmente para avaliar as condições às quais se submetem milhões de pessoas (adultos e crianças) no mundo, atua com vistas à eliminação do trabalho infantil. A Convenção 182 da OIT, ratificada e adotada pelo Brasil, através do Decreto 6.481/2008, proíbe qualquer oferta de trabalho que estivessem na lista das Piores Formas de Trabalho Infantil, o que inclui o tráfico de drogas.

O relatório Cenário da Infância e Adolescência 2019[1] divulgou a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), estimando que, em 2018, o Brasil tinha 2.550.484 crianças e adolescentes em situação de trabalho. Destacamos que um dos principais indicadores que definem o perfil destas famílias cujos filhos estão expostos ao trabalho precoce é a condição de pobreza, delineando, com isso, uma questão social[2] a ser analisada, pois as famílias com alto grau de vulnerabilidade cuja renda per capta é de até meio salário mínimo, apresentaram taxas mais elevadas de prevalência dos seus filhos no exercício laboral[3].

Estas famílias que “consentem” sobre a exposição de seus filhos e filhas nestas condições assim o fazem porque há forças ocultas que partem de uma atmosfera macroestrutural atuando sobre elas, eliminando as suas possiblidades de exercer, com efetividade, a proteção e o cuidado necessários ao desenvolvimento de seus filhos e filhas. Nós não conseguimos enxergar a mão do Estado agindo sobre elas, mas vemos a materialidade, o produto, o fato social corriqueiro nas ruas, nos sinais de trânsito e nas notícias de jornais, que as responsabiliza e as pune pelo “não cuidado” aos seus infantes. Desvelar este ocultamento violador produzido pelo sistema capitalista e as consequências que este produz na população por ele subalternizada é o nosso dever enquanto pesquisadores/as em ciências sociais.

O Relatório do Conselho Nacional de Justiça intitulado “Reentradas e reiterações infracionais: um olhar sobre os sistemas socioeducativo e prisional brasileiros” (BRASIL, 2019), que sistematiza dados nacionais sobre o sistema socioeducativo durante o ano de 2018, apresenta dados de que 31,5% dos adolescentes que cumprem medidas cometeram tráfico de drogas. Chama a atenção que esta tipificação ocupa o segundo lugar dentre as cometidas pelos adolescentes em cumprimento de medida. Este dado revela que as ações do Estado diante do tráfico de drogas configuram uma perspectiva da repressão diante desses sujeitos, tornando-os objetos de intervenção. Isso nos faz questionar sobre o lugar destes meninos e meninas na Doutrina da Proteção Integral. Para o Estado, os adolescentes que estão no tráfico se situam na categoria “autor de ato infracional”. Assim, o poder estatal age sobre eles punindo-os por exercerem uma atividade ilícita e fazendo recair mais fortemente sobre a população subalternizada da sociedade, os efeitos da questão social.

Analisando o fenômeno do tráfico de drogas, a literatura aponta que adolescentes e jovens têm sido cada vez mais facilmente cooptados pelo comércio ilegal de entorpecentes, à medida que o Estado atua em consonância com as forças produtivas do capital (FEFFERMAN, 2006). Concordamos que esta ação do Estado revela seus intentos em relação à guerra decretada contra as drogas, cujos caminhos para o enfrentamento a este fenômeno se baseia na coerção e na repressão de adolescentes e jovens das periferias, ou seja, a ponta do sistema.

A legalização, descriminalização e despenalização do usuário têm sido posturas jamais defendidas pelo aparelho estatal, preferindo incidir negativamente sobre os mais vulneráveis nesta cadeia de exploração. Os adolescentes e jovens que estão na ponta desse sistema violador só tem a perder contribuindo com estas atividades. A guerra às drogas, como estratégia bélica de atuação estatal, afeta toda a sociedade, gerando insegurança principalmente nas favelas e periferias das grandes cidades, tendo em vista toda a violência que é gerada e a própria situação de opressão que atinge os moradores destes territórios (WILLADINO, NASCIMENTO E SILVA, 2018).

As forças do Estado investem numa atuação que penaliza os adolescentes, apesar de estarem sendo explorados. Aliadas ao recrudescimento da desigualdade social em nosso país, o Estado, na sua faceta penal, reforçado pelas consequências do neoliberalismo, incide nas populações empobrecidas de forma a perpetuar seus lugares na pirâmide social, punindo-as por serem o que são (WACQUANT, 2011). As famílias da classe trabalhadora e seus filhos são, muitas vezes, impedidos de alçar outros lugares na sociedade porque as ações que recaem sobre elas atuam na contramão em relação a melhora de suas condições de sobrevivência. Além disso, estas famílias estão condenadas a perderem seus filhos sob as forças do aparato policial-penal, seja para as prisões, seja perda concreta de suas vidas. Este tipo de ação só reforça o poder penal do Estado capitalista, que aprofunda o distanciamento desta população em relação ao acesso aos direitos fundamentais e ainda a pune pelas violações por ele mesmo provocadas.

Estes adolescentes são seduzidos e cooptados pela ideia de que o crime resolverá seus problemas e de suas famílias, como uma forma de “ganho fácil” (BATISTA, 2016). Na realidade, esta atividade só aprofunda suas condições de vulnerabilidade e se torna um fator de culpabilização destes pela busca de subsistência a partir deste formato. E, para finalizar, recorremos mais uma vez a esta autora que afirma que: “se pensarmos que, entrando num negócio que rende bilhões de dólares anuais, estes jovens só perdem, e estão cada vez mais pobres e sem saída, percebemos que os vilões desta história não são os garotos pobres armados até os dentes” (p. 99).

Aqui podemos abrir um adendo sobre a criminalização destes adolescentes e jovens por porte de armas, atividade paralela ao tráfico de drogas. Notícias recentes mostram que em uma ação que prendeu um dos chefes do tráfico no interior de São Paulo no último dia 27 de agosto, foram apreendidos nove fuzis e 42 granadas[4], ao passo que, no caso Marielle, vereadora assassinada pela milícia carioca, foram encontrados 117 fuzis na mansão do suspeito[5]. Estas armas seriam vendidas para os chefes do tráfico nas favelas do Rio de Janeiro. Perguntamos: qual o lugar dos adolescentes no tráfico? Quem está verdadeiramente exposto? Quem é verdadeiramente explorado por esse sistema?

É necessário analisar criticamente o fenômeno do tráfico de drogas, desvelando o que está por trás de um sistema de justiça que viola ainda mais uma população que deveria ser protegida e não punida. Uma vez trabalhando no tráfico, estes adolescentes devem ser inseridos em medidas de proteção para superação do processo contínuo de violação de direitos que tem perpetuado seus lugares na sociedade do capital. Assim, pensar em estratégias de despenalização da juventude e descriminalização, quando a pauta é o tráfico, é fundamental para a garantia dos direitos destes meninos e meninas que são, historicamente, punidos por se colocarem contra a hegemonia de um sistema que os encarcera e os mata.

 

Notas e Referências

BATISTA, V. M. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2016.

FARIAS, M. L. M. de. Aspectos jurídicos e sociais do trabalho infantil. In M. F. P. Alberto (Org.), Crianças e adolescentes que trabalham: cenas de uma realidade negada (pp. 55-66). João Pessoa: Editora Universitária, 2003.

BRASIL. Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Institui o Código Penal Brasileiro.  Rio de Janeiro, 7 de dezembro de 1940.

BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 16 de julho de 1990.

BRASIL. Reentradas e reiterações infracionais: um olhar sobre os sistemas socioeducativo e prisional brasileiros. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2019.

LINS, M. E. C. A Doutrina da Proteção Integral e o trabalho infantil. In M. F. P. Alberto (Org.), Trabalho infanto-juvenil e direitos humanos (pp. 27-34). João Pessoa: Editora Universitária, 2004.

WILLADINO, R.; NASCIMENTO, R. C. DO; SILVA, J. DE S. E. Novas configurações das redes criminosas após a implantação das UPPS. Rio de Janeiro: Observatório de favelas, 2018.

WACQUANT, L. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

[1] Relatório Cenário da Infância e Adolescência 2019, da Fundação Abrinq. Recuperado de https://www.fadc.org.br/sites/default/files/2019-05/cenario-brasil-2019.pdf

[2] Considerando o amplo empreendimento político-ideológico no qual está ancorada a sociedade atual, sob as pressões do sistema capitalista que engendra forças que aniquilam as camadas mais baixas da pirâmide social, a questão social significaria o conjunto dos problemas políticos, sociais e econômicos colocados pela emergência da classe trabalhadora no processo de constituição da sociedade capitalista. Questão social pode, portanto, ser considerada como “a manifestação no cotidiano da vida social da contradição capital-trabalho” (YAMAMOTO, 2007, p. 31).

[3] Pesquisa realizada pelo Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) que traçou o perfil das famílias nas quais há prevalência do trabalho infantil em duas importantes regiões metropolitanas do Brasil: São Paulo e Porto Alegre. Recuperado de https://www.chegadetrabalhoinfantil.org.br/noticias/materias/pesquisa-inedita-traz-perfil-das-familias-que-possuem-trabalho-infantil/

[4] Notícia veiculada em 28 de agosto de 2020. Recuperado de https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/08/28/o-que-moveu-o-chefe-do-trafico-que-comandou-invasao-em-favela-do-rio.htm.

[5] Notícia veiculada em 13 de julho de 2020. Recuperado de https://www.metropoles.com/brasil/acusado-de-matar-marielle-e-indiciado-por-trafico-internacional-de-armas.

 

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