Administração Pública e o Combate ao Trabalho Escravo: entre saboneteiras e a rasura da Constituição Federal - Por Leonel Pires Ohlweiler

09/11/2017

O mês de outubro foi permeado por importante discussão, não apenas para o Brasil, com suas lides políticas internas, mas também sobre tema de repercussão internacional. Refiro-me ao papel da Administração Pública no combate ao trabalho escravo e a edição da polêmica Portaria do Ministério do Trabalho nº 1.129, de 13.10.2017, disciplinando a concessão de benefício de seguro-desemprego ao trabalhador identificado como submetido a regime de trabalho forçado ou reduzido à condição análoga à de escravo, bem como a inclusão do nome no Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores à condição análoga à de escravo.

Poucos dias após sua edição diversas reportagens foram feitas nos periódicos nacionais, além de gama variada de publicações na Internet. E de fato o tema é dos mais relevantes, provocando muitos debates, em especial pelo burburinho dos motivos relacionados com a edição da citada portaria e as relações patrimonialistas envolvidas.

Quase no final do mês de outubro, a Ministra Rosa Weber do Supremo Tribunal Federal, proferiu importante decisão ao deferir a medida cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 489-DF, suspendendo até o julgamento do mérito os efeitos da citada portaria do Ministério do Trabalho. Tratando-se de ato administrativo de caráter normativo, já causa estranheza o seu conteúdo, pois na linha da decisão, distancia-se muito dos princípios constitucionais da Administração Pública, da própria concepção de dignidade humana, direitos fundamentais, e da gama de documentos internacionais incorporados pelo Brasil.

É incompreensível a falta de sentido de integridade e coerência com a própria legislação de Organização Básica da Administração Direta, atualmente a Lei nº 13.502/2017, pois assim como regula as atribuições do Ministério dos Direitos Humanos (artigo 35), com a realização de políticas públicas e a promoção dos direitos humanos, incluídos direitos da cidadania, direitos das minorias, incumbe ao Ministério do Trabalho (artigo 55) exercer competências administrativas voltadas para a segurança e saúde no trabalho! Na atual quadra da história, salvo arroubos ideológicos no estilo Donald Trump, o exercício das competências administrativas do Estado legitima-se por dotar de maior efetividade princípios constitucionais e direitos fundamentais, em especial sobre o tema de combate ao trabalho escravo.

A decisão do STF inicia tratando do grave problema dos conceitos restritivos utilizados pelo ato administrativo e a incompatibilidade com os instrumentos internacionais celebrados pelo Brasil, como a Convenção nº 29 da Organização Internacional do Trabalho- OIT, promulgada pelo Brasil por meio do Decreto 41.721/1965 e a Convenção nº 105 também da OIT sobre a abolição do trabalho forçado.

Ora, adotando tais marcos internacionais, como explicar a edição da Portaria 1.129/2017?

Só para exemplificar, diante de diversos problemas do ato emanado, a questão sobre as hipóteses configuradoras de trabalho em condição análoga à de escravo, assim consta na decisão do STF: “Ao conferir às hipóteses configuradoras de trabalho em condição análoga à de escravo delimitação conceitual que, deficiente, não se ajusta à lei, ao direito internacional e nem à jurisprudência, a Portaria do Ministério do Trabalho nº 1.129/2017 debilita a proteção dos direitos que se propõe a proteger.”

Tal decisão da Administração Pública relembra os bastidores da aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, cuja figura de René Cassin, jurista francês, foi importante na preparação da Declaração, sendo que em um rascunho por ele apresentado sobre o artigo que proibia a escravidão constou a rasura, riscando a expressão “e o trabalho forçado”, conforme recorda Bartolomé Clavero, mencionando de modo expresso:

“Apenas a escravidão estrita é considerada por Cassin incompatível com a dignidade humana(la dignité humaine; the human Worth), podendo mediante lei (en vertu de la loi) estabelecer ou manter outras formas de trabalho forçado.

(...)

O trabalho forçado, de efeitos análogos à escravidão quanto à privação radical dos direitos, constitui um traço colonial dos mais característicos. Assim, eliminar a referência a trabalho forçado significa seguir dando carta branca ao colonialismo e às suas piores práticas.”[1]

O contexto de grandes nações da época que lucravam com as colônias e toda espécie de trabalhos forçados[2], reduzindo cidadãos à condição análoga a de escravo, pelo visto, ainda acompanha alguns Estados e está na mente de burocratas contemporâneos. Como mencionado pela Ministra Rosa Weber, as alterações realizadas nos procedimentos administrativos de combate ao trabalho escravo pela citada portaria do Ministério do Trabalho, configura um quadro normativo de aparente retrocesso no campo da fiscalização e da sanção administrativa, “de modo a dificultar a política de combate ao trabalho escravo”.

Portarias, Decretos, Regulamentos e outros atos administrativos são vislumbrados como consequência das prerrogativas do Poder Público e capazes de originar obrigações e eventualmente direitos [3], ou seja, abarcariam o conteúdo de oficialidade do Estado e de modo neutro. No entanto, não se pode olvidar que o Estado é um campo de poder, como refere Pierre Bourdieu, um espaço estruturado segundo oposições ligadas a formas de capital específicas, interesses diferentes[4].

Mais uma vez a seguinte passagem que consta na decisão do STF:

“Essa nova moldura normativa encetada com a Portaria nº 1.129/2017 contesta a trajetória jurídica e administrativa realizada pelo Brasil nos últimos vinte anos no sentido do combate á escravidão contemporânea, que adotou instrumentos e mecanismos técnicos de referência internacional para lidar com o problema, com reflexos diretos em setores econômicos e produtivos de grande influência política.”

Vivemos um período político conturbado. Nossa imunidade democrática anda muito baixa. Assim, as infecções oportunistas do poder surgem em grande profusão por meio das tentativas de eclodir no Campo Burocrático outras espécies de capitais, Capital Econômico, Capital Social e o Capital Político. Talvez assim explique-se a ingerência de ações discricionárias e voluntaristas introduzidas pela Portaria do Ministério do Trabalho, incompatíveis com o dever constitucional de manter política pública eficiente de combate à redução de trabalhadores à condição análoga à de escravo, como entendido pela Ministra Rosa Weber.

A fala do Presidente da República, árduo defensor da portaria, foi estarrecedor, quando ao conceder entrevista para determinado repórter soltou a pérola: “O Ministro do Trabalho me trouxe alguns autos de infração que me impressionaram. Um deles, por exemplo, diz que se você não tiver a saboneteira no lugar certo significa trabalho escravo”[5]. Tratava-se, no entanto, do caso de empresa com 44 autos de infração pelas condições dos seus operários em canteiro de obras localizado na cidade de Americana-SP.

Tais indicações já são suficientes para evidenciar as parcialidades e inconstitucionalidades do ato administrativo da Administração Pública Federal, ou seja, mais uma rasura na difícil história de combate ao trabalho escravo. Mas agora o mais grave, a tentativa foi de riscar o próprio texto constitucional. 

Referências 

CLAVERO, Bartolomé. Constitucionalismo Global. Por uma história verossímil dos direitos humanos. Goiânia: Palavrear, 2017.

VEDEL, George e DEVOLVÉ, Pierre. Droit Administratif Tome 1. Paris: Presse Universitaires de France, 1992.

BOURDIEU, Pierre. Sobre o Estado. Cursos no Collège de France (1989-92). São Paulo: Companhia das Letras, 2014. 

[1] Constitucionalismo Global. Por uma história verossímil dos direitos humanos. Goiânia: Palavrear, 2017, p. 45-46.

[2] Para Bartolomé Clavero “que o trabalho forçado afeta nevralgicamente todo o conjunto das liberdades pessoais é algo evidente àquela época e agora. Era, com efeito, uma prática comum nas colônias. Para encobrir sua prática, a França havia resistido à dita Convenção da Liga das Nações contra a escravidão, de 1926, como também ao referido Acordo da Organização Internacional do Trabalho sobre o trabalho forçado, de 1930, ainda que no final, os tivesse ratificado em 1931 e 1937, respectivamente.” (Constitucionalismo Global. Por uma história verossímil dos direitos humanos, p. 47).

[3] Cf. VEDEL, George e DEVOLVÉ, Pierre. Droit Administratif , Tome 1. Paris: Presse Universitaires de France, 1992, p. 233.

[4] Sobre o Estado. Cursos no Collège de France (1989-92). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 50.

[5] Conforme reportagem publicada no site www1.folha.uol.com.br do dia 25/10/2017.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Trabalhador rural // Foto de: Cícero R. C. Omena // Sem alterações

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