Administração Pública, Corrupção e Democracia: entre lobos e pombas – Por Leonel Pires Ohlweiler

05/10/2017

O jornal Folha de São Paulo deste domingo (01.10.2017) publicou matéria sobre corrupção na Administração Pública do Mato Grosso, assim intitulada “Roubalheira Gera Pane Pública em MT”. A reportagem iniciou com a narrativa dramática de dezenas de pacientes sobre macas em Pronto-Socorro Municipal de Cuiabá, denunciando o já corriqueiro caos na Saúde Pública, conectando-o com o problema do desvio de verbas: “O caos na saúde tem sido apontado como o principal reflexo das centenas de milhões de reais desviados em Mato Groso nos últimos anos, mas está longe de ser o único problema de gestão pública.”

Na mesma edição, publicou-se a intrigante pesquisa realizada pelo Datafolha: o apreço do eleitorado pela democracia diminuiu nos últimos anos, um provável reflexo do descrédito dos políticos em virtude de envolvimento com práticas corruptivas. Para o instituto de pesquisa, 54% dos eleitores concordam com o seguinte quesito: “A democracia é sempre melhor que qualquer outra forma de governo”, enquanto 21% responderam que “Em determinadas circunstâncias, é melhor uma ditadura do que um regime democrático”.

As duas reportagens, portanto, relacionam-se com os debates sobre Administração Pública e os processos de gestão, eficiência e legitimidade. Mas de que modo ocorre essa conexão? De plano, é fundamental não deixar de vislumbrar tais temas sob a perspectiva social. Os dois acontecimentos exigem não perder de vista os debates sobre a própria vida dos cidadãos e da sociedade como um todo. Alguns agentes públicos tecem críticas sobre o modo como os cidadãos se comportam e não valorizam a democracia, mas não compreendem a influência do próprio comportamento e de outros agentes públicos, seja por ação ou por omissão. Deixam assim de ter uma visão de mundo mais ampla para refletir sobre as razões de suas próprias práticas.

Infelizmente a quantidade de acontecimentos não republicanos, para dizer o mínimo, inunda nosso cotidiano e integra as esferas de aceitação como normalidade. Urge renovarmos a capacidade de construirmos olhares para outras dimensões. É interessante a observação de Anthony Giddens ao reafirmar a necessidade de um olhar sociológico, uma perspectiva sobre as práticas e rotinas, no caso da Administração Pública, para provocar questionamentos e descortinar o encoberto pela “normalidade”. Como refere de modo expresso: “(…) nos ensina que aquilo que consideramos natural, inevitável, bom ou verdadeiro pode não ser, e que as coisas que consideramos como normais são profundamente influenciadas por fatos históricos e processos sociais.”[1]

Na reportagem sobre a corrupção no Mato Grosso consta a referência de que em obra da Copa do Mundo, gastos em torno R$ 1,066 bilhão, R$ 18 milhões seriam de propina! Não se pode de fato ignorar: o que ocorre nas entranhas dos comportamentos individuais de alguns agentes públicos reflete os contextos de experiências sociais, como o descontrole institucionalizado de processos de gestão pública e a indiferença de Espaços Normativos Administrativos a práticas e patologias corruptivas. No entanto, cabe a pergunta: realmente perdemos, momentaneamente, para termos uma visão mais otimista, a capacidade de institucionalizarmos agentes da Administração preocupados com a coisa pública?  Para os que não sucumbiram à Babel das patologias burocráticas, é crucial libertarem-se do caráter imediato das condutas individuais de certos agentes públicos e colocar as coisas em contextos mais amplos[2].

Sobre a conexão entre as duas reportagens. Um ato de corrupção é mais do que simples conduta individual de obter vantagens – patrimoniais ou não – extraposicionais. Aqui se destaca o entendimento de Mario Olivera Prado segundo o qual a corrupção é ação social, trata-se de “acción social ilícita o ilegítima encubierta y deliberada con arreglo a interesses particulares, realizada vía cualquier cota de poder en espacios normativos institucionalizados y estructurados, afectando deberes de función, interesses colectivos y/o la moral social.”[3]

Na esteira da análise de Anthony Giddens sobre práticas do dia a dia. Em primeiro lugar, trata-se de ação social com profundo valor simbólico, como parte daquilo que ocorre no cotidiano da Administração Pública e da própria sociedade. Não se trata, ademais, de ação individual de um lobo, mas remete para o sentido coletivo de alcateia. Há muito para refletirmos sobre qual Administração Pública é possível e queremos para a nossa sociedade? A concepção de Administração Pública racional exige múltiplos questionamentos, pois existem Espaços Normativos Institucionalizados vocacionados para o favorecimento de ações nada republicanas. Infelizmente, erigimos grandiosas Administrações, espaços eficientes para funcionarem, mas dentro de outra lógica: a da lógica do homine lupus que com ferocidade devora o dinheiro público e possui uma fome insaciável.

O agente público que, irmanado com outros cidadãos, institucionaliza ações corruptas na organização administrativa, não busca apenas a pilhagem pública, mas também construir relações sociais, relações de poder, voltadas para erigir capital simbólico. Moeda de troca nos processos públicos como votações, licitações, nomeações, aceleração do fluxo de emendas parlamentares, etc.

Em segundo lugar, é possível outro debate sobre as relações de agentes públicos e cidadãos envolvidos em corrupção. Conforme a reportagem publicada na Folha de São Paulo, o Grupo do Ex-Governador desviou cerca de R$ 1,03 bilhão, segundo levantamento realizado pela Controladoria-Geral do Estado do Mato Grosso, baseado em colaboração premiada. Tal quantia equivale a quase oito anos de orçamento do Pronto-Socorro Público antes mencionado! O Prefeito de Cuiabá, segundo a reportagem, é um dos agentes políticos que aparecem em vídeos gravados pelo Chefe de Gabinete do Ex-Governador recebendo dinheiro.

Tais gravações, vídeos e imagens, envolvendo atos de corrupção, indicam “eles sabem muito bem o que fazem, mas continuam fazendo assim mesmo” e, por vezes, é possível perceber certas expressões de prazer. Qual o sentido de tais condutas desviantes, relacionadas com a privação de recursos públicos para atender a população carente e a saúde pública? E o mais grave, até que ponto nossa Administração Pública, como Espaço Normativo Institucional e Estruturado, protege-se de tais integrantes da alcateia corruptiva?

Vale destacar em terceiro lugar outra reflexão. Quando agentes públicos praticam corrupção encontram-se em meio a uma complexa rede de relações jurídicas, políticas, sociais e econômicas. Sob a perspectiva interna, a corrupção gera inúmeras patologias administrativas e distorções na gestão pública, ao ponto de bilhões saírem – ou não entrarem – dos (nos) cofres públicos como relatado na reportagem citada, e prejudicar obras públicas, serviços essenciais e políticas de assistência social. Outro efeito é a construção de redes institucionais de encobrimento, inclusive a habilitação de agentes especializados em ocultar pagamentos não republicanos.

Mas os efeitos igualmente são externos, pois os cidadãos ficam cada vez mais descrentes com relação à Administração Pública, agentes políticos e todos os atores integrantes da organização de prestação dos serviços públicos. A descrença gera graves problemas de desconfiança, a ponto de induzir respostas como a da reportagem sobre “Democracia ou Ditadura?”. No gráfico sobre os resultados é possível observar que entre os anos de 2014 a 2017 diminuiu o percentual de respostas positivas em relação à democracia, aumentando para os mencionados 21% sobre a admissão da ditadura. Quais os possíveis sentidos dos percentuais? Os cidadãos estão cansados de angústias cotidianas com notícias sobre corrupção e dai preferem a alienação proporcionada por regimes autoritários? Ou existe completo desespero com a crise econômica, vinculando crise com democracia? No entanto, é equívoco vislumbrar soluções para crises econômicas no arbítrio. Com relação à corrupção, em regimes ditatoriais não deixa de existir, mas somente permanece lá, oculta, impedida de sair dos porões do regime.

De qualquer modo, não se pode desconsiderar o seguinte aspecto: a pesquisa realizada não diz respeito apenas aos cidadãos em sua individualidade. Trata-se de questão pública importante e, de algum modo, expressa tendências sociais, por menor que seja a abrangência de uma pesquisa. Tanto a corrupção como a democracia, portanto, são questões além dos muros da individualidade. São fenômenos com dimensões sociais, cujo olhar não deve direcionar-se somente para as condutas do responsável por desvio verba pública ou do cidadão, cuja resposta é preferir a ditadura em vez da democracia. É imperioso o debate, no caso da corrupção, sobre os coletivos patológicos de improbidade que permeiam as Administrações Públicas, muitas vezes alimentadas pelo próprio regime público de delegação de poderes. Relativamente à democracia, precisamos refletir de modo aberto sobre qual sociedade produzimos e nossa posição nos quadros de relações sociais.

Fora dessa hipótese, ficaremos como as pombas da crônica do Luiz Fernando Veríssimo[4]. Duas pombas dialogando na Praça dos Três Poderes, constatando inicialmente que agora inventaram um Código de Ética. A observação de uma delas: “Triste país, em que a ética precisa de um código para ser entendida”. Referem após que a culpa seria de Brasília e, após analisarem algumas figuras da Presidência da República, mencionam a descoberta de um meio de conviver com Brasília e o Brasil “não se envolver e fingir que nada era com ele”. Mas o que isso teria relação com a reportagem sobre corrupção e a pesquisa sobre democracia. É o diálogo final das pombas:

“-E nós o que fazemos aqui?

-Somos parte da paisagem.

-Outra maneira de não se envolver.

-Isso.”


Notas e Referências:

[1] Sociologia. 6º ed. Porto Alegre: Penso, 2012, p. 19.

[2] Cf. GIDDENS, Anthony. Sociologia, p. 19.

[3] Hacia una Sociologia de La Corrupción. In: sisbib.unmsm.edu.pe/bibvirtual/publicaciones, p. 8.

[4] Crônica publicada no Jornal Zero Hora, Sábado/Domingo, 15/16 de julho, 2017.

GIDDENS, Anthony. Sociologia. 6º ed. Porto Alegre: Penso, 2012.

OLIVERA PRADO, Mario. Hacia una Sociologia de La Corrupción. In: sisbib.unmsm.edu.pe/bibvirtual/publicaciones, 1999.

VERÍSSIMO, Luiz Fernando. Diálogo das Pombas. In: Jornal Zero Hora, Sábado/Domingo, 15/16 de julho, 2017.


Imagem Ilustrativa do Post: Praça dos Três Poderes deve ser mais aproveitada para eventos culturais // Foto de: Agência Brasília // Sem alterações

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