ADEUS AUTORITARISMOS

02/03/2024

Coluna Por Supuesto

Primeira coluna “Por Supuesto”, de volta ao Brasil no 2024. Persiste o futuro vertiginoso que ainda não chegou e a urgência do presente. Tanto na Colômbia como no Brasil, que exploro no quotidiano, alimentamos a vida. Tanto em um lado como no outro, a política externa se posiciona denunciando o genocídio. E tanto em um lado como no outro, a política externa é acusada de colocar o tema no centro do debate internacional nesses termos aterrorizadores e sinistros.

Não acho que seja possível começar uma reflexão minimamente comprometida com a civilização e a humanidade sem puxar este assunto e exigir com indignação o cesse imediato dos ataques a Palestina.

Dito isso, tentarei, em tudo caso, prosseguir com um tema que também preocupou nos últimos dias. Sem otimismos nem meias palavras lembrei que um dos sinais mais marcantes do  projeto autoritário e ultraliberal – neoliberalismo elevado a sua máxima potência –que governou (e governa em alguns países de América Latina atualmente, como na vizinha Argentina) é que considera que a legalidade criada sob a égide do pensamento francês da segunda metade do século XVIII, pautada pela separação de funções, bem como o constitucionalismo fortalecido depois da Segunda Guerra, ancorado na força normativa dos preceitos emanados do constituinte, não são mais suficientes nem necessários.

Diz Hannah Arendt que nos anos 1960 e 1970 o conceito de autoridade era quase obsoleto. Depois, o discurso da Ciência Política viu-se quase que obrigado a recuperá-lo porque a noção de autoridade passo a ser ligada a estratégias conservadoras de segurança pública nos Estados Unidos e Inglaterra, partindo-se de que o crime organizado e o não organizado eram resultantes de uma espécie de quebra moral da sociedade e da inexistência de um controle social rígido.  

Na América Latina, o que se colocou em evidência nas últimas décadas não foi necessariamente a autoridade, senão o autoritarismo como forma de governar, esquivando controles políticos, constitucionais e republicanos. Esse autoritarismo resultou da associação das teses do Estado mínimo com a expansão mercantilista. Uma espécie singular de Estado leviatánico foi reafirmada sob o argumento, sutil ou escancarado, de que o Estado liberal não suporta as exigências neoliberais mais acentuadas.

Por isso, Emir Sader na primeira década do século explicava a maneira como se impôs uma versão bastarda do Estado liberal, que fragiliza a política em favor da primazia da economia sobre a vida social. [1] No plano mais retrógrado, complementando com o que viria em sequência, um neofascismo de protagonistas medíocres e outros nem tanto, que pretendem se excluir da sua responsabilidade no fracasso neoliberal, que apelam às liberdades públicas precisamente para descaracterizá-las e combatê-las e que expressam sua falta de compromisso com a satisfação das necessidades sociais, autênticos direitos constitucionalizados.

O autoritarismo, que pode encher, para espanto de muitos, avenidas e praças, adquire traços de reconhecimento em sociedades amedrontadas e barbarizadas, onde impera o “salve-se quem puder” e onde o apelo às armas supera grotescamente a inteligência. Essa visão não gera espaços nem ao bom senso, nem à ciência, nem à Constituição nem à razão. É sinónimo de exclusão e antidemocracia, de estado de exceção e não de Estado de Direito. Ainda assim, no mundo desencantado e confuso que nos corresponde viver é preciso resolver e agir de imediato para defender a democracia e, sobretudo, o não retorno do autoritarismo e seu modelo. 

Não está demais dizer que democratizar significa, precisa e constantemente, mais democracia. E que requer de maior presença do Estado, de novas formas de concretizar prestações negativas e positiva, e desde logo, mais Direito para mais direitos.

Há um sentido prático da democracia que hoje é fundamental. Consiste em instalar as condições para que os setores populares comprometidos com ela deliberem e participem diretamente da construção das saídas aos dilemas impostos por quem pretende, precisamente, negar a democracia. Isso supõe habilidade para unificar posições e resolver divergências, em um processo de tolerância enraizada na legitimidade de defender valores comuns, especialmente a vida, a paz social, a igualdade na sua abrangência real, que comporta o reconhecimento da diversidade e nega a exclusão.

Nesta passagem da história isso não dá espera, simplesmente porque entre mais tempo se perde em renovar o ânimo para construir o campo democrático, mais se desenvolve a barbárie que impulsiona a exclusão. Por isso tem razão Robert Kurz quando afirma que a aversão à barbárie é crível e capaz de adquirir níveis importantes de desenvolvimento, mas ela pode também permanecer importante e autocontida. Isso quer dizer, na advertência de Kurz, que o discurso democrático deve ir acompanhado da mobilização democrática, sob pena de que a sociedade entre numa espécie de limbo de “normalidade” na qual a chamada “polarização” vira um standart indesejável. Para manter a hegemonia democrática, há que lembrar que são os desamparados os que amparam a democracia.[2]   

Também, desde logo, é preciso mais Estado. Esta questão pode ser abordada de múltiplas formas. Mas o que parece oportuno ressaltar, por enquanto, é que quando a democracia está em jogo não basta o mero funcionamento formal das instituições constitucionalizadas o legalizadas, simplesmente porque instituições são manipuláveis e instrumentalizáveis pelo grau de decomposição que podem caracterizar ao sistema. Por outras palavras, um Estado pode ter instituições em funcionamento e, de fato, no Constitucionalismo da América Latina no último período elas nunca pararam de funcionar e nada disso autoriza dizer que basta esse item para dizer que a democracia existe. O melhor exemplo são os chamados “golpes brandos”, que requerem do funcionamento aparente das instituições, particularmente de um Congresso “funcional” para que as forças negadoras da democracia realizem a gesta antidemocrática de instalar a excepcionalidade. Não esquecemos que as instituições podem e regularmente sustentam hierarquias e que o poder de classe implica funcionamento institucional capaz de atender às necessidades da classe.

E, logicamente, precisamos de mais Constituição, de Direito Constitucional e daquilo que alguns autores chamam de “um conhecimento seguro dos fins do Direito”. Quer caminhemos pela história recente da Colômbia ou do Brasil, o autoritarismo encontrou espaços para desprezar o Direito e instrumentalizar o Estado para seus fins.

Na Colômbia a Constituição de 1991 foi cruelmente atacada sob governos que utilizaram o Departamento Administrativo de Segurança – DAS – para vigiar aqueles considerados “inimigos do Estado”. Tais inimigos eram, na verdade, a oposição política e social que resistia a um exercício arbitrário e violento do poder, fundado em práticas mafiosas. No Brasil, infelizmente, pelo já apurado e de conhecimento público, a Agência Brasileira de Inteligência – ABIN - um órgão da Presidência da República cujas funções são previstas na Lei 9883 de 1999 e que deveria se dedicar à produção de conhecimentos para avaliar ameaças à ordem constitucional, à segurança do Estado e da sociedade brasileira, foi instrumentalizada para fins, precisamente, de investigação de pessoas que eram e não são do agrado do então governante.  

A começos de fevereiro, recomeçando as análises do Constitucionalismo da América Latina, lia em jornais brasileiros que em desenvolvimento da Operação Lesa Pátria, uma resposta aos ataques golpistas de janeiro de 2023, tinham sido expedidos 97 mandados de prisão preventiva e cumpridos 316 de busca e apreensão. Resistir juridicamente impondo as sanções pertinentes, logo após uma apuração responsável e aplicando as diretrizes do devido processo é também uma forma de defender a democracia ameaçada.     

Autoritarismos e ultraliberalismos, por supuesto, não podem nem devem retornar, nem podem nem devem prevalecer, por várias razões: porque quebram as bases do Estado de Direito, porque minam a capacidade produtiva, porque por definição não permitem a efetividade dos direitos sociais, porque debilitam a capacidade associativa das pessoas, cerceando a possibilidade de transformação coletiva da sociedade, porque mercantilizam a cultura, porque fragilizam a política. Enfim, porque são contrários à própria evolução de um Constitucionalismo para a liberdade e a felicidade humana. 

 

Notas e referências

[1] Emir Sader. “Hacia otras democracias”. In democratizar la democracia. México: FCE. 2004.

[2] Robert Kurz. A Democracia devora a seus filhos. RJ: Consequência. 2020.

 

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