Desde que ingressei no Ministério Público do Estado de Minas Gerais, em fevereiro de 1989, exerço atribuições vinculadas à Justiça Criminal, descontados um ou outro período no qual exerci mandatos administrativos que exigiam dedicação exclusiva.
Na atuação criminal, percebia-se claramente um movimento institucional pendular, ora favorável ao devido processo legal e ao respeito aos direitos humanos, ora mais voltado para o incremento da segurança pública e para as promessas preventivas da pena.
A partir de 1998, quando iniciei o curso de mestrado em Direito na UFMG, ou, melhor dizendo, quando tive a minha primeira aula com o Prof. Ariosvaldo de Campos Pires, minhas manifestações processuais passaram a ser tingidas cada vez mais com a nota da imparcialidade, recobrando o indispensável respeito aos princípios constitucionais de garantia sem perder de vista a função acusatória destinada ao Ministério Público para confrontar desde o mais simplório autor de delito até os mais poderosos malfeitores reunidos em destemidas organizações criminosas.
Já tendo como ídolo o meu colega Procurador de Justiça Carlos Augusto Canedo Gonçalves da Silva, conheci outros membros do Ministério Público brasileiro consagrados pela academia, como Juarez Tavares, Afrânio Silva Jardim, Cezar Roberto Bitencourt, Luiz Regis Prado, Lenio Luiz Streck, Paulo de Souza Queiroz, Rômulo Moreira, Eugênio Pacelli de Oliveira, entre outros.
Todos esses juristas conseguiam compatibilizar o exercício das atribuições de membros do Ministério Público, federal ou estadual, com importantes reflexões acadêmicas sem divisar, em meio aos múltiplos conflitos e diversidades, a existência de uma atitude comum em favor de um direito penal democrático, ou, ao menos, que pudesse ser considerado um “movimento ministerial de respeito à Constituição”.
Ainda assim, tratando de dar respostas às suas inquietações, tais penalistas/Promotores/Procuradores de Justiça e da República, começaram a difundir diferentes ideias e propostas sobre uma nova forma de atuação do órgão acusador, mais justa, mais racional e mais humanitária.
Eles não compartilhavam a mesma base acadêmica, não tinham a pretensão de desenvolver um projeto avançado de reforma e, se havia algo em comum, ninguém o assumia expressamente. Apesar disso, era possível sentir uma atmosfera familiar nas palestras que proferiam por ocasião dos grandes encontros acadêmicos da década de 90. Demonstravam confiança na edificação de um Ministério Público que assumisse a condição de titular da ação penal pública e, assim, pautasse toda a política-criminal a partir dos seus ideais, das experiências vividas, da contestação do que haveria de mudar e no respeito absoluto à dignidade da pessoa humana.
Essa perspectiva, todavia, sucumbiu à desgastante rotina das instituições na medida em que seus integrantes mitigaram a reflexão crítica em favor do cumprimento de rigorosas metas de produtividade para o enfrentamento do acervo processual decorrente, sobretudo, do incremento da criminalidade comum. Somadas às outras interferências externas, notadamente a expansão do sistema midiático punitivista e às novas exigências de penalidades vingativas, a atuação do Ministério Público na seara criminal, muito diversamente de outras áreas de atuação, experimentou grande retrocesso em relação às propostas para a sistematização de um modelo penal mais racional e efetivo.
A política de guerra às drogas permanece intacta mesmo sem apresentar nenhum resultado positivo ao final de tantas décadas de experiências fracassadas. A aventura lavajatista igualmente serviu para reacender as funções retributivas da pena há muito superadas pela doutrina. Os livros de direito penal e processual penal foram definitivamente trocados pela jurisprudência dos tribunais estaduais, algumas de duvidosa validade constitucional.
O marasmo repressor que se debruçou sobre o sistema penal brasileiro, malgrado a atuação de alguns Promotores de Justiça e Juízes de Direito afinados com as garantias constitucionais, somente encontrou efetiva resistência nos empolgantes julgados do Superior Tribunal de Justiça publicados a partir da segunda década do século XXI. Ainda assim, com muita objeção por parte das justiças estaduais e de uma grande parcela do Ministérios Público.
O conflito ganhou recentemente o noticiário em razão das críticas encontradas em julgados do Superior Tribunal de Justiça contra as decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo em desacordo com matérias já pacificadas naquela instância especial e, também, no Supremo Tribunal Federal.[1] [2]
O fundamento principal da crítica reside na incompreensível resistência das instâncias ordinárias em adotar a jurisprudência consolidada das Cortes Superiores, gerando indevido tumulto, desorganização sistêmica e queda da qualidade da prestação jurisdicional.
A mesma advertência se aplica com maior razão ao Promotor de Justiça. O titular da ação penal pública tem o poder de mudar toda a política criminal a partir do acatamento das decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal, antecipando-se ao Juízo de primeiro grau e, por conseguinte, aos tribunais de segunda instância. O Juiz de Direito nada poderia fazer diante do sistema acusatório que orienta o sistema penal brasileiro.
Daí porque a notícia veiculada no site oficial do Ministério Público do Estado de Minas Gerais em 3 de março de 2023 deve ser muitíssimo festejada. [3] Se trata de uma importante guinada na forma de atuar dos Promotores e Procuradores de Justiça criminais. De maneira até surpreendente, a Procuradoria-Geral de Justiça se posicionou de forma corajosa a favor de uma atuação mais racional no campo do direito e do processo penal.
A matéria se reporta à uma visita oficial feita pelo Chefe do Ministério Público mineiro e do Coordenador da Procuradoria de Justiça com Atuação nos Tribunais Superiores (PJTS) à Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Presidenta do Superior Tribunal de Justiça. O encontro foi registrado por meio de uma fotografia da comitiva do MPMG com a Ministra-Presidenta.
Na ocasião, foi apresentado o trabalho estratégico da PJTS em favor do “cumprimento das decisões e, consequentemente, do sistema de precedentes como pressuposto para a estabilidade e segurança do sistema jurídico”. Em seguida, a grande ousadia do encontro: o compromisso da PJTS para, juntamente com a Corregedoria-Geral, “orientar os membros do Ministério Público que atuam em 1.ª instância a se alinharem aos precedentes dos Tribunais Superiores”, demonstrando, assim, “a importância do trabalho da Instituição que se alicerça no compromisso com a justiça e à valorização das decisões dos Tribunais”.
Tal compromisso, firmado pessoalmente entre o Procurador-Geral e a Presidenta do Superior de Justiça, com a citação expressa da concordância da Corregedoria-Geral do MPMG, não deixa nenhuma dúvida sobre a tomada de posição definitiva em favor de uma atuação verdadeiramente mais próxima da sociedade e da proteção dos direitos humanos, nos moldes da recente jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.
Será um marco divisor na política criminal mineira e brasileira.
De plano, algumas mudanças de postura já podem ser aguardadas, com impacto imediato na atuação dos integrantes das forças de segurança pública, da Polícia Judiciária e dos próprios órgãos da instituição em primeiro e em segundo graus.
A começar pelo objeto da inquietação entre o Superior Tribunal de Justiça e o TJSP: a aplicação do regime semiaberto para o sentenciado primário, possuidor de bons antecedentes, condenado a cumprir pena não superior a 8 anos de reclusão pelo tráfico de drogas. Em razão do sistema acusatório, a questão em Minas Gerais será superada na primeira instância, sem a participação do TJMG.
Outra notável e imprescindível mudança na repressão e prevenção ao tráfico de drogas deverá ocorrer em tempo recorde, pois, doravante, na esteira das decisões do Superior Tribunal de Justiça, não se considerará válida a prisão em flagrante do suspeito a partir do ingresso forçado (ou autorizado) em domicílio sem o competente mandado judicial. Diante das informações do seu serviço de inteligência, a Polícia Militar deverá noticiar a conduta suspeita à autoridade policial, a quem caberá, diante das circunstâncias e dos indícios encontrados, instaurar o inquérito policial e representar ao juízo sobre a conveniência e necessidade de expedição do mandado de busca e apreensão em determinado domicílio. A nova rotina, encorajada pelo Superior Tribunal de Justiça, democratizará a persecução penal no combate ao uso e ao tráfico de drogas ao tornar efetiva a ideia do domicílio como o asilo inviolável do cidadão, seja ele localizado nas regiões mais nobres ou no aglomerado mais humilde da cidade. Isso é igualdade perante a lei. A prática abusiva da invasão de domicílio sem o mandado judicial perderá força tão logo as Promotorias de Justiça passem a invalidar a diligência e todas as demais provas dela decorrente.
Os pedidos de prisão após a condenação em segunda instância ficarão limitados às hipóteses em que os requisitos da prisão preventiva estiverem presentes, afastando a incômoda estratégia gestada na experiência da Operação Lava Jato.
A Promotoria de Justiça deverá ainda cobrar o reconhecimento da atenuante da confissão espontânea sempre que a admissão de culpa pelo acusado tiver contribuído, ainda que parcialmente, para a formação do convencimento do julgador. Súmula 545 do STJ.
Muito brevemente, após a aguardada pacificação completa do tema, restará à Promotoria de Justiça reconhecer a limitação legislativa e se conformar com a impossibilidade de apelar contra a decisão do júri baseada no quesito genérico de absolvição. Como contrapartida, deverá se preocupar em esclarecer exaustivamente aos jurados as consequências da afirmação do referido quesito. Para a decisão de pronúncia, o famigerado argumento vinculado ao “in dubio pro societate” será substituído pela busca por um standard probatório que não ofenda a presunção de inocência, tornando ainda mais difícil a hipótese de um erro judiciário.
Como se percebe desse pequeno rol exemplificativo, a tomada de decisão em favor de uma orientação resolutiva das Promotorias de Justiça criminais, pautada pela adesão imediata à interpretação das Cortes Superiores e, por conseguinte, em desfavor da crescente simbiose entre a função acusatória e a integração aos órgãos de segurança pública, representará inegável avanço do direito e do processo penal em Minas Gerais e em todo o Brasil.
Afinal, o compromisso do Ministério Público é garantir a ordem democrática, se pautar pelo interesse público e zelar pelos direitos fundamentais previstos na Constituição da República, mesmo nas hipóteses pontuais em que favorecer a Defesa, resguardando, com isso, a sua credibilidade de órgão imparcial junto ao Poder Judiciário e as demais instituições para o efetivo combate à corrupção, ao crime organizado, ao tráfico de drogas, aos crimes do colarinho branco, aos crimes contra a vida e às outras tantas infrações penais que merecem um pronta e competente resposta por parte da Instituição.
Que as boas novas anunciadas no encontro oficial com a Presidenta do Superior Tribunal de Justiça não fiquem no papel, à moda de desbotadas fake news, mas passem imediatamente a prática cotidiana de cada Promotoria e Procuradoria de Justiça do Ministério Público do Estado de Minas Gerais.
Notas e referências
[1]Cf.: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/04082020-Sexta-Turma-pede-atuacao-mais-harmonica-das-instancias-ordinarias-em-questoes-ja-pacificadas-no-STJ-e-no-STF.aspx. Acesso em 4.3.2023.
[2]Cf.: https://www.conjur.com.br/2023-fev-23/schietti-reforma-decisao-critica-tj-sp-afrontar-supremo. Acesso em 4.3.2023.
[3] Cf.: https://www.mpmg.mp.br/portal/menu/comunicacao/noticias/procuradoria-de-justica-com-atuacao-nos-tribunais-superiores-e-tema-de-encontro-de-membros-do-mpmg-com-presidente-do-stj.shtml. Acesso em 4.3.2023.
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