Ação penal e a necessidade de uma análise independente pela teoria do processo penal

17/08/2015

Por Thiago M. Minagé - 17/08/2015

Dando seguimento nas aulas, agora sobre o instituto do Ação Penal, muito falado, pouco explicado e completamente confundido com o Processo Civil.

Ocorre que, antes mesmo de se questionar a distinção entre processo cível e processo penal, houve uma árdua tarefa da doutrina na tentativa de desvincular o estudo e a estrutura do direito processual para com o direito material. Tamanho o problema, onde, aquele era considerado como mero adjetivo deste que se apresentava como possuidor de características efetivamente substantivas. Neste contexto inúmeras teorias surgiram na tentativa de explicar o fenômeno aqui analisado.

Surge em um primeiro momento a denominada Teoria imanentista do direito de ação, onde o direito processual penal era considerado como mera imanência do direito material; surge ainda com base na obra de Wach a Teoria Concreta do Direito de Ação, onde o direito de ação existiria apenas se reconhecido em juízo, ou seja, julgada procedente a ação[1] limitando o direito ao exercício da mesma apenas àquele que tiver razão. Com a transformação de seus institutos, acabou-se por entender que o direito de ação era abstrato, ou seja, desvinculado de qualquer razão prévia ao processo por parte daquele que fosse invocar a tutela jurisdicional, assim surge a denominada Teoria Abstrata separando nitidamente o direito processual do direito material, colocando o direito de ação como uma situação autônoma frente ao direito material.

Por longo tempo, conforme já dito, o direito processual foi considerado como um “adjetivo” frente ao direito material, sendo certo que, conforme afirma Orbaneja, desde o século passado o autor já sustentava a conquista do status de abstração e autonomia do processo, alertando para a importância da separação e do estudo destacado, porém tal entendimento ganhou força apenas com a doutrina capitaneada por Bulow[2] que ao delinear o estudo da teoria da relação jurídica identificando os denominados pressupostos processuais deixou clara a distância existente e necessária entre direito material e direito processual, afirmando que, o processo é verdadeira relação jurídica travada entre as partes, onde de forma recíproca surgem direitos e obrigações entre si, no curso de todo o processo. Além da respectiva teoria traçada e denominada como a “Teoria da relação jurídica” de Bulow surge também a chamada “Teoria da situação Jurídica” de Goldsmith[3] que em síntese afirma não haver uma relação de direitos e deveres entre as partes do processo, mas sim, um conjunto de situações processuais pelas quais as partes atravessam, caminham em direção a uma sentença definitiva favorável, e neste trajeto, cada parte possui a possibilidade de se livrar de cargas processuais, que uma vez praticado o ato, coloca a parte em posição confortável.

Ultrapassada a fase de se entender sobre a natureza jurídica do processo, e de como se dá o surgimento do direito de ação, começa com base nos estudos de Liebman o intuito de se estudar a fundo institutos com a finalidade de se evitar maiores excessos no exercício do direito de ação (na esfera cível), desta forma, o legislador procurando limitar a obtenção da tutela jurisdicional passa a impor o preenchimento de determinadas condições/requisitos (legitimidade das partes, interesse de agir e pedido juridicamente possível) lembrando apenas que fora criado quando do estudo conjugado entre processo civil e processo penal para efetivamente ser exercido o respectivo direito de ação.

Inegável que, o exercício da ação em face de uma pessoa se dá pelo utilização do poder, exercício da jurisdição é exercício de poder. A questão sobre o poder não está na justificação, pois destas surgiram tanto o autoritarismo como a democracia, o importante é saber quais os limites de atuação do poder e quais as formas de contenção do mesmo poder.

Mesmo autônomos, porém, impossível um estudo dissociado entre direito material e direito processual, tendo como ponto de partida as teorias estudadas acerca da ação no processo civil, especialmente a de Liebman, reclama atenção um dado de extrema relevância teórica e, sobretudo, prática, no dia-a-dia dos tribunais. Trata-se de saber se a ação penal, em especial aquela que encerra uma acusação, admite a abstração que a doutrina postula no âmbito do processo civil. No âmbito do direito privado, como se pode perceber, grande parte da doutrina já se manifestou negativamente. Para que haja ação, deve o autor, também, demonstrar, mesmo que esta demonstração seja de forma \superficial e mesmo que não se exija dele a razão por uma situação objetivo-concreta, de natureza substancial, que justifique a propositura da demanda. Esta demonstração deveria ser feita segundo esta abordagem teórica, pelo preenchimento das condições da ação.

Em caso se caracterizar a ausência de pelo menos uma das condições da ação, baseado nas pesquisas expressadas nos parágrafos anteriores encontrar-se-á aquela que, conforme certo consenso doutrinário, pela expressão tradicional, denominada como carência de ação, e o juiz, por uma questão óbvia, deve recusar-se a se manifestar e julgar sobre o mérito da demanda, ficando apenas, uma análise superficial das questões formais que antecedem o mérito que seria analisado, e devido à respectiva “carência” não mais será.

Mesmo assim, com todas as críticas apresentadas à teoria de Liebman, torna-se inviável negar o caráter abstrato inerente à ação penal, ou seja, oferecida a denúncia (ação penal pública) ou a queixa crime (ação penal pública de iniciativa privada), entende-se por exercida a ação penal. Neste exato momento, caso ocorra a falta de uma das condições da ação, não levará à inexistência da mesma, nem tampouco prejudicará o seu efetivo exercício, mas apenas impedirá a atuação em relação ao caso penal. A despeito disso, como intuiu Jacinto Nelson de Miranda Coutinho[4], a teoria Liebman, por exigir a efetiva demonstração de uma situação concreta que possa justificar a propositura da ação, acaba por ressaltar um dado tão importante quanto de fato negado ou esquecido na prática rotineira dos tribunais, ou seja, ainda que a ação seja abstrata, a atuação jurisdicional em relação ao caso penal depende da efetiva demonstração de que toda acusação deverá estar concretamente ligada a um caso concreto. Pode-se afirmar que somente ao final do iter processual se saberá se há crime e se alguma pena deve ser aplicada/imposta, mas é um requisito mínimo à submissão de um cidadão aos temores e atrocidades do processo penal que a parte autora apresente uma situação concreta que justifique a atuação do Estado. Também aqui, como se verá, esta demonstração passa pelo preenchimento das condições da ação.

Dessa forma, mesmo que se considere a autonomia entre direito material e direito processual, ambos devem estar intimamente ligados como uma verdadeira forma de complementariedade, conexão esta que dá verdadeiro subsidio a existência de um processo.

Alguns autores tentam conceituar o que seja pretensão punitiva, tais como: Poder jurídico de promover as condições destinadas a obter o juiz uma decisão sobre a efetividade da pretensão punitiva[5]. Ou seja, o exercício da ação está vinculado a uma situação externa ao processo, ou seja, praticado um desvio punível, ao estado nasce o direito de punir. Mas algumas questões surgem com esta afirmação: punir quem? De que forma? Através de que? Mesmo porque o processo deve de forma peculiar reduzir a ação e o impacto da infração no meio social[6].

Conforme as denominadas escolas processuais estudaram o tema, algumas considerações foram alcançadas, ou seja, umas conhecem a pretensão punitiva como sinônima de direito subjetivo de punir considerando assim o direito processual como mero adjetivo do direito material denominado como substantivo; outra escola, denominada moderna, afirmando a autonomia do direito processual frente ao direito material, com base na discussão travada entre Bernhard Windscheib e Theodor Muther[7] concluindo que a pretensão punitiva é objeto da ação penal e esta serve como meio capaz de tornar viável a ação penal que prescinde a violação de qualquer norma penal.

Mesmo assim, as ditas escolas não resolveram um impasse, como dizer que, ao ocorrer um desvio punível, nasce o direito de punir, mesmo por que esse direito apresenta-se necessariamente de cunho material, não em âmbito processual, essa certeza punitiva está calcada na ideia substantiva de direito material, não na provisoriedade e incerteza do processo[8]. A certeza de que ocorrendo um desvio punível, necessariamente ao Estado nasce direito subjetivo de punir, está enraizada no âmbito do direito substantivo, no campo processual, ainda deverá ser o acuado ser tratado como se inocente fosse, na incerteza da superveniência de uma sentença condenatória, eis que, o processo, sequer pode ser instaurado em face daquele que efetivamente incorreu no desvio punível. A incerteza processual apresenta-se como verdadeiro obstáculo à aceitação de um direito subjetivo de punir estatal em face daquele que está sendo processado, mesmo porque, se assim fosse, sempre poderia pleitear em seu favor um direito a uma condenação em todo processo existente.

Assim de forma superficial, são essas as respectivas condições para o exercício do direito de ação:

DA POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO: Basicamente, no processo penal, a possibilidade jurídica do pedido é definida em termos positivos, isto é, o pedido será juridicamente possível sempre que, em tese, a conduta imputada ao acusado seja típica.

Nesse sentido, identificando a possibilidade jurídica do pedido, com a imputação de uma conduta definida como crime.

Para tanto, entende que em tais situações ocorreria verdadeiro julgamento antecipado do processo, eis que se circunscreve à definição exclusivamente de direito dado ao fato descrito na denúncia ou queixa. Nessa situação, nem se avança sobre a instrução, deferindo-se ao magistrado, em juízo antecipatório, a possibilidade de rejeitar, de plano a pretensão punitiva por ausência de consequência jurídico-penal, solucionando, desde logo, o próprio mérito.

INTERESSE DE AGIR: No âmbito do processo penal, desloca-se para o interesse de agir a preocupação com a efetividade do processo, de forma que a jurisdição deve apresentar um juízo prévio, um mínimo de viabilidade de satisfação futura da pretensão que informa o seu conteúdo.

LEGITIMIDADE DAS PARTES: Como regra, a legitimidade ativa no processo penal pertence ao Ministério Público e, portanto, é atividade privativa do Estado.

Tradicionalmente, diz-se que no caso de ação penal de natureza pública, o MP seria o legitimado ordinário e, no caso de ação penal privada haveria hipótese de legitimação extraordinária, sendo o querelante um substituto processual, posto que a legitimidade é conferida a quem não é titular do ius puniendi.

É bem de ver, segundo alguns autores, que o tema da legitimidade ad causam não pode ser tratado nas mesmas bases do processo civil, já que o MP não pode ser considerado o titular da relação de direito material suscitada no juízo penal.

Nesse sentido, Aury Lopes Jr., partindo da premissa de que o Ministério Público não exerce uma pretensão punitiva, mas acusatória, exigindo que o juíz, que personifica o Estado, exerça o poder punitivo, conclui que:

“ao não pertencer o poder de punir ao acusador, seja ele público ou privado, na medida em que ele detém mera pretensão acusatória, em nenhuma hipótese existe substituição processual no processo penal”.

JUSTA CAUSA: Além das conhecidas condições da ação, Afrânio Silva Jardim enumera outra, autônoma, qual seja a justa causa.

Ensina Gustavo Henrique Badaró que, inicialmente, a justa causa foi identificada como a necessidade de que a denúncia ou queixa descrevesse, em tese, um fato típico.

O conceito de justa causa, porém, evoluiu de conceito abstrato para uma ideia concreta, exigindo a existência de elementos de convicção que demonstrem a viabilidade da ação penal.

A justa causa passa a constituir a exigência de um suporte probatório mínimo da autoria e materialidade do delito.


Notas e Referências:  

[1] ORBANEJA, op, cit., p. 165/166.

[2] BÜLOW, Oskar von. La teoría de las excepciones procesales y los presupuestos procesales. Trad. Miguel Angel Rosas Lichtschein. Buenos Aires: EJEA, 1964. p. 102.

[3] GOLDSCHMIDT, James. Derecho procesal civil. Trad. Leonardo Prieto Castro. Buenos Aires: Labor, 1936. p. 68.

[4] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A lide e o conteúdo do processo penal. 2ª ed. Curitiba: Juruá, 1998. p.118.

[5] MANZINI. Trattado di diritto processuale penale.  Vol. IV

[6] FERRAJOLI. Luigi. El Derecho Penal Minimo.

[7] NUNES. Marco Aurélio. O Interesse de Agir e sua inadequação ao Direito Processual Penal. 2009. Dissertação de Mestrado. UFPR. Paraná. 2009. Capítulo – A polêmica entre Windscheid e Muther . A ― autonomia do direito processual em relação ao direito material pode-se dizer (re) descoberta em momento precisamente identificado na cronologia do Direito.

[8]  LOPES JR. Op. cit.,  p.124/125.


Sem título-15

Thiago M. Minagé é Doutorando e Mestre em Direito. Professor de Penal da UFRJ/FND. Professor de Processo Penal da EMERJ. Professor de Penal e Processo Penal nos cursos de Pós Graduação da Faculdade Baiana de Direito e ABDConst-Rio. Professor de Penal e Processo Penal na Graduação e Pós Graduação da UNESA. Coordenador do Curso de Direito e da Pós Graduação em Penal e Processo Penal da UNESA/RJ unidade West Shoping. Advogado Criminalista.

E-mail: thiagominage@hotmail.com


Imagem Ilustrativa do Post: Justice // Foto de: M R // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/128234755@N05/18364591751 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura