Abuso sexual intrafamiliar contra crianças e adolescentes: a relevância da escuta especializada e do depoimento especial

26/11/2019

 Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenador Assis da Costa Oliveira

A violência, em suas mais diversas formas de expressão, contra a criança e o adolescente é um fenômeno de extrema gravidade e que sempre esteve presente ao longo da história. Tal violência é fruto de um processo histórico que colocou a criança em um locus de pouca atenção, seja por parte da família, da sociedade e do poder público. Isto porque, por muito tempo a criança não era considerada um sujeito de direitos. Uma das formas de violência mais nefastas contra a criança e o adolescente apresenta-se por meio do abuso sexual intrafamiliar, o qual em determinados contextos é socialmente aceito, podendo viabilizar inúmeras consequências que ultrapassam a seara dos danos físicos.

Sem dúvida, o abuso sexual intrafamiliar destaca-se por seu caráter universal, uma vez que, infelizmente, aparece em todas as culturas, religiões e classes sociais. Seja como for, o número de denúncias de abuso embora seja elevado, ainda está muito longe de espelhar a realidade, pois muitas das vezes não é denunciado. Dada a complexidade do abuso sexual contra crianças e adolescentes, Tabajaski, Victolla e Visnievski (2019) ressaltam que a sua revelação, se por um lado, pode gerar alívio pelo rompimento do segredo, por outro, poderá levar a criança e o adolescente a enfrentar uma exposição mais difícil.

O número de casos e de processos judiciais nos quais a criança e o adolescente aparecem como vítimas ou testemunhas de abuso sexual coloca em questão a forma de intervenção sobre eles. Neste contexto, o depoimento das vítimas e testemunhas têm especial valor probatório, sendo necessário como meio de prova, em que pese a possibilidade de danos. Por isso, sempre foi imprescindível a criação de instrumentos que preservassem a produção da prova testemunhal e, paralelamente, buscassem atenuar ou evitar possíveis danos àquele que foi vítima ou testemunha de crime violento, sobretudo, em se tratando de criança e adolescente, posto que encontram-se em condição peculiar de desenvolvimento, exigindo cautela redobrada.

É cediço que no Brasil o sistema da proteção integral da criança e do adolescente encontra supedâneo na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente. Contudo, ante a lacuna processual de instrumentos de proteção de vítimas e testemunhas infantojuvenis de crimes praticados mediante violência, foi promulgada a Lei 13.431/17[1] visando normatizar e organizar o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência; criar mecanismos para prevenir e coibir a violência[2], além de estabelecer medidas de assistência e proteção à criança e ao adolescente em situação de violência.

Assim, face a promulgação da Lei 13.431/17, discutimos se a escuta especializada e o depoimento especial atendem à proteção da criança e do adolescente quando aparecem como vítimas ou testemunhas de abuso sexual intrafamiliar. O presente trabalho possui como objetivo geral analisar os instrumentos trazidos pela lei como forma de contribuir para a discussão teórica e prática acerca do tema. Para a realização deste foi utilizada como metodologia a pesquisa bibliográfica por meio de livros e artigos existentes sobre o assunto.

Dessa forma, primeiramente tratamos dos direitos e garantias específicas constantes da Lei 13.431/17 e, em seguida, abordamos os principais aspectos da escuta especializada e do depoimento especial.

E, por fim, apresentamos nossas considerações finais sobre a importância da escuta e do depoimento especial não somente como instrumentos de evitar a revitimização de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, mas também como meio de produção de prova, em atenção ao devido processo legal.

 

Dos direitos e garantias específicos

O legislador trouxe mecanismos de proteção da integridade psicoemocional da criança e adolescente vítima ou testemunha de um crime praticado mediante violência visando evitar a revitimização na forma de violência institucional. Trata-se de uma forma de minimizar os efeitos nocivos do crime praticado contra ou na presença da criança ou adolescente.

O art. 5º da Lei 13.431/17 elencou direitos e garantias especiais de maneira não taxativa, muitas das quais já estavam previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, como, por exemplo, o recebimento de prioridade absoluta e o reconhecimento da condição peculiar de pessoa em desenvolvimento e ser protegido contra qualquer tipo de discriminação. Ocorre que nem sempre tais garantias eram atendidas.

Ressaltamos que todos os direitos e garantias destacados no referido dispositivo, para além de buscarem minimizar a revitimização, também visam tratar a criança e o adolescente como sujeitos de direito, pois em que pese encontrarem-se em condição peculiar de desenvolvimento, possuem o direito de receber informações, condizentes a sua etapa de desenvolvimento, sobre direitos, serviços disponíveis, representação jurídica, medidas de proteção, reparação de danos e qualquer procedimento a que seja submetido.

A criança e o adolescente na condição de sujeitos de direitos devem ser respeitados também em relação a sua autonomia de vontade no sentido de permanecerem em silêncio se assim desejarem. Prado (2019) pontua que a participação no processo penal é uma faculdade para a vítima menor de 18 anos. Embora ela possua o direito de ser ouvida, não pode ser obrigada a isso. Inclusive, caso deseje falar diretamente ao juiz, poderá assim exigir, o que deverá ocorrer em ambiente protegido que assegure sua privacidade. Contudo, caso não faça tal exigência, o juiz, Ministério Público ou os representantes legais da vítima deverão assegurar o depoimento nos moldes da Lei 13.431/2017.

Outro direito não menos importante diz respeito à possibilidade de medida protetiva em favor da criança e do adolescente, vítima ou testemunha de violência, contra o seu autor, aplicando-se, portanto, subsidiariamente a Lei Maria da Penha quando necessário. Tal medida já encontrava amparo no art. 130 do ECA, porém, seu mérito está em trazer maior segurança jurídica aos operadores do direito, além de ampliar o rol de proteção à criança e ao adolescente.

Levando em consideração que os instrumentos processuais precisavam se adequar à proteção integral da criança e do adolescente, além dos direitos e garantias supramencionados, a Lei 13.431/17 trouxe a previsão da escuta especializada e do depoimento especial.

 

Escuta especializada e depoimento especial

A escuta especializada e o depoimento especial foram regulamentados como forma de evitar a violência institucional, pois em razão de a criança e/ou adolescente ser atendido institucionalmente, seja administrativa ou judicialmente, por quem não possuía preparo para tanto, acabavam por sofrer uma nova violação de seus direitos, desta vez, por quem deveria assegurar a sua proteção e defender seus interesses.

A escuta especializada trata-se de um procedimento extrajudicial disposto no art. 7º da Lei 13.431/17, a saber, in verbis: “[a]rt. 7º Escuta especializada é o procedimento de entrevista sobre situação de violência com criança ou adolescente perante órgão da rede de proteção, limitado o relato estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade.”

Assim, o referido procedimento possui como finalidade a realização de entrevista com a criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência que ocorrerá perante órgão da rede de proteção da criança e do adolescente. Rovinski e Pelisoli (2019) aduzem que a escuta especializada deve ocorrer em sentido estrito, ou seja, deve restringir-se à coleta de dados necessários ao prosseguimento da denúncia e ao acompanhamento do caso pela rede, não sendo este momento, ainda, da constituição da prova processual. Isto implica reconhecer que não se admitirá que dados secundários ao crime sejam desvelados por curiosidade do entrevistador, pois poderão causar maior sofrimento à vítima. A escuta deve primar pelo acolhimento, mantendo-se o cuidado necessário quanto a evitar possíveis intervenções sugestivas que possam, de alguma forma, no futuro, prejudicar a coleta do testemunho legal. Ao contrário do depoimento especial, a escuta especializada remete-se muito mais a procedimentos clínicos, de cuidados e proteção.

Por sua vez, o depoimento especial, originariamente denominado de “depoimento sem dano”, idealizado e aplicado a partir de 2003 junto ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, é o procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária (Cezar, 2007). Em seu nascedouro, o projeto pretendeu que o depoimento, no âmbito jurídico, fosse um espaço mais acolhedor e respeitasse a fase de desenvolvimento da vítima.

O depoimento especial, assim como a escuta especializada, também visa a proteção psicológica de criança e adolescente vítima ou testemunha de violência. Porém, o depoimento poderá ser utilizado como meio de prova no processo judicial e deve reger-se por protocolos. A lei dispõe que o depoimento deva ser realizado perante a autoridade policial ou judicial e, sempre que possível, uma única vez, em sede de produção antecipada de prova judicial, garantida a ampla defesa do investigado.

Assim, quando a autoridade policial tomar ciência de crime, cuja vítima ou testemunha seja criança ou adolescente, deverá representar ao Ministério Público a fim de que requeira a realização do depoimento especial, em sede produção antecipada de prova, perante a autoridade judiciária, nos termos do inciso VI do art. 21 da Lei.

A audiência deverá ser realizada, de forma simultânea, em duas salas. Na sala de audiência permanecerão o juiz, o promotor, o advogado/defensor e o réu, os quais têm acesso à fala da vítima por meio de transmissão em tempo real. Na outra sala, a vítima ou a testemunha dará o seu depoimento, de praxe, a um psicólogo ou assistente social[3]. Os operadores do direito deverão formular perguntas à vítima ou à testemunha por intermédio do profissional especializado, o qual terá autonomia para fazer a pergunta da forma que entender menos prejudicial à vítima e de maneira mais adequada ao seu desenvolvimento. Terá, ainda, a autonomia para deixar de fazer a perguntar se entender prejudicial.

O depoimento especial deverá ocorrer sempre que possível uma única vez. Todavia, é possível novo depoimento da vítima desde que demonstrada a sua imperiosa necessidade e que haja a anuência da vítima ou da testemunha ou do seu representante legal.

Em suma, tanto a escuta especializada como o depoimento especial visam evitar a revitimização, que pode ocorrer durante o atendimento da vítima institucionalmente em atenção à proteção integral. A revitimização poderá ser atenuada tendo em vista que o depoimento será colhido em data mais próxima à data dos fatos, uma única vez, viabilizando a retomada da vida da criança e do adolescente sem haver a revivescência do evento traumático inúmeras vezes.

 

Considerações finais

Sem dúvida, a prática de crimes violentos, como o abuso sexual intrafamiliar, pode deixar marcas indeléveis nas vítimas, sobretudo se crianças ou adolescentes, dada sua condição peculiar de desenvolvimento. Também é certo que para tais pessoas, vítimas ou testemunhas de violência, relatar os fatos com pessoas desconhecidas, com as quais não possuem vínculo algum e que não possuem preparo técnico significa, por certo, viabilizar a revitimização.

A Lei 13.431/17 permite a produção de prova testemunhal que, na maioria dos casos, é a única possível, evitando a revitimização da criança e do adolescente. Daí a grande importância da escuta especializada e do depoimento especial, visto que visam proteger às vítimas e testemunhas e, paralelamente, possibilitam a punição do agressor.

O reconhecimento de sua condição vítima, pelo sistema judicial, provavelmente fará com que a criança ou o adolescente deixe de se sentir culpada pela violência sofrida, sentimento bastante comum em crimes violentos, principalmente sexuais.

Enfim, os mecanismos ora estudados poderiam ser extraídos do próprio Estatuto da Criança e do Adolescente. Contudo, a sistematização dos mesmos era necessária a fim de viabilizar maior segurança jurídica não somente às vítimas e testemunhas, mas aos operadores do direito. Sem dúvida, a sistematização pela Lei 13.431/17 foi um grande avanço no ordenamento jurídico brasileiro, sendo importante viabilizar condições para que possam sejam aplicados de forma eficaz.

 

Notas e Referências

Brasil. Lei Nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 10 out. 2019.

Brasil. Lei Nº 13.431, de 4 de abril de 2017. Estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência e altera a Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/L13431.htm Acesso em: 10 out. 2019.

CEZAR, José Antonio Daltoé. Depoimento sem dano: uma alternativa para inquirir crianças e adolescentes nos processos judiciais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

PRADO, Katy Braun. Direito ao silêncio da criança e do adolescente vítima no Depoimento Especial. In: POTTER, Luciane (Org.). A escuta protegida de crianças e adolescentes. Os desafios da implantação da Lei nº 13.431/2017. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2019.

ROVINSKI, Sonia Liane Reichert; PELISOLI, Cátula da Luz. Violência sexual contra crianças e adolescentes. Testemunho e avaliação psicológica. São Paulo: Vetor, 2019.

TABJASKI, Betina; VICTOLLA, Cláudia Tellini; VISNIEVSKI, Vanea Maria. Depoimento Especial: a difícil tarefa do pioneirismo. In: POTTER, Luciane (Org.). A escuta protegida de crianças e adolescentes. Os desafios da implantação da Lei nº 13.431/2017. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2019.

[1] Entrou em vigor em 06 de abril de 2018.

[2] Nos termos da Constituição Federal, da Convenção sobre os Direitos da Criança e seus protocolos adicionais, além de outros diplomas internacionais.

[3] A lei não define a área profissional de atuação dos profissionais especializados, ou seja, não há determinação de que deva ser, necessariamente, realizada por um psicólogo ou assistente social.

 

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