ABORTO LEGAL E OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA NO NOVO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA

02/04/2019

Com a entrada em vigor do novo Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 2.217/2018) no dia 30 de abril de 2019, reacendeu-se a discussão acerca dos limites da objeção de consciência do médico em relação aos procedimentos envolvendo o chamado aborto legal.

O novo Código de Ética Médica, em seu Capítulo II, norma IX, estabelece expressamente que é direito do médico “recusar-se a realizar atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência.”

Trata-se de uma das espécies de objeção de consciência, corolário da autodeterminação consciente da vontade individual no âmbito humano do livre arbítrio.

Objetores de consciência, no sentido geral, são pessoas que seguem princípios religiosos, morais ou éticos de sua consciência, que são incompatíveis com determinadas atividades ou atuações.

No caso dos médicos, as atividades objetadas podem consistir na prática de aborto, ainda que legal, na prática de eutanásia, na prescrição da “pílula do dia seguinte” etc.

A objeção de consciência, em resumo, visa proteger a integridade das pessoas envolvidas em uma situação de conflito moral.

José Carlos Buzanello, em percuciente estudo intitulado “Objeção de consciência: uma questão constitucional”, publicado na Revista de Informação Legislativa, v. 38, n. 152 (out/dez 2001), ensina que: “A objeção de consciência coincide com as liberdades públicas clássicas, que impõem um não-fazer do indivíduo, estabelecendo uma fronteira em benefício do titular do direito que não pode ser violada por quem quer que seja, nem pelo Estado. Essa idéia espelha a liberdade de consciência, isto é, viver de acordo com sua consciência, pautar a própria conduta pelas convicções religiosas, políticas e filosóficas. Dela decorre que cada ser humano tem o direito de conduzir a própria vida como “melhor entender”, desde que não fira o direito de terceiros. A objeção de consciência é uma modalidade de resistência de baixa intensidade política (negação parcial das leis) e de alta repercussão moral. Caracteriza-se por um teor de consciência razoável, de pouca publicidade e de nenhuma agitação, objetivando, no máximo, um tratamento alternativo ou mudanças da lei. O direito do Estado, assim, não alcança o foro íntimo, a privacidade da pessoa. O que a objeção de consciência reclama é a não-ingerência do Estado em assuntos privativos da consciência individual, que se confunde também com a dignidade humana, agora solidificada como princípio constitucional (art. 1º, III, CF). A objeção de consciência, como espécie do direito de resistência, é a recusa ao cumprimento dos deveres incompatíveis com as convicções morais, políticas e filosóficas. A escusa de consciência significa a soma de motivos alegados por alguém, numa pretensão de direito individual em dispensar-se da obrigação jurídica imposta pelo Estado a todos, indistintamente.”

No caso específico do abortamento, a sua prática por médico não é punida pelo Código Penal brasileiro, de acordo com o disposto no art. 128, quando “não há outro meio de salvar a vida da gestante” (aborto necessário ou terapêutico) e quando “a gravidez resulta de estupro” (aborto humanitário, sentimental, ético ou piedoso). Merece ser ressaltado que a interrupção da gravidez de feto anencéfalo também não constitui aborto criminoso, segundo decisão do plenário do Supremo Tribunal Federal, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental — ADPF 54 (acórdão publicado no DJ de 30-4-2013).

Nesses casos, vale consultar a Portaria nº 1.508/GM, de 1º de setembro de 2005, do Ministério da Saúde, que dispõe sobre o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez, nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde — SUS.

Também a Lei nº 12.846/2013, que dispõe sobre o atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual, estabelecendo, em seu art. 1º, que os hospitais devem oferecer às vítimas de violência sexual atendimento emergencial, integral e multidisciplinar, visando ao controle e ao tratamento dos agravos físicos e psíquicos decorrentes de violência sexual, e encaminhamento, se for o caso, aos serviços de assistência social.

Poderia, então, o médico, atuando no âmbito do Sistema Único de Saúde, alegar objeção de consciência e se recusar a fazer ou a participar de um procedimento de aborto legal? Sendo negativa a resposta, poderia ele ser responsabilizado administrativamente pelo conselho de classe, já que o Capítulo III, norma 15, estabelece ser vedado ao médico descumprir legislação específica nos casos de abortamento? No âmbito criminal, existindo risco à mulher, estaria o médico incurso no crime de omissão de socorro, previsto no art. 135 do Código Penal?

Colocando a questão de outra forma: deveria o médico, ao atuar no âmbito do Sistema único de Saúde, se manter neutro em suas convicções, já que representa o Estado, devendo, neste caso, se afastar da objeção de consciência em nome do dever de assistência?

A resposta a essas indagações requer algumas considerações complementares.

A nosso ver, o médico tem ampla liberdade de se recusar a fazer ou a atuar em qualquer procedimento profissional que viole seus princípios éticos, morais ou religiosos, alegando objeção de consciência, não podendo ser responsabilizado administrativamente e nem tampouco criminalmente pela omissão.

Caso haja objeção de consciência integral ao aborto legal, deve o médico, por coerência, antecipadamente se recusar a fazer parte dos serviços de referência, não havendo, nessa hipótese, nenhum delito, não havendo também que se falar em infração ética por descumprimento de legislação específica que autoriza o abortamento.

Nos casos de objeção de consciência seletiva, também defendemos a total liberdade de crença e convicção do médico, não havendo que se cogitar, como pretendem alguns estudiosos do assunto, de abuso do poder profissional ou de quebra da relação igualitária entre médico e paciente.

A objeção de consciência do médico deve ser respeitada em qualquer situação, não se configurando infração ética ou disciplinar e nem tampouco ilícito penal.

O médico deve ter suas crenças e convicções respeitadas, validando-se o conflito moral e preservando-se a liberdade de consciência do profissional.

Deve o médico, entretanto, em caso de recusa ao procedimento de aborto legal, prestar a assistência necessária para a preservação da vida e da integridade corporal da mulher, encaminhando-a, sem delongas e na medida do possível, a outro profissional que assuma a responsabilidade pela prática do ato, prestigiando-se, em contrapartida, a vontade e a dignidade humana da paciente.

 

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