Por Jeffrey Chiquini – 15/11/2016
Abortamento consiste na interrupção da gravidez com a destruição do produto da concepção. Perceba que o termo que utilizei foi “abortamento” e não aborto, pois este último é o resultado da conduta criminosa (interrupção da gravidez), isto é, aborto é o feto sem vida, ou seja, o resultado do abortamento.
Chamar abortamento de aborto é o mesmo que chamar homicídio de cadáver.
O pressuposto deste crime, por óbvio, é a gravidez, pois sua realização, como já dito, é a interrupção da gravidez e diz-se estar a mulher grávida, segundo o direito penal, quando ocorrido a nidação, isto é, quando o óvulo se alocar à parede do útero. Sendo mais técnico, diz-se realizada a nidação com a implantação do óvulo fecundado no endométrio.
À mero título de curiosidade, trago as diferentes classificações de abortamento:
1ª aborto ovular, quando praticado até a 8ª semana de gestação;
2ª aborto embrionário, quando praticado até a 15ª semana de gestação;
3ª aborto fetal, quando praticado após a 15ª semana de gestação.
Tal classificação, porém, pode ser por nós descartada, pois possui apenas reflexos na dosimetria da pena-base, quando da análise das circunstâncias judiciais, temática esta que não será por nos tratada, mas acabou por enriquecer nosso texto, já que iremos tratar de modalidade de abortamento considerada sim criminosa, embora sabemos que muitos não concordarão.
Como já dito, o momento da gravidez a ser considerado pelo direito penal, como acertadamente já o é, deve ser o da nidação do óvulo à parede do útero, muito embora para a medicina diz-se estar a mulher grávida com a mera fecundação, isto é, com o mero encontro do espermatozoide com o óvulo. Porém este raciocínio trazido pela medicina não pode ser utilizado pelo direito penal, sob pena de se responsabilizar aqueles que vierem a se utilizar de pílulas anticonceptivas que evitam a nidação, quando já ocorrido a fecundação. Tal raciocínio caracterizaria o crime de abortamento, sendo a “pílula do dia seguinte” seu instrumento, o que seria extremamente desarrazoado.
Considera-se abortamento, então, quando após ocorrido a nidação a gravidez é pela gestante ou por terceiro interrompida.
Já sabemos o que é e quando ocorre o abortamento, então agora quero tratar dos abortos não considerados criminosos.
O aborto natural, por exemplo, não é considerado criminoso, pois a interrupção da gravidez é espontânea, sendo, por isso, considerado um indiferente penal, assim como o aborto acidental, eis que no Brasil não se pune o aborto culposo, por falta de previsão legal (tipicidade). Ambas espécies de aborto não são abrangidas e abarcadas pelo direito penal brasileiro, pois o direito penal não puni o aborto que não seja pelo menos previsto e aceito pelo agente. Por isso o aborto miserável, chamado também de aborto econômico-social, que é aquele praticado por razões de incapacidade financeira, é considerado criminoso, pois o seu causador conhecia a circunstância que o envolvia e voluntariamente perquiriu tal resultado, devendo por este ser responsabilizado.
Ademais, segundo o próprio Código Penal, em seu artigo 128, o aborto necessário/terapêutico (inciso I) e o aborto humanitário/sentimental/ético (inciso II) também não são considerados criminosos, constituindo causas especiais de exclusão da ilicitude (descriminantes especiais). Prevalece que o inciso I é causa especial de estado de necessidade e o inciso II é hipótese especial de exercício regular de direito.
Perceba-se que estas causas especiais de exclusão do crime visam, sem sobra de dúvidas, a proteção da gestante. Neste caso, a lei penal está exercendo clara e evidente limitação do direito de punir (jus puniendi) do Estado, em razão das condições extraordinárias que a envolvem.
Na mesma linha, o Supremo Tribunal Federal em importante e recente decisão (ADPF nº 54, ajuizada pela Confederação Nacional dos trabalhadores da saúde) acabou por permitir o aborto de fetos anencéfalos, com o mesmo fim do art. 128 do CP, qual seja, proteger a gestante!
Tal decisão ao permitir o abortamento de fetos anencéfalos visou, como já dito, proteger a gestante, em respeito ao princípio constitucional fundamental da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da CF), não podendo, nestes casos, o Estado exigir da gestante que suporte uma gestação de nove meses para dar a luz a um natimorto, isto é, dar a luz a um feto que em verdade não tem a mínima possibilidade de sobreviver após o parto, ou seja, feto sem condições de vida extrauterina.
Por meio desta decisão, a Suprema Corte deu à gestante a correta autonomia da vontade para decidir por continuar ou não a gerir por nove meses, quando presentes e preenchidos determinados requisitos:
1º realização de exames de ultrassonografia a partir da 12ª semana de gestação (período com mais certeza do diagnóstico);
2º laudo assinado por dois médicos;
3º o procedimento deve ser realizado em hospital com estrutura adequada.
Estes critérios que devem ser respeitados à consecução do abortamento foram editados pelo Conselho Federal de Medicina.
No abortamento de feto anencéfalo, para alguns, não se fala nem mesmo em interrupção da gravidez, mas sim em antecipação do parto, por não existir possibilidade de vida após a ele. Tal conduta é considerada fato atípico, por ausência de viabilidade da vida extrauterina.
Maria Helena Diniz afirma que feto anencefálico é o embrião que por malformação congênita não possui uma parte do sistema nervoso central, faltando-lhe os hemisférios cerebrais, possuindo apenas uma parcela do tronco encefálico. Em razão disso, a vida extrauterina resta inviabilizada.
Porém, este mesmo tratamento não pode ser dado aos fetos portadores de microcefalia, pois que as circunstancias que o envolvem são completamente diferentes.
O aborto de feto portador de microcefalia deve sim ser considerado criminoso, pelo que se verá.
Considera-se portador de microcefalia o feto com má formação cerebral, isto é, feto com condição neurológica especial, sendo o seu cérebro significativamente menor que a de outros da mesma idade e sexo[1]. Esta anomalia não possui cura.
Esta criança terá graves problemas, como o de desenvolvimento, e isto não podemos desconsiderar, porém se receber tratamento especializado e adequado, desde os primeiros anos de vida, terá melhoras significativas e poderá alcançar certa qualidade de vida[2], dentro das suas condições e particularidades. Isto é, o feto portador de microcefalia pode até ter graves problemas físicos e mentais, como déficit intelectual, atraso nas funções motoras e de fala, distorções faciais, nanismo, epilepsia, mas possui capacidade de vida, há para ele expectativa e viabilidade de vida extrauterina, diferentemente do que ocorre, como já dito, com o feto anencéfalo, em que a vida extrauterina é incompatível com a sua condição.
O feto portador de microcefalia tem possibilidade de vida extrauterina. A possibilidade de sobreviver ao parto é uma realidade. Ademais, este ser humano é capaz de conviver em sociedade, dela participando e podendo, inclusive, usufruir de tudo aquilo que sua condição permitir, sem que lhe seja imposta qualquer limitação em razão da sua especial situação. Isto é, não pode o Estado em hipótese alguma limitar o direito deste de nascer e viver.
Registra-se, que o direito penal tem por objetivo limitar os excessos que eventualmente poderiam ser praticados pelo Estado, bem como assegurar a proteção dos bens jurídicos importantes aos cidadãos e a sociedade, como a vida o é, contra ataques relevantes.
Permitir o aborto de fetos portadores de microcefalia é aplaudir a deficiente proteção por parte do Estado do bem jurídico mais importante que o ser humano possui. Tal atitude é de gritante inconstitucionalidade.
Aborto de feto portador de microcefalia é considerado aborto eugenésico (eugênico), que é aquele praticado em face dos comprovados riscos de que o feto nasça com graves anomalias psíquicas ou físicas, caracterizando clara e evidente seleção da espécie humana. Por isso o abortamento de fetos portadores de microcefalia deve ser considerado criminoso, além de o ser imoral e canibalesco.
Embora o abortamento de feto anencefálico seja também uma espécie de aborto eugênico, acabou sendo recentemente permitido pelo STF, pois visa única e exclusivamente proteger a gestante, respeitando-se e aplicando por inteiro o princípio da dignidade da pessoa humana, como alhures se viu. Diferentemente do que ocorre com o abortamento de fetos portadores de microcefalia que não tem como fim proteger a gestante, mas sim selecionar a espécie humana, não havendo razões para defendê-lo e protegê-lo, vez que a vida é bem jurídico indisponível e não se pode selecioná-la como se faz com o feijão bom e o feijão ruim antes de cozinhá-lo.
Ademais, no crime de abortamento temos dois sujeitos passivos, a gestante (quando não o causou ou consentiu com a sua realização) e o feto. Por isso, podemos dizer ter motivos para o abortamento de feto anencefálico ser permitido, pois não deixa de proteger a vítima gestante, buscando, em verdade, dar-lhe maior proteção. Entretanto, o abortamento do feto microcéfalo não tem como objetivo proteger a gestante ou mesmo o feto. Por isso, não se vislumbra motivos à sustentá-lo e legitimá-lo.
Concluindo, o feto portador de microcefalia é sujeito de direitos e como tal deve ser tratado. Há, neste caso, viabilidade de vida extrauterina e sua interrupção não se distanciará da ilicitude, mas atribuirá maior reprovabilidade ao comportamento do agente que visou selecionar a espécie humana, quando se deveria dar eficaz e total proteção a ela.
Por tudo isso novamente e por fim afirmo: o abortamento de feto portador da anomalia microcefalia constitui crime tipificado no Código Penal, pois sua realização põe fim à vida daquele que não a consegue proteger.
Notas e Referências:
[1] http://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa1600651#discussion
[2] http://www.saudemedicina.com/microcefalia/
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